Mundo de ficçãoIniciar sessãoEra um dia quente e Ive Bianchi só queria tomar um sorvete, não era pedir muito, fazia parte da rotina exaustiva depois de horas no cursinho, mas naquele dia as amigas começaram a puxar a menina para o outro lado.
— Salada de frutas, Ive.
— Sorvete!
Começaram uma espécie de brincadeira de pega-pega, correndo umas atrás das outras enquanto gargalhavam e repetiam as mesmas coisas. Ive gostava daqueles momentos, esquecia a dor e se permitia ser só uma estudante comum.
Correu sem olhar por onde ia, olhando para as amigas, os cabelos voando com o vento e o sorriso que apesar da história que aquele dia carregava, ainda estava disposto a se abrir para o mundo.
Bateu em algo e foi arremessada para longe, o baque foi tão forte que Ive só sentiu a dor quando já estava no chão. O corpo inteiro doía, o cotovelo ficou anestesiado com a batida contra o asfalto e os olhos azuis, antes cheios de riso, marejaram pela dor, mas em seguida ela o olhou.
Uma criatura estranha, um homem meio bicho, uma montanha de carne e cicatrizes, os músculos forçavam o tecido surrado da roupa suja e rasgada em alguns pontos. Tudo nele era horrendo.
Ive olhou por um tempo, para ela, não era comum ver um homem puxando uma carroça.
Ela olhou para ele e esqueceu a dor, o tempo, os carros... O mundo se resumiu aquela forma estranha a sua frente, não era beleza que ela enxergava nele, era sofrimento e a angústia também pode ser bonita.
O pano sujo que cobria os olhos do homem também impedia que ela visse os contornos do rosto ferido, só sabia que as cicatrizes também se escondiam atrás daquele tecido vermelho e esfarrapado.
Sobre a corcunda um lençol que não diminuía o tamanho imponente do corpo só fazia ficar ainda mais estranho.
Ela não conseguia desviar o olhar, mas a criatura também estava perdida.
Ele parou, sabia que havia batido em alguma coisa pequena, pensou que talvez fosse uma criança, era difícil dizer, não enxergava e estava correndo. As chicotadas em suas costas doíam bem mais do que os calos nas mãos de segurar a carroça pesada.
Havia amarrado o lençol nas costas em uma tentativa vã de se proteger dos cortes que o couro deixava na carne.
Ele não viu a garota no chão, nem os amigos tentando ajudar a menina, mas sentia o peso dos olhares e o calor do asfalto queimando os pés rachados. As buzinas não paravam e ele sabia que estava em perigo.
O medo de ser esmagado de novo, de reviver a dor, o fez recuar, encolhendo os ombros. Já tinha sido atropelado. Não enxergar fazia o mundo ser doloroso e foi o que disse quase que sem querer.
— Dói!
Se encolheu com as mãos na própria cabeça, queria saber o que estava acontecendo, mas o barulho o deixou apavorado.
Ouviu quando uma voz masculina chamou a menina, guardou o nome, para ele soava bonito, como algo sagrado e delicado demais. Alguém que ele não queria ter machucado.
Matheus, um dos colegas da menina, chamou preocupado.
— Ive, vamos sair daqui! Você está sangrando!
A reação dela foi contrária, não era pelos amigos que ela queria se levantar, nem a voz de Matheus que ela queria ouvir. O corpo doía, mas o coração parecia pedir por aquele carroceiro.
Não conseguia tirar os olhos do homem que de alguma forma, tinha acabado de atropelá-la com uma carroça. O cheiro de suor e sujeira emanava dele e queimava o nariz de Ive, ainda assim o coração dela parecia ver nele algo que ninguém mais enxergava.
Havia doçura e coragem por trás daquele amontoado assustador de músculos.
Matheus tentou ajudar, puxou a colega com cuidado, mas Ive continuou olhando para o lado oposto, explicou ainda perdida, o coração batia tão forte que a voz não saía direito.
— Não! Espera. Ele tá machucado.
Tentou se aproximar, ignorou a dor, os amigos, os carros... O barulho em volta dela desapareceu.
Mas em cima da carroça outro homem brigou erguendo um chicote.
— Sai de perto, patricinha! Foi só um esbarrão. O Tonho é cego, pô! Não te viu, ô riquinha, que culpa ele tem?
Ive gritou quando viu o homem menor chicotear as costas do rapaz que havia trombado com ela. Colocou as duas mãos na boca tentando controlar o pânico que aquela cena causou.
Sentiu como se o próprio coração tivesse sido chicoteado junto.
O horror continuou e o homem em cima da carroça ordenou.
— Vamos, seu burro! Mexe essas patas! Anda!
Bateu outra vez, mas agora com os punhos fechados. O soco fez um ruído estranho.
Ive gritou outra vez, não aguentava mais, o sabor salgado das lágrimas entrava pela boca que ela não conseguia fechar.
— PARA!
Ela gritou para que as agressões parassem, mas o rapaz simplesmente empurrou a barra de aço, apoiou no peito e correu.
Correu como se fosse um animal treinado para isso. E talvez fosse só isso aos olhos de todos, mas para Ive ele tinha algo que ela queria desvendar, uma ingenuidade que precisava ser salva.
Ive esticou a mão.
— Eu preciso... eu preciso ajudar.
Matheus e as amigas a seguraram, os olhares de pena e nojo grudados nas costas de Antônio.
— Ive, para! Não vale a pena. Ele é só um morador de rua.
Outra amiga confirmou.
— E é perigoso! Essas pessoas não são como nós. Que nojo!
Mas Ive não ouvia.
Os olhos claros brilhavam por aquele homem no mesmo compasso que o coração gritava que a sua vida inteira tinha voltado a valer a pena.
Não conseguiu alcançá-lo, nem o esquecer.
Mas longe dali, em um barraco simples, Mayana parou de mexer a sopa no fogareiro.
O sol bateu na metade deformada do seu rosto, diferente do filho, ela ainda guardava uma parte bonita. O calor em seu rosto a fez arrepiar, sentiu uma sombra fria percorrer o seu corpo, o tipo de presságio que nenhuma cigana pode ignorar.
A vida de Antônio, o menino que ela chamava de “milagre”, estava prestes a colidir com o passado.
E Mayana sabia, por todas as suas vidas passadas, que quando o destino quer quebrar o muro da amnésia, ele não pede licença, ele entra com a força de um furacão.
Ela apertou o colar de moedas antigas que usava e rezou em voz baixa, na língua que Antônio não conhecia.
Pediu para que o filho jamais se lembrasse do caminho que percorreu para chegar até ela.
Mas o que ninguém sabia era que em breve a vida dos três estava prestes a mudar para sempre.







