Mundo de ficçãoIniciar sessãoPOV: HANNAH SIMMONS
DOIS ANOS APÓS O JANTAR A gente não percebe que está num relacionamento abusivo até que o silêncio doa mais do que a voz. São 2:35 da manhã e mais uma vez eu desperto aflita de um sonho onde eu poderia morar, antes de tudo se transformar num completo pesadelo. Lá fora o céu chora, como se estivesse decidido a me acompanhar nesse luto que nem sei nomear. Já se passaram 2 anos e ainda revivo os mesmos segundos na minha mente, noite após noite. O sorriso. O cheiro. A mentira! Nada disso é só sobre o Nicholas. Ou sobre o que poderíamos ter sido se eu não o tivesse deixado lá, naquela calçada, sozinho na chuva. É como se tudo estivesse se misturando — como se os fantasmas de antes tivessem determinados a ficar para o jantar. Como se aquele maldito tivesse voltado. "Você tá exagerando, Hannah. Não seja dramática demais." A voz dele ainda ecoava na minha cabeça. A do homem que dizia me amar, enquanto destruiu meu mundo dentro de um terno bem passado. 6 ANOS ANTES Foi no segundo ano da faculdade que eu o conheci. Nessa época dividia a casa com Scarlet, Emma e, claro, Claire. As aulas tinham acabado de começar e Emma me pediu para ajudar no bar do seu namorado, Collin. Essa costumava ser a época mais tumultuada, muitos alunos novos chegando no campus e prontos para criar todo tipo de problema. Nos ajudávamos como podíamos e em alguns finais de semana, ajudávamos Emma e Colin no bar. Alguns amigos do Collin sempre apareciam também. Cheguei um pouco antes do horário do bar abrir e já tinham alguns amigos do Collin, Claire e Scarlet arrumando tudo para iniciar o serviço, eu fui para o estoque pegar algumas bebidas para repor no bar e copos extras. Não era exatamente um lugar muito organizado! Era um imóvel antigo e o estoque era no que parecia ser um porão em outros tempos, mas chegava a ser ridículo cogitar que aquilo ali servia pra qualquer coisa, mal tinha espaço e com todas as prateleiras e caixas, se tornava claustrofóbico ainda. Mas lá estava eu, no auge dos meus 1,60m tentando alcançar as prateleiras e equilibrar copos, literalmente. Acho que deve ter sido uma cena deplorável, porque nesse momento um dos amigos do Collin surgiu atrás de mim com uma voz incrivelmente imponente — Isso parece uma receita para o desastre! Sem conseguir me mover muito para ver o dono da voz, olhei por cima do ombro e não pude evitar de destilar todo o veneno do sarcasmo — E você parece o tipo de pessoa que observa os desastres de longe tomando cerveja e narrando pra plateia. Ele riu, nada surpreso. A voz era grave, envolvente, mas havia algo... afiado demais naquele sorriso. — Às vezes é mais interessante assistir de perto. — disse, dando um passo à frente e entrando no estoque ao meu lado para pegar os copos que eu estava tentando equilibrar. — Sem querer te assustar, é claro. Mas você estava a três segundos de se transformar num acidente de trabalho. Revirei os olhos, mas deixei que ele me ajudasse. Eu ainda não sabia o nome dele — só sabia que era um dos amigos do Collin. Nunca o tinha visto antes, mas muito provavelmente é mais um daqueles idiotas charmosos que vivem de flertar até com a própria sombra. — Não me lembro de pedir ajuda. — Resmunguei, pegando uma das garrafas que ele colocou ao meu lado. — E ainda assim, aqui estou. — respondeu ele, inclinando a cabeça com aquele maldito sorriso lateral. — Me chamo Adrian, a propósito. — Hannah. — disse, meio relutante, ainda olhando pra ele com desconfiança. Ele me estendeu a mão. Ignorei. Ele riu. — Já gostei de você. — Que azar o seu. — Dei as costas