CamilleO som insistente do monitor cardíaco preenchia o quarto vazio, quase como uma companhia sarcástica para o que eu sentia.A cada bip, parecia que ele ria de mim, zombando da minha situação, do peso que me prendia à cama. Meu corpo ainda doía, mas não era só físico. A pior dor era a do medo constante, das perguntas sem respostas, da sensação de que eu estava cercada por inimigos invisíveis.A porta se abriu sem cerimônia, o ranger das dobradiças ecoando pelo quarto. Instintivamente, meus músculos se retesaram. Mas quando ergui os olhos, reconheci as duas figuras que entraram.Minha mãe, Roberta, com seus saltos altos que ressoavam contra o piso como tiros, atravessou o quarto com a elegância forçada de sempre. Seu perfume inconfundível dominou o espaço em segundos, doce e enjoativo, como uma máscara que ela nunca tirava.Atrás dela, meu padrasto, Juan Carlos, seguia com passos firmes e calculados. Ele vestia um terno impecável, como sempre, com aquele sorriso que nunca chegava a
JavierA cidade parecia silenciosa demais para o que eu sentia.Cada rua vazia, cada esquina, cada sombra parecia esconder algo, uma peça do quebra-cabeça que ainda não estava montado. Os fogos da minha raiva queimavam dentro de mim, e o ar ao meu redor, em vez de aliviar, parecia só alimentar a chama. Eu sentia o calor no peito, uma pressão que me fazia acreditar que eu estava prestes a explodir.Olhei pela janela do meu carro enquanto dirigia pelas ruas desertas. As luzes da cidade eram apenas manchas distantes, como uma promessa de algo que eu não conseguia alcançar. Mas eu não estava mais atrás de respostas tranquilas. Eu não queria mais saber quem era o culpado. Eu queria que o culpado sentisse o que eu estava sentindo. Eu queria que essa cidade, inteira, fosse um reflexo da dor que eu carregava.Queimar era a única forma de me livrar disso, e eu estava disposto a fazer isso.A decisão foi simples. Eu não tinha mais paciência, não tinha mais compaixão. Eles queriam respostas? Eu
CamilleO quarto do hospital parecia mais apertado com Javier ali dentro. A energia que ele trazia era tão intensa, tão avassaladora, que parecia sufocar o pouco ar que me restava.Eu havia acabado de acordar, ainda tentando entender onde estava, mas sua presença era impossível de ignorar. Ele estava sentado na beirada da cama, com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos entrelaçadas e o olhar fixo no chão. Era o tipo de postura que ele adotava quando estava tentando conter a raiva.— Javier, o que você está fazendo aqui? — Minha voz soou fraca, mas carregada de irritação.Ele ergueu os olhos para mim, aqueles olhos que podiam tanto me aquecer quanto me congelar. Dessa vez, eles estavam sombrios, carregados de algo que eu não conseguia decifrar.— Eu tinha que vir aqui, Camille. — Sua voz era rouca, quase um sussurro. — Você é minha.Aquelas palavras deveriam me confortar, mas ao invés disso, me irritaram. Tudo nele parecia ser sobre posse, sobre controle. Eu não era um objeto para
JavierA noite parecia mais longa do que qualquer outra que eu já havia vivido.Sentado na poltrona ao lado da cama de Camille, minha mente trabalhava sem parar. A notícia de que ela estava grávida mexia comigo de um jeito que eu não sabia explicar. Era como se, por um breve instante, o peso de tudo o que eu carregava tivesse ficado mais leve. Mas ao mesmo tempo, isso trazia uma responsabilidade que eu nunca imaginei que teria.Eu a observava enquanto ela dormia. Seu rosto, mesmo pálido e cansado, ainda era o mais bonito que eu já tinha visto. Cada respiração lenta e profunda era um lembrete de que ela estava aqui, viva, comigo, e agora carregava algo muito maior. Algo que nos ligava de forma indissolúvel.Levantei-me da poltrona e fui até a janela do quarto. A cidade ainda estava em chamas, pelo menos na minha mente. Eu sabia que lá fora meus homens estavam apagando rastros, controlando a situação que eu mesmo comecei. Mas aqui dentro, tudo parecia calmo.Camille era o centro do meu
