O mauricinho de Beverly Hills
O mauricinho de Beverly Hills
Por: Katherine Salles
CAPÍTULO 1

Assim que pisei na Califórnia, dei de cara com Kevin e seu Mustang vermelho que parecia ter acabado de sair da concessionária. Ele (Kevin, não o carro) era alto, mas não chegava a merecer o título de "poste". Parecia magro, porém através da camiseta branca justa, estilo James Dean, percebi que seu corpo era repleto de músculos definidos, embora discretos. Era meu tipo preferido de beleza masculina, apesar de, na minha atual situação, eu costumar ter pouco tempo e energia para pensar sobre garotos. Bem... Kevin não era exatamente um garoto, sua fisionomia era máscula demais para que ele fosse chamado de tal coisa. Ele era um homem, isso sim! Um baita de um homem. Mas eu não deveria estar reparando nisso. Definitivamente não!

– Você deve ser a Marta! – ele disse. 

Não havia nada do sotaque estadunidense que eu imaginava, pelo contrário, se eu estivesse em outra situação, diria facilmente que Kevin era um carioca passando férias na Califórnia, ao invés de morar ali há mais de uma década.

Sorri desajeitada. M*****a timidez.

“Você deveria ser mais despojada, Marta!”, diria minha mãe. “Como os homens vão te descobrir assim?”. Mas eu não era uma terra inabitada para ser descoberta. Era apenas uma garota tentando ganhar a vida e vencer seus medos.

Além da camiseta branca da qual já falei, Kevin vestia jeans azuis que formavam um conjunto perfeitamente harmonioso.

Essa viagem seria mesmo um desafio para mim, em todos os sentidos. Aliás, já estava sendo desde o começo.

"Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.". Quem disse isso não fui eu, e sim William Shakespeare, um cara inglês que você deve conhecer.

Supus que Kevin fosse bastante observador, pois qualquer garota baixinha presente no estacionamento do aeroporto poderia ser eu. A mãe dele devia ter passado uma descrição bem exata de mim: “branca, cabelos negros e ondulados na altura do peito, estatura pequena o bastante para que os vestidos da sessão infantil das lojas servissem nela.”. Essa era eu. Prazer!

Demorei para respondê-lo, pois minha ficha ainda não tinha caído. Falando em ficha, eu precisaria de uma para avisar à minha irmã que havia chegado ao meu destino sã e salva.

Minha primeira viagem de avião tinha sido melhor do que eu poderia esperar. Sem turbulências, sem enjoos ou desmaios por causa da temida altura. Tá bom, admito que tive uma leve tontura durante a decolagem, mas nada que me fizesse passar vergonha.

– Sim, sou a Marta. E você deve ser o Kevin, filho da Lena – respondi.

Não falei para ele me chamar de Martinha, meu apelido, pois achei que soaria excessivo.

Ele me estendeu a mão, e eu a apertei sem deixar de notar que as veias que subiam pelos seus braços eram bem visíveis. Nada de dois beijinhos, o que me fez perceber que ele já não era tão carioca assim quanto eu pensara há pouco.

Estava aí algo que eu achava sexy: veias saltadas. Contudo, isso não era uma espécie de fetiche ou nada do tipo.

– Pronta para passar o verão na cidade mais ensolarada da América? – ele me perguntou.

Eu não sabia a resposta para essa pergunta. Estava pronta ou não?

– É modo de dizer, Los Angeles não é exatamente a mais ensolarada, mas é com certeza a mais badalada.

– E Nova Iorque? – perguntei.

– As celebridades do cinema não moram em Nova Iorque.

Entendi que meu novo conhecido era um entusiasta da cidade onde morava, e assim sendo, eu facilmente poderia me tornar uma também. Não que antes disso já não nutrisse um interesse pela cidade dos anjos. A calçada da fama, os filmes clássicos gravados ali, todo o imaginário hollywoodiano... Los Angeles tinha muitos significados para o mundo, e para mim significava um novo começo.

Antes de entrar nesse mérito, preciso dizer o que eu, uma garota brasileira, estava fazendo na Califórnia na véspera do início do verão de 1995.

