Mundo ficciónIniciar sesiónCamila saiu do corredor onde Rafael a confrontou e voltou ao laboratório tentando se recompor. As mãos estavam firmes, mas o peito latejava como se tivesse acabado de correr uma distância longa. Não era medo. Era irritação. Ele conseguia tirá-la do eixo com facilidade, e isso era perigoso demais.
O laboratório estava mais cheio naquele fim de tarde. Técnicos analisavam amostras, computadores piscavam com números em tempo real, e o leve aroma alcoólico se misturava ao cheiro metálico do ambiente. Tudo parecia normal para quem não tinha motivos para desconfiar de nada. Mas Camila já percebia os microdetalhes. A forma como os funcionários evitavam certas portas. A pressa para desviar de determinados setores. A ausência total de arquivos digitais antigos. Era um sistema construído para esconder rastros.
E no meio disso estava Rafael, que era dono não só da Hacienda, mas também do medo e da reverência que caminhavam pelos corredores.
Camila pegou uma prancheta e fingiu que revisava relatórios enquanto observava o supervisor reorganizar os tanques para a próxima batelada. O movimento dos funcionários criava uma coreografia que ela precisava memorizar: quais sensores eram checados com frequência, quais fases eram mais vulneráveis, quem manipulava as chaves de acesso à sala de controle.
Ela precisava de tudo.
Quando anotou algumas observações, percebeu que o ar atrás dela mudou. Um calor diferente atravessou o espaço. Ela sabia quem era antes mesmo de virar.
Rafael.
Ele não disse nada. Apenas caminhou lentamente entre as mesas, observando a equipe, analisando registros, conferindo telas. O terno estava trocado por uma camisa cinza de mangas dobradas, revelando antebraços fortes e uma tatuagem discreta próxima ao pulso. O relógio brilhou quando ele ajustou a tela de um monitor. Alguns funcionários ficaram mais rígidos, outros mais rápidos. Ninguém queria errar perto dele.
Camila tentou ignorar sua presença, mas era impossível. Ele se aproximou da mesa dela e olhou o relatório que ela estava analisando.
— Você anotou uma alteração no rendimento do lote 12 — ele disse.
Ela virou a prancheta para que ele visse melhor.
— A densidade caiu mais rápido do que o esperado. Pode ser variação natural, mas prefiro acompanhar mais duas medições antes de definir.
Rafael estudou a anotação, depois estudou ela.
— Bom raciocínio — disse. — Continue verificando.
Ele poderia ter ido embora. Mas não foi.
Ficou observando Camila por mais alguns segundos, como se ainda buscasse algo nela que não conseguia nomear.
Quando finalmente se afastou, ela soltou o fôlego que nem sabia que estava prendendo.
O restante da equipe começou a encerrar o turno. Um a um, os funcionários foram retirando jalecos, guardando materiais e deixando o laboratório com passos cansados. Em poucos minutos, apenas Camila permaneceu ali. Ela esperou o som dos últimos passos desaparecer antes de se mover.
Precisava voltar aos arquivos. E precisava fazer isso antes que o sistema de segurança mudasse para o modo noturno.
Pegou a pasta improvisada com alguns papéis irrelevantes e caminhou pelo corredor em ritmo normal, como se estivesse apenas terminando uma tarefa rotineira. Desceu a escada lateral, atravessou um corredor estreito e entrou na ala antiga, onde a poeira acumulada e o cheiro de madeira envelhecida davam a sensação de que o tempo tinha parado.
A sala de arquivos estava do jeito que ela deixara no dia anterior. Escura. Intocada. Um eco fraco vindo da estrutura pesada das paredes. Ela acendeu a pequena luminária sobre a mesa e começou a procurar mais documentos que pudessem complementar o dossiê do pai.
Abriu gavetas, analisou etiquetas, passou a mão por folhas amareladas que guardavam décadas de produção. Encontrou registros que datavam do início da Hacienda. Encontrou anotações do patriarca sobre produtividade. E encontrou também uma pasta com o nome de Luna.
Quando abriu, encontrou relatórios de compras, movimentações financeiras, notas de recebimento de agave que não batiam com o volume declarado. Havia números escondidos, assinaturas duplicadas, lacunas propositalmente preenchidas com tinta borrada.
Luna estava envolvida em algo maior do que parecia.
Camila guardou a pasta na mesa para revisar depois. Continuou buscando outra coisa, talvez a continuidade da fórmula roubada, talvez provas de adulteração. Qualquer coisa que ajudasse a destruir os Villalba por dentro.
Mas encontrou algo mais forte.
Um bloco de notas com a letra do pai.
O coração dela apertou no peito.
Abriu devagar, como se o papel pudesse se desfazer nas mãos.
Havia anotações técnicas, cálculos, observações sobre amostras. E havia também uma frase sublinhada.
“Eles vão usar meu trabalho. Mas não vão admitir.”
O ar ficou pesado.
Camila sentiu uma mistura de raiva e tristeza percorrer o corpo.
Guardou o bloco no bolso do jaleco.
Quando se virou para sair, ouviu passos no corredor.
Seu corpo reagiu antes da mente.
Desligou a luminária.
Encostou na estante.
Prendeu a respiração.
A porta se abriu devagar.
Rafael.
Ele entrou com o celular na mão, a luz iluminando parte do rosto. Olhou a mesa, olhou as estantes, caminhou alguns passos para dentro. O som do couro dos sapatos ecoou no piso antigo, cada batida se aproximando mais.
Ele parou perto da mesa, analisou a pasta de Luna que Camila esqueceu aberta. Tocou nos papéis. Anotou mentalmente algo que viu. A expressão se tornou séria, densa, carregada de cálculo.
Se ele desse mais um passo, veria Camila ali.
Mas algo chamou a atenção dele no corredor. O barulho de um funcionário passando mais adiante. Ele virou o rosto ligeiramente, ouviu, avaliou.
E decidiu sair.
Fechou a porta devagar.
Os passos se afastaram até sumirem.
Camila esperou alguns segundos antes de se mover. Só então deixou o ar sair dos pulmões.
Voltou para a mesa, guardou a pasta de Luna, apagou todos os rastros da presença dela e saiu da ala antiga da mesma forma discreta que entrou.
Ao voltar para a pousada naquela noite, o cansaço físico era mínimo comparado ao desgaste mental. Ela tirou o jaleco, sentou-se na beira da cama e abriu o bloco do pai novamente. Leu cada linha, cada anotação, cada sinal de que ele já sabia que seria destruído pelos Villalba.
— Eu prometo que vou corrigir isso — murmurou, com a voz baixa, firme.
O vale de Jalisco não esqueceria o nome Ríos tão facilmente.
E Rafael Villalba, com todos os seus olhos atentos e sua força de comando, ainda não tinha ideia do que estava prestes a enfrentar.