e sai do estoque. Mesmo sem ver, senti o olhar dele grudado em mim. E algo me dizia que, naquele exato momento, eu tinha acabado de atrair o tipo errado de atenção. A noite foi longa. O bar ficou lotado logo após as 22h e entre pedidos de cerveja, empurrões e gente bêbada tentando subir no balcão, não havia muito espaço para respirar. Eu, como sempre, fiquei responsável pelo bar. Preparando os drinks e tentando não enlouquecer. Adrian acabou ficando por perto o tempo todo. Dizia que estava "ajudando", mas no fundo sei que essa não era de fato a intensão dele. Mas admito que receber atenção de um homem bonito e ter um leve flerte durante o trabalho ajudou a não perceber o cansaço chegar. — Você se diverte com isso? — Você se diverte observando mulher trabalhar? — Touche! — Ele sorriu. — É só que você parece... deslocada. — Uau. Tá tentando flertar ou me expulsar? Ele riu. — Talvez um pouco dos dois. — disse com um meio sorriso que parecia esculpido com precisão. — Sinceramente, é difícil não te notar. Revirei os olhos, como sempre. Mas admito que me senti corar. O caos no bar seguiu por mais algumas horas até que um cara, visivelmente bêbado, se apoiou no balcão onde eu estava sozinha, cortando o fluxo dos pedidos. Tentei ignorar educada. Ele riu de algo que eu não faço a menor ideia, se inclinou por cima do balcão e, antes que eu pudesse reagir, a mão dele escorregou da bancada direto pra minha cintura e tentou me puxar para um beijo. O estalo veio antes do grito. E não foi meu. Adrian estava do outro lado e em segundos. Com a mandíbula perfeitamente desenhada travada, os olhos de um tom azul acinzentado cortante se sombrearam como os de um predador e ele agarrou o pulso do cara e o empurrou de volta com um controle assustador. — Pede desculpa. Agora. — disse ele, sem elevar a voz, mas com um tom que faria qualquer um tremer. O bêbado resmungou e recuou — e logo Collin apareceu para expulsá-lo de vez. Eu? Tentei disfarçar. Mas Collin percebeu que minhas mãos tremiam. — Tira um intervalo Hannah, vai lá pra dentro de acalmar. Eu cuido de tudo aqui. Dei a volta no balcão e fui direto para o estoque sem dizer nada. Lá dentro, longe da música e do calor humano, encostei as costas em uma das estantes de bebidas e tentei respirar fundo. Mas não consegui segurar. A adrenalina virou um choro contido, nervoso, de quem estava cansada de sempre ter que se proteger. — Hannah? — a voz dele veio baixa, próxima. Tentei enxugar o rosto e disfarçar, mas já era tarde. Ele entrou e, por acidente, chutou a porta atrás de si para fechá-la — sem perceber que havia empurrado a caixa que a mantinha aberta. Um clique baixo nos envolveu. Estávamos trancados. — Merda. — Ele murmurou, mas não se moveu. Só me olhou. — Você tá bem? Assenti, sem convicção. — Sim. Foi só mais um babaca! Eu só… odeio que pensem que podem fazer isso. Odeio parecer fraca. — Não foi fraqueza. — Ele disse, se aproximando devagar, sem invadir meu espaço. — Você lidou com aquilo muito melhor do que muita gente que eu conheço. — Você me conhece há duas horas. — E já é o suficiente pra eu saber que você é diferente. Suspirei, baixando os olhos. Sentia o coração na garganta, e não era só pela confusão do momento. Era por ele. Por aquele estranho que parecia enxergar algo que nem eu sabia explicar. Ele se aproximou mais um passo. — Sempre tenta bancar a durona? — Sempre tenta parecer um príncipe? — Não. Sou um babaca. Meus olhos encontraram os dele. Tão profundos, frios... e ao mesmo tempo, ali, naquela penumbra, pareciam quase humanos. Ele ergueu a mão devagar e puxou uma mecha do meu