As coisas não estavam fáceis no Brasil, mas uma janela se iluminara quando o marido da minha irmã dois anos mais velha do que eu, me disse ter uma oportunidade de emprego que poderia me interessar.

Peter era um cara bacana, e fazia o possível para me ajudar, incluindo me aceitar em seu apartamento onde ele morava com minha irmã, com quem era quase recém-casado. A situação me deixaria desconfortável se eu não fosse tão bem tratada por eles, mas sabia que precisava encontrar meu próprio rumo, apesar disso; e deixá-los livres com sua privacidade.

Eu não podia deixar de me interessar por qualquer oportunidade, a não ser que ela incluísse a venda de drogas ou o empréstimo do meu corpo para favores sexuais – felizmente, não era o caso – mas aquela não era uma oportunidade aleatória, e sim minha chance de conhecer um novo país, coisa que em outras circunstâncias, não saberia quando poderia acontecer.

A lanchonete chamada Milk Shakespeare, nome que eu achara curioso instantaneamente ao ouvir, pertencia a um casal de amigos do meu cunhado, e ficava em Beverly Hills[1], um dos lugares mais elegantes e finos da região. Uma espécie de Leblon americano.

O diferencial dela era que no cardápio estava inclusa a comida típica brasileira, além dos lanches tradicionais americanos, é claro. Ou seja, o lugar atendia a todos os tipos de gostos.

Americanos ricos se interessavam por arroz e feijão? Eu havia me perguntado, e a resposta fora que o estabelecimento era muito bem frequentado por celebridades até mesmo hollywoodianas.

Segundo palavras do próprio Peter, era um lugar bastante fino, elegante e sincero, cujos donos estavam precisando de uma nova “faz tudo”. Eu sabia cozinhar, modéstia à parte, e poderia aprender o resto. Vontade não me faltava.

As coisas pareciam estar mesmo melhorando para mim, pois um verão inteiro (meu contrato de trabalho duraria apenas uma estação) na Califórnia, era bastante auspicioso, e a aparição de Kevin no aeroporto para me buscar e me levar para os meus novos aposentos, era uma demonstração disso. Ele era uma visão e tanto. Embora eu soubesse que não poderia fazer qualquer coisa além de olhar.

– Meu carro é este aqui mesmo. Vamos?

Ele segurou minhas malas, e eu disse que não precisava, pois poderia guardá-las sozinha, mas Kevin sorriu e não as largou. Fiquei apenas com minha bolsa de mão. Ele seria meu motorista até o meu destino, que eu estava curiosa (e preocupada) para conhecer.

Seria clichê dizer que ele abriu a porta de seu Mustang 1995, o carro do ano que era, por sinal, o mais lustroso que eu já vira, e que por alguma razão me fazia lembrar de seu dono que eu acabara de conhecer?! Entretanto, foi exatamente isso que ele fez.

– Seu inglês é bom? – perguntou.

A família de Kevin era brasileira. Eles viviam ali há pouco mais de uma década, e estavam bem estabelecidos lá. Desde que ouvira falar neles através do meu cunhado, os tive como um exemplo a ser seguido, afinal eles tinham saído do mesmo lugar que eu e chegado aonde eu não sonhava mais em chegar por achar impossível.

O calor dali não era esturricante como o do Rio de Janeiro, mas era o bastante para que eu apreciasse o vento fresco que entrava pela janela do carro enquanto Kevin percorria o caminho até a Milk Shakespeare. Eu não podia, e nem queria, deixar de notar cada detalhe da paisagem que se descortinava à minha frente. A Califórnia era ensolarada, sim, porém fresca o bastante para ser reconfortante. Eu tomaria um sorvete de morango naquele momento, ou de chocolate, ou, ainda, o meu próprio sorvete especial cuja receita eu não revelava a ninguém.

Observei os transeuntes caminhando animados uns ao lado dos outros, com sacolas de compras ou com as mãos vazias mesmo. Elas eram diferentes de todas as pessoas que eu tinha visto, embora continuassem sendo pessoas. Eu nunca tinha visto tantos cabelos loiros na vida. As prateleiras de água oxigenada das perfumarias dali deviam ser bastante concorridas.

