A porta do prédio velho rangeu quando Melia empurrou com o ombro, segurando a sacola de compras contra o peito. Usava calças desbotadas que um dia já foram amarelas uma camiseta de alças finas que deixavam a pele clara a mostra e os cabelos negros estavam bem presos num rabo de cavalo.
Seus passos apressados ecoaram pelo corredor mofado até que uma figura entrou na sua frente, parando bem entre a porta do seu apartamento e o corredor. Era um homem grande, o tipo que exalava cerveja velha e frustração. Tinha o rosto mal barbeado e os olhos pequenos demais para o rosto redondo. Usava uma camisa encardida e velha, calças jeans desbotadas e tinha um sorriso nojento no rosto.
— Aí, garota — ele chamou, estendendo um braço e se apoiando no batente da porta dela. — Cadê a mamãe, hein? Faz dias que não aparece.. Os caras estão com saudades do serviço dela, sabe?
Melia apertou os dedos ao redor da sacola, o cheiro de cigarro impregnado na roupa dele a enjoava e a forma como ele falava de sua mãe lhe causava embrulho no estômago. Ela odiava aqueles homens com todas as suas forças.
— Ela tá doente — respondeu, mantendo a voz baixa, sem olhar diretamente para o homem. — Não sei quando vai voltar.
— Doente, é? — Ele riu sem humor, inclinando-se um pouco mais, a barriga quase roçando nela. — Uma pena, era boa no que fazia, tinha uma boca que… Porra, veio da deusa da lua mesmo. Mas talvez... — os olhos dele percorreram o corpo magro da garota de dezoito anos — você podia ocupar o lugar dela. Tá na idade, né? E é tão bonitinha…
Melia deu um passo para trás, o coração batendo mais rápido.
— Sai da frente — sussurrou, contendo o impulso de chorar.
— Só tô sugerindo — disse ele, abrindo um sorriso torto e erguendo as mãos como quem se rende. — Você é bonita, Melia. Sabe que aqui é assim que as renegadas ganham a vida… É melhor começar a pensar direitinho com essa cabecinha bonita.
— Sai. Da. Frente — repetiu, com firmeza na voz.
Ele ergueu as mãos como se fosse inocente, mas ainda a olhava como se estivesse prestes a devorá-la ali mesmo.
— Fresca igual a mãe — resmungou ao se afastar. — Essas ômegas acham que podem bancar as difíceis, sendo que passam fome se não venderem as bocetas.
Assim, com essas palavras duras e nojentas, o homem deu as costas e desapareceu no corredor, Melia entrou no apartamento quase correndo e trancou a porta com as mãos trêmulas. Encostou-se ali por alguns segundos, tentando recuperar o fôlego, sentindo os olhos pinicar com as lágrimas que tentava segurar.
O lugar cheirava a mofo e ervas secas, a tinta descascava das paredes e o piso rangeu sob seus pés enquanto caminhava pelo corredor escuro.
O quarto da mãe estava em silêncio, a luz fraca da janela mal iluminava o pequeno espaço onde Selene estava deitada sobre um colchão fino, coberta pelo lençol mais cuidado que elas tinham. Estava pálida, a pele colada aos ossos, os olhos dourados abertos mas enevoados, como se lutassem para permanecer focados.
— Mãe... — Melia se aproximou, largando a sacola na cadeira ao lado da cama.
Selene respirava com dificuldade, cada inspiração um esforço, como se o corpo estivesse desistindo de viver. A loba dentro dela, mesmo ativa, não conseguia mais curar as feridas, nem o desgaste da alma.
— Trouxe sopa... — a jovem falou, ajoelhando-se ao lado da mãe, alguns fios dos cabelos negros escapando do rabo de cavalo. — E a mulher da venda deu um pouco de chá de raiz, disse que pode ajudar.
Selene apenas olhou para a filha, os lábios pálidos se contorcendo em um sorriso triste, ela sabia que não tinha mais muito tempo com sua menina.
— Você está crescendo tão depressa... — murmurou. — Queria poder te ver fazer dezenove. Queria... te ver livre disso tudo… Eu tentei, minha menina, você sabe, né?
Melia segurou a mão magra da mãe, sentindo o frio nos dedos.
— Você vai ver, vamos conseguir tratamento. Eu posso tentar levar você até um medico na parte alta da cidade. Eu dou um jeito, juro que dou.
— Não, meu bem — disse Selene, com a voz ainda mais fraca. — Não temos tempo. E você sabe... sabe que ele pode te encontrar se chamar muita atenção...