cabelo para trás da orelha. — Você merece alguém que veja a mulher forte que é... sem tentar diminuir isso. O gesto foi delicado. Quase respeitoso demais. Mas minha pele formigou. — E você? Quem é você, afinal? — Adrian. — disse com um sussurro. — Eu já te disse! Não costumo ter que me apresentar. Afinal, todo mundo que se aproxima espera ganhar algo de mim. — E o que eu ganharia de você? — perguntei, num sussurro quase sem fôlego. Ele se aproximou mais, agora a centímetros. E por um segundo, tive certeza de que ele ia me beijar. Mas não. Ele só encostou a testa na minha e fechou os olhos. — Paz. E talvez você me traga isso também. E eu acreditei. Ali, naquele estoque claustrofóbico, rodeada de caixas e sombras… eu acreditei. E isso foi o começo do meu fim. TRÊS DIAS APÓS A NOITE NO BAR O fim de semana passou e finalmente as aulas começaram para valer. A primeira semana é sempre uma aula de apresentação, quase ninguém comparece. Ainda assim, lá estava eu, como sempre, no horário, com a pretensão de começar o semestre com foco. Me sentei na terceira fileira, como de costume. Nem tão perto a ponto de parecer desesperada, nem tão longe a ponto de ser esquecida. Scarlet havia me mandado mensagem dizendo que estava com preguiça e Claire estava atrasada, como sempre. Então eu estava sozinha quando ele entrou. Sim, Ele. Adrian. O homem do estoque. O cara do bar. O cara em quem eu poderia ter dar uns amassos a dois dias atrás. Com um paletó escuro e a barba feita, atravessando a sala com um maço de folhas na mão e um tom seguro demais para quem, na última vez que vi, estava com a testa encostada na minha e a respiração quente sobre meu rosto. Ele parou na frente da sala, escreveu o nome no quadro com uma letra firme e virou-se para a turma. — Bom dia. Para quem ainda não sabe, meu nome é Adrian Sterling. Vou ministrar a disciplina de Sistemas Críticos neste semestre. Meu estômago simplesmente deu um nó quando seus olhos vieram diretamente na minha direção. Percebi que também parece ter lhe faltado o ar por um segundo ou dois. Mas então, ele começou a explicar o conteúdo da ementa e fingiu que eu não estava ali. Nenhum olhar. Nenhum sorriso. Nada. Como se nosso encontro no bar tivesse sido um delírio meu. Mas eu sabia que não foi. Na saída da aula, ele estava me esperando no corredor. — Preciso falar com você. — disse baixinho, desviando o olhar ao redor. — Professor? — devolvi, arqueando a sobrancelha. Ele suspirou. — Eu não sabia que você era aluna. Isso muda muito as coisas. A gente precisa manter distância. Pelo menos até o fim do semestre. — Engraçado. Dois dias atrás você parecia bem confortável com a ideia de me beijar num porão sujo. — Eu ainda quero isso. Deus sabe o quanto eu quero! — ele disse, baixo. — Mas não posso. Preciso ser discreto. E foi. Por um tempo. Nos primeiros meses, Adrian era pura doçura. Todo mundo dizia que eu estava vivendo um sonho. Ele me esperava na porta da sala depois das aulas com um cappuccino quente e um sorriso mais quente ainda. Deixava bilhetes no meu armário da faculdade com frases como “Sua mente é meu lugar preferido.” Mandava flores nas segundas-feiras com cartões que diziam “Pra sua semana começar com beleza, como você.” Teve um dia em que choveu forte e eu cheguei ensopada à aula. Quando saí, havia um casaco novo me esperando na mochila com um post-it: “Se você vai conquistar o mundo, precisa se proteger melhor dele.” Era irresistível. E eu, burra de amor, confundi atenção com afeto. Cuidado com carinho. Controle com proteção. Demorou para eu perceber os sinais. — “Você é brilhante, Hannah. Mas