Um ano depois
A porta do prédio rangeu quando Melia entrou, segurando a sacola de compras contra o peito. Seus passos ecoaram pelo corredor mofado e, por um momento, ela ficou feliz por finalmente estar em casa, mas a felicidade logo se foi assim que viu uma figura bloqueando a passagem.
Era um homem grande, fedendo a cerveja velha e cigarro. Tinha uma barba mal feita, a camisa encardida e um o sorriso nojento.
— Aí, garota… Cadê a mamãe? Faz dias que não aparece. Os caras estão com saudade do serviço dela.
Melia apertou a sacola contra o corpo, sentindo o estômago se revirar.
— Ela tá doente — respondeu baixo, sem olhar para ele.
— Doente? — o lobo riu, inclinando-se para frente, a barriga grande quase roçando nela. — Uma pena. Você podia ocupar o lugar dela, tá na idade, né? Bonitinha assim…
O coração da garota quase pulou para fora do peito.
— Sai da frente. — A voz saiu trêmula, mas firme.
As mãos dele se ergueram enquanto sorria malicioso.
— Você sabe como é aqui, menina. Renegada que não abre as pernas passa fome.
— Sai. Da. Frente. — repetiu, o olhar firme apesar das lágrimas queimando nos olhos.
Ele resmungou algo sobre ômegas frescas e se afastou, desistindo, ao menos por enquanto. Melia entrou no apartamento correndo, trancando a porta com as mãos trêmulas, encostando-se na madeira velha e segurando o choro.
O lugar cheirava a mofo e ervas secas. A tinta descascava das paredes, o piso rangia sob seus pés enquanto atravessava o corredor até o quarto da mãe.
Selene estava deitada no colchão fino, coberta com o lençol mais limpo que tinham. Estava magra, as cicatrizes feitas por Van Smail ainda estavam ali, profundas apodrecendo lentamente seu rosto e um de seus olhos dourados agora estava completamente negro e oidre. Sua respiração era dificil, Selene parecia prestes a partir, e talvez realmente estivesse.
— Mamãe… — Melia largou a sacola na cadeira ao lado da cama. — Trouxe sopa, e a moça do mercado me deu um chá de raízes, ela disse que pode te ajudar…
Selene deu um sorriso fraco.
— Você tá crescendo tão rápido… Queria poder te ver fazer dezoito. Te ver livre disso tudo. Eu tentei, minha menina.
— Você vai ver. Vou dar um jeito, levo você num médico na parte alta da cidade, compro remédios melhores. Eu prometo.
— Não, meu bem. — Selene sussurrou, a voz quase sumindo. — Não quero que se sacrifique, você precisa viver sua vida e…
A loba não conseguiu terminar, começando a tossir, gotas de sangue espirrando de seus lábios enquanto ela apoiava a mão no peito. Melia respirou fundo, segurando o choro, abraçando a mãe e fazendo carinho em suas costas até a tosse passar. Deu sopa a ela com todo cuidado do mundo, depois acariciou seus cabelos até ela adormecer. Ficou ali, observando o peito da mãe subir e descer com dificuldade, cada respiração mais frágil que a anterior.
“Vou dar um jeito, mamãe”, sussurrou, determinada.
Pegou o casaco surrado e saiu em silêncio, subindo as escadas úmidas do prédio até o nono andar. Parou diante da porta 541 e bateu forte. Alguns segundos depois, a porta se abriu. Um rosto cansado, os olhos marcados por olheiras, mas traços muito bonitos surgiu do outro lado.
— O que você tá fazendo aqui, garota? — Juno, melhor amiga de Melia, a puxou bem rápido para dentro.
Melia entrou, parando no meio da pequena sala que apesar de velha, tinha cheirinho de limpeza. No sofá, a menina percebeu uma lingerie e uma máscara de tigresa jogadas de lado.
— Eu preciso ir à Fera Dourada — disse de uma vez, firme, mesmo com o nó na garganta.
O nome da boate parecia pesar até o ar, e a outra arregalou os olhos, engolindo em seco.
— Você tá louca? Sua mãe sabe disso?
— Não. E não pode saber.
Juno passou a mão pelos cabelos lisos e escuros, andando de um lado para outro.
— Você tem noção do que tá falando? Nunca fez isso, Melia, não sabe como…
Sabia que a amiga estava certa, ela nunca nem encostou num homem na vida, mas estava disposta a se sacrificar por sua mãe.
— Eu preciso, Juno, não tem outro jeito!
— Por quê?
— Porque a minha mãe vai morrer se eu não fizer nada. Ela tá cada dia pior, ta morrendo, Juno, e eu vou salvar ela, nem que seja a última coisa que eu faça!
***
Em Noctgard, a escuridão vinha cedo: ruas estreitas, cheirando a lixo, iluminadas apenas por pilhas de lixo sendo queimadas.
Juno deixou seu irmão dormindo, coberto por um velho cobertor que tinham, então saiu com a amiga, trancou a porta e guardou a chave no sutiã.
