O cemitério do bairro ficava a poucos quarteirões dali, em uma pequena colina coberta de árvores retorcidas. Melia chegou ao portão de ferro e hesitou, respirou fundo e entrou, cada passo levantava folhas secas e terra, e o silêncio parecia esmagar seus tímpanos. Seguiu sem olhar para os lados, guiada apenas pela vaga lembrança de onde deixara o caixão da mãe. Quando alcançou o túmulo, as flores já murchavam nas laterais, e a cruz de madeira tremia na brisa.
Melia ajoelhou-se diante do buraco tapado, as mãos tremendo enquanto retirava o capuz do vestido. O rosto pálido não conseguia conter o choro, as lágrimas escorriam, misturando-se à chuva miúda que começara a cair, como se o céu também chorasse.
— Desculpa, mãe… — sussurrou, com a voz falhando. — Não sei o que fazer sem você.
Ela ficou ali por muito tempo, nem sabe quantas horas foram, falando baixinho, contando memórias. Lembrou das noites em que Selene a embalava, das histórias sobre Valtheria, dos sorrisos, dos medos que a mãe dissipava com beijos na testa. A chuva agora caía em gotas grossas, escorrendo pelo rosto dela, confundindo-se com o choro.
Quando, enfim, ergueu os olhos, não havia mais ninguém ali, apenas ela o mato alto e as lápides. Melia se levantou, apoiada no cabo de uma pá deixada encostada num canto, alguém esquecera de guardá-la após o enterro.
Caminhou até o portão com os passos pesados, as pernas fracas. Do lado de fora, escutou vozes suaves, olhou para trás e viu Juno correndo pelo gramado, o casaco esvoaçando e o cabelo loiro refletindo os últimos raios de sol nos fios curtos. Ela alcançou Melia em poucos passos, envolveu-a num abraço apertado e murmurou:
— Eu não aguentava te ver lá sozinha…
— Obrigada — disse Melia, a voz embargada. — Obrigada por vir.
Juno puxou Melia pelo braço, conduzindo-a para fora do cemitério. A chuva havia parado, mas o chão ainda brilhava molhado.
— Vou te levar pra casa — garantiu Juno, com delicadeza. — Vamos chorar juntas lá, ok?
— Você é a única que me restou — murmurou Melia, cabisbaixa.
— Vou ficar com você pra sempre somos melhores amigas, lembra?
Ao chegarem na rua, Juno pediu um táxi, e as duas entraram, Melia encostou a cabeça no vidro, observando as árvores passarem, seu rost molhado pelas ultimas lágrimas que tinha.
Quando chegaram ao prédio, o corredor estava vazio. As portas rangiam, as paredes descascadas pareciam prestes a desabar, se reparasse bem, partes do teto já havia mesmo se soltado da estrutura. Subiram as escadas até o andar de Melia, chegando ao apartamento que agora era só dela.
Melia sentou no único sofá, olhando para o chão, Juno fechou a porta e a encarou.
— Então… o que você vai fazer agora? — perguntou Juno, com os olhos marejados.
— Não sei — suspirou Melia, segurando os joelhos com força. — Minha mãe… sustentava nós duas. Era… Da vida, mas sempre me protegeu das ruas, ela não queria que eu fosse pra esse mundo também. Agora… não tenho nada.
— Ela tentava te proteger — disse Juno, sentando ao lado. — Mas aqui… as opções são poucas. No bairro dos renegados, só tem prostituição e drogas. Os empregos melhores ficam na cidade alta e você save que eles não empregam renegadas… Os homens as vezes conseguem alguma coisinha, mas a gente… Parece que fazem de propósito para terem mais prostitutas.
— Você sabe — disse Melia, com voz trêmula — que eu nunca tive nenhum contato com homens… Nem namorado eu tive… Não sei se consigo fazer isso, Juno.
Juno olhou para o rosto abatido da amiga, e as lembranças vieram com força: as conversas à noite, as promessas de proteger uma à outra, a infância pobre, as risadas que ecoavam no prédio antigo. Se conheceram assim que Melia chegou com sua mãe ao predio, elas tinham onze anos, e desde então nunca mais soltaram uma da outra. Infelizmente, Juno não teve a mesma sorte de Melia e sua mãe se foi cedo.
— Eu posso falar com a dona da Fera Dourada — sugeriu Juno, hesitante. — A gente pode tentar alguma coisa la... Vou pedir um emprego pra você.