precisa parar de querer provar isso o tempo todo.” Ele disse isso sorrindo, com a mão na minha nuca, depois de uma apresentação em que meu grupo recebeu aplausos. — “Não tem que parecer perfeita. Eu gosto de você até quando erra.” E ali estava o veneno, sutil, doce. Eu não entendi aquilo como um corte. Mas era. Ele não queria que eu brilhasse demais. Só o suficiente pra ele estar do meu lado. Na noite do meu primeiro artigo publicado na revista acadêmica da faculdade, levei uma garrafa de vinho pra casa e estava empolgada demais para contar. Ele me beijou, sorriu... E sumiu no celular o resto da noite. — “Você não sabe comemorar as coisas com leveza. Tudo com você é com muita intensidade.” Dois dias depois, sem que eu percebesse, ele ativou o modo avião do meu celular enquanto eu dormia. — “Você precisa descansar. A gente não funciona bem com 4 horas de sono.” Na época, achei... fofo. Hoje, percebo: ele já não queria que eu estivesse disponível para o mundo. Que meus horários fossem só dele. E quando Claire começou a perceber os sinais, ele agiu rápido. — “Claire não entende a gente. Ela se mete demais. É tóxica pra você. Ela inveja o que nós temos.” — “Talvez você devesse se afastar. Nem todo mundo torce por você como eu.” Ele foi me isolando devagar. Como quem cerca um jardim antes de arrancar as flores. Teve um dia em que eu chorei depois de uma briga idiota. Eu disse que me sentia sufocada. Ele segurou meu rosto entre as mãos e disse: — “Eu só fico assim porque me importo. Você me faz agir desse jeito.” E eu acreditei. Como toda mulher que ama o suficiente pra aceitar a culpa pelo que não fez. Mas o pior, o mais cruel, foi a última fase. Já morávamos juntos. Já não via Claire, Scarlet ou Emma há semanas. Já não saía sozinha. Já me sentia culpada por querer ir à biblioteca sem ele. Foi num domingo à noite. Eu estava estressada com prazos, e ele — como sempre — tentou se meter no meu projeto. — “Você ainda tá nessa ideia? Você não percebe que está indo longe demais?” — “É o meu projeto, Adrian. Não seu.” — “Claro que não é meu. Porque se fosse, já estaria pronto. E funcional. Mas você quer mais do que pode carregar. E vai falhar. Vai se destruir tentando. Porque é fraca.” Eu fiquei em silêncio. Travei. Senti como se tivesse sido golpeada por dentro. Ele se aproximou devagar, me abraçou e sussurrou: — “Eu só quero te manter inteira. Porque sozinha, você se quebra.” Aquilo me rasgou por dentro. Eu percebi ali: ele nunca me amou. Ele só amava me fazer depender dele. Era como se eu fosse uma peça preciosa... que ele queria quebrar só pra ter o prazer de colar de volta do jeito dele. Mas mesmo eu tentando manter distância, Adrian sempre dava um jeito de estar por perto. No corredor. No bar. Num grupo de estudos que ele “passava só para conferir”. No início era sutil. “Você precisa dormir mais cedo.” “Esse seu amigo não parece confiável.” “Eu acho que você se distrai muito com essas festas da Claire.” Depois virou hábito. “Mudei seu alarme. Você tem dormido mal.” “Apaguei aquele cara do seu I*******m. Não gostei do jeito que ele comenta suas fotos.” “Eu falei com sua coordenadora. Achei melhor você não aceitar aquele estágio. Eles têm um histórico ruim com alunos.” Quando percebi, já estávamos morando juntos e simplesmente fazíamos tudo junto. Mal via meus amigos, exceto pela Claire, que nunca aceitou bem as imposições do Adrian. Eu ainda estava apaixonada. E apaixonada, não queria enxergar quem ele realmente era. Eu me apegava à versão dele que me salvou no porão, que me trouxe paz, que me dizia que eu era diferente.