— Pronta? — perguntou, segurando uma bolsinha preta.
— Pronta.
O vestido de Melia era leve, amarelo desbotado, quase inocente demais para onde ia. Do lado de fora, um carro preto esperava, chique demais para aquele lugar. As duas entraram sem pensar muito, encontrando as outras meninas que já estavam ali todas olhando para Melia com olhares tristes
— Sinto muito, menina — disse uma delas, e todas sentiam.
Era o sonho de qualquer renegada não precisar se render aquela vida, mas, no fim, acabavam sem opções. Todas a entendiam, elas partilhavam da mesma dor ali, naquele carro chique cheirando a perfume caro.
O carro avançou pela cidade. Dos becos pobres, passou-se às ruas limpas do centro, vitrines reluzentes exibindo roupas inalcançáveis. Até que parou diante de um castelo moderno: a boate Fera Dourada. Portões altos, fachada vermelha e dourada, com um grande brasão de uma garra de lobo e uma rosa vermelha.
Juno puxou Melia pelos fundos, entrando num corredor estreito e depois um vestiário imenso.
— Vem — disse Juno, levando-a até uma porta com uma placa escrito “Administração.”
Com apenas uma batida, a porta se abriu, revelando uma loira alta, de saltos e seios grandes, sorriso de predadora.
— Essa é a novata?
— É Melia, filha da Selene — respondeu Juno.
Os olhos da mulher brilharam com interesse.
— A filha da Selene… interessante. Entra, querida.
Corin se acomodou na poltrona vermelha atrás da mesa escura, cruzando as pernas, o olhar afiado percorreu Melia como quem avalia uma mercadoria rara, observando a cintura fina, as coxas grossas…
— Você tem um corpo perfeito pra isso. Os clientes vão enlouquecer!
Melia apertou o tecido do vestido, as pernas tremendo. O coração batia alto, mas ela se forçou a encarar.
— Eu… eu preciso do trabalho, mas só quero dançar.
Corin fechou a cara na mesma hora.
— Só dançar? Por quê? Vai ganhar muito mais se fizer programa.
— Porque eu nunca estive com homem nenhum — disse, a voz quase sumindo pela vergonha. — Quero me guardar para o meu companheiro.
Os olhos de Corin primeiro se arregalaram, depois estreitaram-se, faiscando interesse. Uma renegada virgem, bonita daquele jeito… aquilo era ouro.
— Que sonho bonito… — murmurou, agora com voz doce. — Tudo bem, querida. Você pode apenas dançar. — O sorriso voltou ao rosto de Corin, calculado. — Vai começar hoje mesmo.
Ela se ergueu com elegância teatral e foi até um armário espelhado. Abriu as portas revelando uma coleção de máscaras cravejadas de pedras, cada uma mais extravagante que a outra.
— Todas usam máscaras. Preservam a identidade, dão um ar de mistério. Aqui, todas as meninas viram algo novo!
Pegou uma máscara de couro branco, com detalhes em renda e orelhas longas.
— Essa é perfeita pra você. — Aproximou-se, erguendo a peça diante da garota. — A partir de hoje, será a Bunny.
Melia engoliu em seco e murmurou:
— Tá bem…
— Ótimo. Agora vá ao camarim, escolha uma lingerie bonita e se prepare. — O sorriso de Corin era pura malicia. — Hoje à noite, você vai ser a estrela, coelhinha.
***
Enquanto isso, no saguão da Fera Dourada, o som das risadas desapareceu quando cinco lobos atravessaram a entrada. Ternos caros, correntes de prata discretas, mas todos marcados com a mesma tatuagem no braço esquerdo: a cabeça de um lobo de presas prateadas, envolto em traços tribais.
No centro, ele.
O alfa Killer Knight.
Passos firmes, corpo musculoso, pele bronzeada e um olhar que parecia desprezar tudo ao redor..
— Boa noite, senhor Knight — murmurou o segurança, curvando-se.
Killer apenas assentiu, não precisava falar ou ser gentil. A boate era sua, mais uma joia do seu império.
Atrás dele, Trash, seu beta, analisava cada canto. O ar cheirava a cigarro, suor e o perfume doce das ômegas, nada fora do normal.
O alfa parou, seu corpo ficou tenso e ele inclinou a cabeça oara cima, inspirando com força..
Havia algo ali… Um cheiro doce quase sumindo entre todos os outros mas ao mesmo tempo marcante para ele.
— Tudo bem, alfa? — Trash perguntou em voz baixa.
O alfa fechou os olhos, respirou fundo, mas o cheiro pareceu sumir num piscar de olhos engolido por todos os outros.
— Tudo — respondeu frio, retomando o passo até a mesa mais próxima do palco.
Trash não questionou, sabia que, quando Killer decidia se fechar nada o fazia mudar de ideia.
Mas Killer sentia que algo não estava certo… Como se os fios invisíveis do destino, ou da movimentação da deusa da lua, finalmente tivessem voltado a se mover, tecendo e unindo os caminhos de seus escolhidos.