– Gosta dos Backstreet Boys?  

– Não conheço! – admiti.

– É uma nova boy band. Eles têm umas canções legais.

Kevin começou a balançar a cabeça no ritmo da música. Gostei das vozes dos membros daquele grupo até então desconhecido para mim.

Ah, como estar ali parecia um sonho surreal de uma garota suburbana. Mas era verdade, e se eu fosse um pouco mais extrovertida, teria pedido para Kevin me beliscar. Juro que esse beliscão seria no braço!

Falando nele, seu carro parou em frente a uma grande casa que poderia ser chamada de mansão. Ele ficou por alguns segundos com o veículo ligado, porém sem movimento, em frente a essa propriedade. Assim sendo, tive tempo de registrá-la em minha mente como uma fotografia. Era linda como a casa da Barbie que eu via nas propagandas de TV, só que sem ser cor de rosa.

– Vamos entrar? – perguntou.

Franzi os olhos, pois acreditava, até então, que estávamos indo direto para a lanchonete, onde eu ocuparia um quartinho nos fundos. Esse era o combinado.

Meu cunhado havia realizado esses trâmites burocráticos para mim. Sendo sincera, toda a minha viagem fora organizada por ele, e eu estava confiando que tudo daria certo.

– É aqui que você mora? – rebati. 

Kevin assentiu com a cabeça. 

– E onde você vai morar pelos próximos meses. 

Franzi novamente a testa e constatei que se continuasse assim teria sérios problemas de marcas de expressão.

– Desculpe... – disse para demonstrar que não havia entendido.

– Meu pai não te falou?

– Não me falou o quê?

Ele desceu do carro e abriu a porta para mim. 

– O quê? – perguntei sem sair, por enquanto.

Do lado de fora do veículo, a casa parecia ainda mais bonita. Era, de fato, a mais bela que eu já tinha visto, pois trazia um estilo arquitetônico exótico pra mim. Talvez não tão exótico porque me lembrava dos filmes hollywoodianos. 

Kevin fez um movimento com o braço e eu o segui, adentrando a propriedade ampla, cuja porta da sala era de vidro. As paredes eram extremamente brancas, assim como o sofá que contornava a sala. Ao lado dele, havia uma mesinha pequena e redonda, onde uma pilha de revistas de moda figurava. Eu não sabia se elas já tinham sido folheadas ou se eram meros objetos de decoração (gente rica tem essa mania).

– Você pode me explicar o que está acontecendo? – questionei mais ríspida do que desejava. 

Kevin não merecia nenhum tipo de má educação, pois ele próprio era um cavalheiro, mas aquele silêncio estava me irritando. Não era fácil, embora soasse como uma aventura, estar pela primeira vez em um país desconhecido, e sozinha.

– Espere aqui um minuto, por favor. 

Me sentei no sofá e senti meu corpo afundar nele, que era mais fofinho do que eu estava acostumada. O tapete era tão fofo quanto, e eu senti pena de pisar ali, mas para que serviriam os tapetes senão para isso?

Observei Kevin subir as escadas de degraus largos. Minhas coisas estavam no porta-malas de seu carro, apenas minha bolsa de mão estava comigo, e eu a agarrei como agarrava meu ursinho de pelúcia quando era criança.

Aguardei que ele voltasse e, enquanto isso, notei que havia um porta-retratos dele com seus pais sobre a estante. Kevin era a cara de sua mãe, mas tinha os cabelos castanhos do pai, enquanto os dela eram absolutamente negros como carvão. Os três pareciam uma família americana perfeita, embora não fossem americanos. Isso fez com que eu me perguntasse se eram mesmo perfeitos ou também só aparentavam ser.

Minha família, por exemplo, parecia perfeita, e anos antes eu tivera provas o bastante de que não era.

Levantei-me e fui até a varanda que ficava do outro lado do cômodo. Havia outra porta de vidro para separá-la da sala. Dali eu via o mesmo céu azul de minutos atrás.