CamilleVoltar para casa depois de tudo parecia surreal.O caminho até lá foi silencioso, Javier dirigindo com o olhar fixo na estrada, enquanto eu me concentrava nas ruas familiares que passavam pela janela. O hospital, o medo, e a confusão dos últimos dias ainda pareciam estar gravados em minha pele, mas estar em movimento, indo para um lugar que ainda considerava meu, trazia uma sensação estranha de conforto.Quando o carro finalmente parou em frente à casa, fiquei olhando a fachada por um instante. A estrutura imponente, cercada por altos muros e seguranças estrategicamente posicionados, parecia ao mesmo tempo um refúgio e uma prisão. Javier desceu rapidamente, contornando o carro para abrir minha porta, mas hesitei por um momento antes de aceitar sua mão.Ao descer do carro, fui recebida pela figura efusiva de Carmen. Seus olhos brilhavam com uma mistura de alívio e emoção enquanto ela corria na minha direção, ignorando completamente Javier e me puxando para um abraço apertado.—
Javier6 meses depois O tempo passou de forma estranha.Por um lado, parecia que o mundo lá fora não havia mudado. As ruas continuavam agitadas, a cidade ainda escondia suas feridas, e os rumores de vingança estavam em constante ebulição. Mas, aqui dentro, no refúgio que criei para nós, as horas pareciam se arrastar como se o tempo tivesse parado.Toda noite, quando o sol se escondia atrás dos muros altos da casa, eu me aproximava de seu quarto, como sempre fazia. Não importava o que acontecia lá fora, ou o que mais eu tivesse que lidar, ela sempre vinha primeiro. Camille estava ali, quieta na cama, seu olhar tão distante quanto o de qualquer prisioneira. Mas, para mim, ela estava segura. E isso era o único que importava.A porta se abriu suavemente, o som do rangido da madeira quebrando o silêncio do corredor. Eu a encontrei exatamente como todas as outras noites — sentada na beira da cama, com os olhos perdidos em algum ponto distante da parede. A luz fraca que entrava pela janela
CamilleCada semana, sem exceção, o médico vinha.Ele era sempre o mesmo, com seu olhar clínico e a maneira fria de me tratar, como se minha condição fosse apenas um número em sua prancheta. Não importava o que eu pensava ou sentia. O que importava era o número de semanas que se passavam, o ritmo do meu corpo, o desenvolvimento do bebê. Ele nunca perguntava se eu estava bem, se eu estava feliz. Ele nunca se importou com o que eu pensava sobre o lugar onde estava ou o homem que me mantinha prisioneira.Toda segunda-feira, ele batia na porta com a mesma pontualidade, e eu o recebia, sabendo exatamente o que viria: a medição da barriga, o exame dos batimentos cardíacos do bebê, e nada mais. Javier sempre estava perto, não me deixando sozinha, observando cada movimento com o olhar de um vigilante.Ele acreditava que isso era proteção. Eu sabia que era controle.— Como está se sentindo, Camille? — o médico perguntava, sua voz monótona e impessoal, como se repetisse a mesma frase para todas
CamilleEu nunca imaginei que um simples convite para sair de casa pudesse parecer tão surreal. A ideia de ir até a cidade, respirar o ar fresco, e fazer algo tão trivial como comprar coisas para o bebê parecia uma fantasia, um luxo impossível. Mas quando Suzu entrou no meu quarto naquela tarde, com um sorriso travesso no rosto e uma proposta que parecia até ousada, algo dentro de mim despertou.Ela sempre foi diferente de Javier. Talvez fosse por ser mais nova, talvez por não carregar o peso das responsabilidades que ele carregava. Suzu era uma das poucas pessoas que eu via como alguém fora daquele ciclo fechado em que vivia. Ela ainda tinha liberdade, ou ao menos, parecia tê-la.Mas e eu?Eu era uma sombra que se arrastava pelos corredores da mansão, sempre vigiada, sempre restringida. A ideia de escapar, mesmo que por algumas horas, era tentadora, mas a incerteza sobre as consequências de algo tão simples me deixava inquieta.— Camille, eu sei que você está cansada de ficar aqui o