— Ele não vai! Estamos em Valtheria, ele não pode pisar aqui. Não pode atravessar.
— Pode... se você der motivo — tossiu, com um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca —. Se você aparecer demais, se chamar atenção. Ele vai saber, e vai dar um jeito, meu amor.
— Eu não vou chamar atenção. Prometo… — murmurou Melia, com a garganta fechada.
Selene ergueu a mão com dificuldade e acariciou a bochecha da filha, como se tentasse memorizar cada traço.
— Eu sinto tanto, minha pequena... — murmurou. — Por ter te trazido pra esse mundo. Por não conseguir te proteger, não conseguir te dar mais do que a vida de uma escrava e depois de uma renegada. Mas você é forte... tão forte quanto eu nunca fui.
Melia se inclinou, os olhos marejados.
— Você é forte sim, você me salvou. Fugiu com aquele monstro nos perseguindo mesmo sem forças, me salvou dele, mamãe você fez tudo…
Selene sorriu de novo, o olhar ficando mais distante.
— Seu aniversário é daqui a dois dias... Eu queria tanto te dar algo, mas só tenho palavras... só posso te dizer que estou... muito orgulhosa de você. É uma mulher linda, minha filha mesmo nesse mundo.
— Não fala assim — implorou Melia, apertando mais a mão da mãe. — Não agora... Você vai melhorar.
— Não vou, sei que não vou… — sussurrou Selene, com os olhos já vidrados. — Só quero que você prometa... que nunca vai deixá-lo te tocar. Que vai fugir... mesmo que doa, mesmo que pareça impossível, mesmo que a vida seja difícil demais, não vai se deixar seduzir pelo que aquele monstro pode dar. Não importa o que ele prometa meu amor.
Melia encostou a testa na da mãe, o corpo tremendo.
— Eu prometo — disse, com a voz embargada. — Eu prometo, mãe, por você.
— Eu te amo minha menina…
Aquelas foram as últimas palavras que sairam dos lábios da loba. Selene soltou um último suspiro, longo e dolorido, como se estivesse libertando tudo que ainda a prendia ali. Os olhos dourados se fecharam devagar, o peito parou de se mover.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.
Melia não chorou nos primeiros segundos, ficou imóvel, como se o mundo tivesse parado, como se o tempo se recusasse a seguir. A mão da mãe ainda estava entre as suas, mas agora já estava fria. A pele, antes pálida, começava a se tornar cinzenta. A loba dentro de Selene havia desistido, exaurida por anos de dor, fuga e solidão.
Foi só então que Melia gritou, um grito rouco, rasgado, vindo de um lugar tão profundo que parecia quebrar cada parte dela. Abraçou o corpo da mãe com força, soluçando alto, a voz ecoando pelo pequeno apartamento.
— Mãe... não me deixa... por favor... por favor...
Mas não havia resposta, não haveria mais respostas.
O mundo de Melia havia se esvaziado ali. Sua única família, seu único refúgio, a mulher que lutou contra um monstro por ela, que cruzou fronteiras, que arriscou tudo, havia partido. E ela estava sozinha, completamente sozinha.
O som da chuva começou a cair do lado de fora, como se o próprio céu chorasse com ela. Cada gota batendo no telhado parecia acompanhar o ritmo das lágrimas de Melia. Ela ficou ali por horas, sem se mover, sem conseguir pensar, apenas sentindo o peso da perda esmagá-la.
Quando finalmente se levantou, estava escuro. Os braços doíam de tanto apertar o corpo inerte da mãe. Ela cobriu Selene com cuidado, como se o gesto pudesse protegê-la mesmo depois da morte.
Andou até o banheiro, lavou o rosto com água fria, olhou-se no espelho.
A menina de antes parecia ter desaparecido.
O luto havia matado o que restava da inocência que sua mãe protegera todos aqueles anos a impedindo de ir para as ruas como as outras meninas que cresciam ali, no bairro dos renegados.
Melia enxugou o rosto com uma toalha velha, respirou fundo e caminhou até a sacola. Tirou de lá o chá e serviu uma xícara, deixando na cabeceira da cama, como se sua mãe ainda pudesse acordar e beber. Depois sentou-se no chão ao lado do colchão e ficou olhando para ela.
Do lado de fora, o mundo seguia, indiferente, sem se importar com a dor dque tomava o peito dela.
Mas dentro daquele quarto, tudo havia acabado.
E ao mesmo tempo, algo dentro de Melia havia começado.
Algo sombrio, silencioso, algo que só o tempo e o destino seriam capazes de revelar.