Ricos! Eles eram ricos, e a riqueza pode ser muito atrativa. Naquele caso ela era. Há quem diga que chega a ser afrodisíaca, até.

Ao abrir essa porta, tive uma surpresa: o que eu acreditava se tratar de uma varanda, era na verdade um enorme jardim, onde, do lado esquerdo, havia uma piscina ampla e algumas cadeiras. Era realmente grande!

Tinha também alguns equipamentos de academia, e flores cujos nomes eu não sabia.

– Uau! – não consegui deixar de exclamar.

Kevin desceu alguns degraus de volta falando alguma coisa, e eu me virei, voltando meu corpo para dentro da casa. Mas não era comigo que ele estava falando. Ele estava com um telefone sem fio na mão.

– O Peter não contou a ela? – ele fez uma pausa para que a pessoa do outro lado da linha respondesse. – Não, ela não sabe! Trouxe-a para cá e ela simplesmente não entendeu. Você poderia ter me avisado que a garota não sabia, né?! – disse calmamente. E fez uma pausa. – Está bem!

Ele terminou de descer as escadas e se voltou para mim, que estava cheia de medo e curiosidade.

– Então... – cobrei.

Voltar para o Brasil de mãos abanando era a pior coisa que eu podia imaginar. Eu teria que ficar mais algum tempo no apartamento da minha irmã e, na pior das hipóteses, voltar para a casa da minha mãe que tinha acabado de se casar com um homem insuportável. O problema era a frustração, meu tempo gasto e a energia que eu despendera nisso. Ah, e o pior: minhas expectativas! Eu não esperava um verão de folga, pois tinha ido para lá para trabalhar, mas queria absorver o máximo possível da Califórnia, conhecer suas praias, reforçar meu inglês. Mas tinha que olhar pelo lado bom: pelo menos agora eu poderia dizer que já tinha saído do país uma vez.

– Tenho uma notícia para te dar, Marta!

"Que bom que ao menos nem tiramos as malas do carro.", pensei. Assim evitaríamos a fadiga.

Fiz sinal para que ele prosseguisse. Já que não tinha jeito, que eu enfrentasse a realidade. 

– O quartinho onde você ficaria na Milk Shakespeare está com uns problemas. Goteira, mofo, sei lá!

Respirei fundo. Esperava que eles ao menos pagassem minha passagem de volta, pois, caso contrário, eu ficaria muito, muito irritada, a ponto de querer sapatear naquele tapete fofo com os pés sujos de lama. Que excelente forma de me vingar!

– Tudo bem! – respondi.

E me virei para a porta de saída. Para que perder tempo, afinal? Se meu emprego de verão "já era", que nós voltássemos logo para o aeroporto. Havia um gosto amargo na minha garganta, o gosto da realidade. Eu realmente havia colocado muita expectativa naquilo. Cheguei à conclusão de que deveria ter 0uvido meus medos e ficado em casa.

De repente senti uma lágrima desejosa de sair pelos meus olhos, mas controlei-a, ou tentei até onde pude. Não queria chorar diante de um homem tão atraente, seria humilhante demais.

Estava absorta em não permitir o chororô quando:

– O que foi? – Kevin perguntou percebendo que eu estava tensa. – Quer um copo d’água?

– Não foi nada! Obrigada – foi a minha resposta. – Vamos embora.

Dei alguns passos em direção à porta ampla. Bem, ao menos eu tinha conhecido a casa mais bela que já vira.

– Embora?

Assenti com a cabeça. O que Kevin esperava? Que eu me hospedasse em um hotel de luxo para não perder a viagem? Foi então que ele anunciou:

– Acho que você não entendeu, Marta. Você vai ficar hospedada aqui em casa pelos próximos meses. 

[1] Beverly Hills é uma cidade do condado de Los Angeles, na Califórnia, podendo também ser chamada de bairro. Neste livro, utilizarei o último termo para me referir ao local que possui cerca de 14 km de área e que faz fronteira com o bairro de Bel Air.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo