CAPÍTULO 3 –  A SOMBRA DO HOMEM

O dia avançou devagar, mas a cabeça de Camila parecia girar numa velocidade que beirava o insuportável. Cada detalhe da Hacienda Villalba exigia atenção absoluta. Cada corredor, cada porta trancada, cada olhar atravessado de algum funcionário que parecia mais leal à família do que à própria consciência.

Aquela não era uma empresa comum.

Era um território de poder.

O vale que cercava a propriedade era silencioso no fim da tarde, com o sol caindo atrás das montanhas e tingindo tudo de dourado. Mas dentro dos muros, a movimentação só aumentava. Caminhões descarregavam barris, trabalhadores limpavam equipamentos, técnicos circulavam com pastas e tablets. Uma coreografia perfeitamente ensaiada.

Camila caminhou pelos corredores do laboratório com passos calculados. Já tinha memorizado as salas principais: fermentação, destilação, análise sensorial, controle de qualidade e a ala antiga onde os arquivos sobreviviam como ossos de um passado enterrado pela família.

Era ali que ela tinha encontrado a pasta azul.

Era ali que ela precisava voltar mais tarde.

Mas, antes disso, precisava parecer uma funcionária comum, dedicada, eficiente, obediente. O tipo de pessoa que não gerava desconfiança.

O problema é que Rafael Villalba já desconfiava.

Ela sentia quando ele estava perto. Era quase físico. O ar mudava. O ambiente ficava mais tenso. Funcionários endireitavam a postura. Vozes baixavam. E Camila ficava ainda mais alerta, porque quanto mais ele olhava, mais parecia notar algo que não fazia sentido para ele.

Ela precisava manter distância.

Precisava trabalhar nas sombras.

Precisava ser invisível.

E estava falhando miseravelmente.

A porta do laboratório se abriu. Um funcionário anunciou que haveria uma reunião geral com a equipe de engenharia na sala de conferências. Todos começaram a guardar materiais, desligar equipamentos e seguir o fluxo.

Camila foi junto.

A sala de conferências tinha janelas altas, mesa comprida de madeira e uma tela grande onde relatórios eram projetados. A equipe se acomodou enquanto o supervisor iniciava orientações sobre produção. Metas. Normas. Segurança. Nada que interessasse a Camila além dos pontos que poderiam indicar falhas estruturais ou brechas de acesso.

A apresentação estava quase terminando quando Rafael entrou.

Era impressionante como o ambiente mudava imediatamente.

Como se a presença dele tivesse um peso próprio.

Ele caminhou até a cabeceira da mesa, parou ali e cruzou os braços. Observou todos em silêncio antes de falar. E quando falou, a sala inteira pareceu ajustar a respiração para ouvi-lo.

— Tive acesso aos relatórios desta semana. A fermentação do lote 37 apresentou queda na curva alcoólica. Não quero esse tipo de erro repetido.

A voz dele tinha uma firmeza que não permitia desculpas.

O supervisor assentiu, tentando manter a compostura.

— Estamos reavaliando os sensores de temperatura, senhor. Acreditamos que possa ter havido oscilação no...

— Eu quero resultados, não teorias — Rafael cortou. — Se o lote cair de novo, eu mesmo assumo o controle da área.

Não era uma ameaça.

Era um aviso.

Camila percebeu a tensão dos colegas.

Não era medo.

Era respeito misturado com receio, como se trabalhar bem fosse a única maneira de manter distância de problemas.

O olhar de Rafael percorreu a mesa até parar nela.

Ele não disfarçou a curiosidade.

Camila também não recuou.

Ele segurou o olhar dela por tempo demais, e isso gerou murmúrios sutis entre dois técnicos. Não era comum que Rafael se fixasse em alguém. Muito menos em uma funcionária nova.

Mas ele fixava.

Quando a reunião terminou, todos começaram a sair. Camila tentou sair rápido, mas Rafael segurou seu braço por um instante.

— Preciso de um minuto com você.

Ela se virou devagar.

— Claro.

Ele não disse nada ali. Apenas indicou com um gesto para que ela o acompanhasse até um corredor lateral, mais discreto, onde janelas davam vista para os campos e o cheiro do agave entrava com a brisa quente.

Quando pararam, Rafael a observou com a mesma intensidade que tivera no primeiro dia.

— Qual é sua experiência real com fermentação? — ele perguntou.

Camila manteve a expressão neutra.

— Está no meu currículo.

— Seu currículo é impecável demais — ele disse.