— A Fera Dourada? — repetiu Melia, assustada. — Juno, lá é muito cheio, minha mãe não ia pra lá porque tinha medo de…
— Eu sei — murmurou Juno — Mas talvez, se eu falar que é por mim… eles deixem você só dançar, a chefe pode , sei lá, se compadecer. E lá todo mundo usa máscaras!
Melia ergueu o rosto. Os olhos verdes de Juno a encaravam com tristeza.
— E se eu disser não? Tem alguma outra ideia? — perguntou Melia, a voz falhando.
— Não temos muitas opções — respondeu Juno, com voz firme, mas doce. — Na cidade alta, sem alcateia, sem dinheiro, sem referências… você não consegue emprego em lugar nenhum. Eu tentei, você tentou ano passado, quando ainda tava na escola, lembra? Só lá tem dinheiro rápido e, bem, limpo.
Melia inclinou-se, sentindo o peito apertar. O mundo lá fora continuava girando, mas para Melia, parara no momento em que Selene deixara de respirar.
Juno passou o braço pelo ombro dela e sussurrou:
— Eu estou com você. Sempre.
— Obrigada — murmurou Melia, apertando a mão da amiga contra o peito. — Eu não sei o que faria sem você.
Elas permaneceram ali, assim, abraçadas, até o sol sumir por completo e só restar a penumbra do entardecer.
***
Enquanto isso, na área nobre de Revengard, um condomínio fechado erguia-se como um palácio escondido em meio a árvores centenárias. Portões de ferro trabalhado com arabescos detalhados e o brasão da alcateia se abriram para o carro escuro que trouxe o alfa. Ele desceu ali, com os punhos manchados de sangue e o peito nu brilhando sob as lanternas de pedra.
Caminhou pelos grandes jardins, passando entre as casas e mansões até alcançar um alçapão distante da área residencial. Um corredor subterrâneo conduzia a uma sala ampla, iluminada por luzes presas nas paredes de pedra. No centro, um homem jazia pendurado pelas mãos, presas a correntes que o erguiam até o teto, os pés mal tocavam o chão frio de mármore.
Ele tremia, os olhos arregalados em pânico.
— Fala! — ordenou o alfa, aproximando-se com passos pesados. — Onde está o exército dos Carnífice? Quem mandou vocês invadirem meu território?
O batedor arqueava a coluna, as correntes rangendo a cada movimento.
— Não sei… eu juro… Senhor… Knight… — gaguejou o homem, a voz falhando.
O alfa, Killer Knight, estendeu a mão e, num movimento brutal, arrancou o coração do peito do prisioneiro, segurando-o ainda pulsante entre as garras. O sangue escorreu como um rio vermelho pelo chão.
— Idiota inútil! — gritou Killer, esmagando o órgão na palma da mão. — Achou que podia me enganar?
Trash, seu beta, um homem loiro e alto, entrou na sala com o rosto fechado.
— Alfa… talvez valesse a pena torturar mais — sugeriu Trash, a voz contida. — Poderíamos extrair informações e…
— Informação não vale mais que a vergonha de ser desafiado por um merda desses — respondeu Killer, jogando o coração esmagado no chão. — Se o próximo pensar em invadir meu território, vai morrer assim… sem piedade.
Trash levou um suspiro contido e deu de ombros, sabia que seu amigo e alfa estavam furiosos, e que os batedores de Obsidian estavam cada vez mais ousados. Só não entendia o que queriam ali, em Valtheria…
— Tudo bem, meu alfa. Mas… talvez seja hora de relaxar.
Killer cerrou o maxilar, limpou o sangue dos dedos na calça escura e se virou.
— Farei o que quiser — disse, com a voz baixa. — E amanhã… quero te ver comigo na Fera Dourada. Precisamos garantir que a boate esteja segura, nossos aliados vão estar lá para se divertirem um pouco não quero nenhum engraçadinho causando confusão com as meninas que estão lá porque precisam trabalhar.
Trash sorriu, aliviado.
— Combinado. Mas hoje vamos lá como clientes não como chefes a trabalho… Aquelas meninas adoram cuidar de você, deveria deixar mais.
Killer revirou os olhos, suspirando, os olhos ainda vermelhos de fúria contida. Então, sem dizer mais nada, voltou pelos corredores subterrâneos, deixando o corpo inerte e sem coração para trás.