CAPÍTULO 2 – O REINO DELE

O e-mail de confirmação chegou às seis da manhã.

Camila abriu a mensagem ainda deitada, o celular iluminando o quarto simples da pousada onde estava hospedada. A Hacienda Villalba a contratara oficialmente como engenheira química da equipe de fermentação.

Ela fechou os olhos por um instante.

Tinha vencido a primeira barreira.

Agora entraria no coração do império que destruiu seu pai.

Tomou um banho rápido, prendeu o cabelo e vestiu o uniforme que recebera no dia anterior. Calça preta, camisa branca, identificação provisória. Tudo parecia comum. Nada nela revelava que era uma inimiga entrando pela porta da frente.

No caminho para a Hacienda, o sol ainda subia. O vale estava calmo, quase bonito, com a luz refletindo nos campos de agave como lâminas azuladas. Camila sentiu o estômago apertar ao perceber que aquela mesma vista tinha feito parte da infância dela. O pai dizia que cada planta tinha um coração, e que só quem escutava conseguia extrair o melhor de cada lote. Agora tudo aquilo pertencia aos Villalba.

Quando estacionou no pátio externo da empresa, viu caminhões descarregando caixas de madeira, funcionários caminhando apressados e a equipe de segurança posicionada perto da entrada principal. A movimentação tinha um ritmo militar, e não era coincidência. Rafael Villalba tinha servido como oficial por quase dez anos antes de assumir os negócios da família.

Camila entrou no prédio administrativo e seguiu até o laboratório, onde a nova equipe já estava reunida. O engenheiro grisalho da entrevista a recebeu com um aceno cordial.

— Bem-vinda à equipe, Camila.

Ela sorriu com educação.

A sala era grande, com janelas amplas voltadas para os campos. Equipamentos cintilavam sob a luz da manhã. Computadores exibiam gráficos de fermentação. Havia cheiro de álcool, aço e detergente. Era um ambiente que ela conhecia bem, mas este tinha uma tensão invisível pairando no ar. Algo sobre a organização, sobre o silêncio, sobre o peso da estrutura ao redor. Como se cada parede tivesse ouvidos.

Começou o treinamento padrão. Protocolos. Segurança. Checklist diário. Função de cada tanque. Rotina de monitoramento dos açúcares, medições de pH, temperatura e densidade. Tudo muito técnico, tudo muito correto.

Mas Camila não estava ali para cumprir ordens.

Estava ali para derrubar um império.

Pouco antes do intervalo, o ambiente ficou mais quieto de repente.

Uma interrupção quase imperceptível atravessou a equipe. Não foi som. Foi postura.

Rafael Villalba entrou.

Ele caminhava com firmeza, mas sem pressa, como alguém que sabia que o tempo sempre se ajeita ao redor dele. A camisa preta sem gravata revelava a linha dos músculos sob o tecido. O olhar varria a sala de maneira metódica, registrando tudo, avaliando tudo. Quando parou perto da mesa principal, o laboratório inteiro pareceu encolher.

— Bom dia — disse ele.

A voz tinha aquela calma que não admitia questionamentos. Alguns responderam baixinho. Outros apenas abaixaram a cabeça. Camila permaneceu imóvel, controlada, tentando não atrair atenção.

Mas Rafael a viu.

O olhar dele pousou nela como se quisesse atravessar cada camada de mentira que ela construíra. Não foi um reconhecimento completo, apenas a sensação de que ele tentava ligar pontos que ainda não existiam.

— A nova engenheira — ele comentou, direcionando a frase ao supervisor.

— Camila Ríos. Começa hoje — explicou o engenheiro.

Rafael assentiu, mas não disse nada.

Caminhou até ela devagar, como se aproximar fosse um teste para medir o comportamento dela.

— Espero que esteja preparada para aprender processos que não vai encontrar em lugar nenhum — ele falou.

Camila manteve a expressão controlada.

— Estou preparada para trabalhar — respondeu.

Ele deu um sorriso quase invisível.

Não era gentileza.

Era interesse calculado.

— Veremos — disse apenas.

E saiu da sala com a mesma autoridade com que entrou.

Camila soltou o ar lentamente.

Era impressionante como ele conseguia perturbar o ambiente inteiro com tão poucos gestos. O problema é que ele também a perturbava, e isso era inaceitável.

Durante o resto da manhã, ela tentou se concentrar nos tanques, nos gráficos e nos relatórios. Queria apenas cumprir as primeiras horas sem chamar atenção. Mas quanto mais tentava parecer neutra, mais sentia que alguém a observava.

E alguém realmente observava.

No prédio ao lado, dentro da sala de segurança, Rafael assistia pelo monitor à movimentação do laboratório. Ele não costumava perder tempo com novos funcionários, mas havia algo nela que o incomodava. Algo que não combinava com o perfil padrão de engenheiros contratados pela empresa. E ele conhecia bem demais o próprio território para ignorar a intuição.

Não sabia quem ela era.

Ainda.

Mas sabia que não era uma contratada comum.

Camila, alheia aos olhos sobre ela, recebeu o crachá definitivo e foi autorizada a circular por áreas específicas da destilaria. Na hora do almoço, caminhou pelo pátio interno em direção ao refeitório, tentando memorizar o caminho e observar saídas laterais. Qualquer brecha poderia ser útil mais tarde.

Foi ali que viu Luna Villalba pela primeira vez.

A meia-irmã de Rafael caminhava entre funcionários como se estivesse desfilando. O vestido claro contrastava com a maquiagem impecável. O sorriso era tão bonito quanto vazio. Ela era o tipo de mulher que sabia exatamente quando estava sendo observada e se aproveitava disso. Quando cruzou os olhos com Camila, inclinou levemente a cabeça, como se reconhecesse algo desconfortável.

Camila desviou e continuou andando, mas sentiu peso naquela troca silenciosa.

Luna parecia uma ameaça que sorria demais.

Após o almoço, a equipe retornou ao laboratório. Camila analisou relatórios antigos, estudando padrões. Procurava qualquer vestígio da fórmula roubada do pai, algo que mostrasse que os Villalba tinham usado o conhecimento dele para enriquecer sem pagar nada.

No fundo de uma gaveta, encontrou uma pasta marcada como “Projeto Azul — Arquivo Morto”. O coração dela acelerou. Abriu devagar e viu gráficos familiares, anotações que lembravam o estilo do pai. Mas tudo estava incompleto. Os dados importantes tinham sido arrancados.

Ela mal teve tempo de registrar aquilo.

A porta se abriu atrás dela.

Rafael estava ali.

Silencioso.

Observador.

Atento demais.

O olhar dele desceu para a pasta aberta.

Depois subiu até o rosto dela.

— Está estudando arquivos antigos? — ele perguntou.

Camila fechou a pasta.

— Apenas me familiarizando com a produção.

Ele não acreditou.

Ela sabia que ele não acreditou.

Mas Rafael não fez mais perguntas. Apenas ficou parado por alguns segundos, como se estivesse tentando decifrá-la de novo.

— Continue — disse, e saiu.

Camila permaneceu imóvel até ter certeza de que ele já estava longe.

Guardou a pasta e respirou fundo.

Era só o primeiro dia.

E ela já estava chamando atenção.

Perigoso demais.

Exatamente como planejou.

Exatamente como precisava ser.

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