Ela não piscou.

— Impecável é um problema?

Ele a analisou mais um pouco, com um pouco de irritação e outro pouco de fascínio.

— Impecável costuma significar que alguém está encobrindo defeitos. Ninguém produz relatórios perfeitos durante três anos seguidos em destilarias diferentes.

A pulsação de Camila acelerou.

— Talvez eu seja apenas boa no que faço.

— Ou talvez tenha vindo para algo além do trabalho — Rafael respondeu.

Era perigoso continuar ali.

Mas recuar seria admitir culpa.

— Vim porque preciso — ela disse, sem vacilar.

Ele aproximou o rosto, ainda mantendo uma distância respeitável, mas perceptível o bastante para deixar o corredor carregado.

— Todos precisam de algo, Camila. A questão é o que você quer da minha Hacienda.

Ela respirou fundo.

Se entregasse emoção, ele perceberia.

Se entregasse medo, ele caçaria.

— Quero apenas trabalhar — afirmou.

O silêncio entre os dois parecia outro diálogo.

Rafael inclinou a cabeça, como se estudasse a estrutura dela. A postura. A escolha das palavras. O controle. Ele era um homem treinado para ler pessoas, e ela sabia disso. Por isso mesmo estava ali. Porque provocá-lo era inevitável, mas deixá-lo descobrir sua verdade seria fatal.

Quando ele finalmente recuou um passo, Camila percebeu que a conversa tinha afetado mais do que deveria.

— Continue com seu trabalho — ele disse. — Eu ficarei de olho.

Era tanto advertência quanto promessa.

Ele se afastou pelo corredor, caminhando com aquela firmeza silenciosa de quem nunca duvida do próprio domínio. Camila ficou ali por alguns segundos, recuperando o fôlego. A cada encontro com ele, algo dentro dela ficava mais tenso, mais alerta, mais preparado para uma guerra que ela carregava no corpo inteiro.

E ele estava longe de imaginar quem ela era.

Mas em breve descobriria.

Ao voltar para o laboratório, encontrou uma notificação no computador: acesso liberado para setores adicionais mediante supervisão. Aquilo só poderia ter vindo de Rafael. Ele estava testando ela. Queria ver até onde iria.

Perfeito.

Testes duplos eram a especialidade dela.

No fim do expediente, quando a maior parte dos funcionários já tinha ido embora, Camila voltou discretamente para a ala antiga. O corredor estava semiapagado, e o cheiro de madeira velha e papel guardado a anos se misturava ao ar quente.

Ela entrou na sala de arquivos. Ligou apenas a luminária de mesa e começou a vasculhar pastas, folhas soltas, anotações antigas do patriarca. Toda vez que encontrava o nome do pai, o peito dela apertava de um jeito que ela não conseguia impedir.

Foi quando viu algo diferente.

Uma pasta mais fina, marcada apenas com um número.

Sem etiqueta.

Sem código.

Abriu.

Ali estavam gráficos completos da fórmula do Agave Azul, muito mais detalhados que a pasta incompleta do dia anterior. E havia mais: assinaturas, datas, relatórios de teste, observações. Todas escritas no idioma técnico do pai dela. E todas datadas depois da demissão dele.

A boca de Camila ficou seca.

Eles usaram o conhecimento do pai.

Depois o descartaram como lixo.

O som de passos no corredor a fez congelar.

Ela apagou a luz e se encolheu atrás de uma estante.

Os passos se aproximaram.

Fortes.

Firmes.

Reconhecíveis.

Rafael.

Ele abriu a porta lentamente.

Entrou.

Ligou a luz.

Olhou a sala inteira, como se procurasse algo específico. Ou alguém.

O coração de Camila martelava tão alto que ela sentiu medo de que ele pudesse ouvir. Ele deu mais alguns passos, analisando prateleiras, olhando o chão, respirando fundo como se tentasse captar sinais de movimento.

Se desse mais dois passos, veria ela.

Se visse, acabava ali.

Mas Rafael hesitou.

Olhou uma última vez ao redor.

Desligou a luz.

E saiu.

Camila ficou imóvel até ouvir os passos se afastarem completamente.

Só então pôde respirar.

Guardou a pasta contra o peito, como quem protege algo precioso e perigoso.

Ali estava a prova.

Ali estava o começo da queda dos Villalba.

Ali estava o motivo pelo qual Rafael nunca poderia descobrir quem ela era.

E, mesmo assim, era nele que ela não conseguia parar de pensar.

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