"Ravenna"
O café da manhã no castelo, que era sempre agitado com falatório dos meus irmãos, estava em silêncio naquele momento.
Desde que um dos guardas se aproximou e entregou um envelope ao meu pai, que mais parecia um pergaminho, a expressão dele mudou e todos nós sentimos que era algo diferente.
— De quem é? — Minha mãe também estranhou o silêncio, o clima que se formou.
— Porra...
— O que foi? — Ela se preocupou.
— É de um vampiro que mora nos Ajaks Meridionais. O mesmo que visitou Jax dois anos atrás.
— Meu Deus... — Surpresa, Teo deixou a torrada de lado. — Aquele que apareceu à luz do dia e que pediu algum medicamento que prolongasse ainda mais as horas deles no sol?
— Esse mesmo.
— Por que ele procurou agora o senhor? — Franzi o cenho, realmente surpresa.
Todos sabiam que os vampiros eram isolados, nunca se aproximavam.
E já era a segunda vez que isso acontecia em pouco tempo.
Foi um falatório quando um deles pediu audiência com meu tio e apareceu em plena luz do dia. Até então, todos diziam que o sol os queimava. Pelo visto, haviam desenvolvido algum medicamento que lhes permitia ficar horas ao sol. E queriam que o laboratório do meu tio o aperfeiçoasse.
Minha prima Zara me contou que o pai negou o trabalho. Ainda mais depois que a mãe dela teve uma intuição de que eles se aproximavam por outros interesses. Tia Selena era híbrida de bruxa e loba, não errava nunca naquelas coisas.
Era estranho que, depois de dois anos, aparecessem de novo. Agora com aquela carta.
— Vamos ver. — Tenso, meu pai abriu o envelope.
Salomé, minha irmã de 19 anos, deixou de lado o livro que estudava para uma prova, ajeitando os óculos no rosto. As gêmeas Cristal e Safira, geralmente barulhentas, tinham os olhos arregalados. E o caçula de 10 anos, Ares, continuava a comer, mas atento. Até Nerin, que tomava conta da casa, se encontrava curiosa.
Meu pai pegou o papel grosso, lendo em silêncio. Troquei um olhar com minha mãe, que tentava disfarçar a ansiedade. Remexi-me, sabendo que, se fosse coisa ruim, eu me prepararia para a luta. Nenhum daqueles chupadores de sangue se meteria com a minha família.
— Ele pede três convites para seus filhos, na próxima Festa da Aliança.
— Assim, sem mais nem menos? — Minha mãe apertou as sobrancelhas, confusa.
— Querem nos investigar — sugeriu Salomé.
— Para quê? Invadir? — Safira se agitou na cadeira, abraçando Cristal. — Meu Deus, será que vai ter guerra, como vocês contam que aconteceu aqui no passado?
— Nem fala isso! — A outra fez que não, nervosa. Ares se animou, seus olhos dourados brilhando:
— Já sei atirar e lutar!
— Se fosse para fazer mal, ele não pediria permissão. — Nerin analisou. — Embora a Selena tenha sentido algum pressentimento ruim sobre eles, quando esse vampiro foi na casa dela.
— O que você vai fazer, pai? — Eu mal tinha me movido, sem demonstrar emoção.
— Dar os convites.
Minha mãe tirou uma mecha de cabelo do rosto, insegura.
— Você quer descobrir o que eles desejam. É isso, Sebastian?
— Seja o que for que o atrai para cá, não vai desistir. Prefiro saber antes, estando no meu território. — Decidido, ele se ergueu. — Vou responder à carta e comunicar aos meus irmãos.
Todos ficaram quietos, sem saber o que esperar. Tive um pressentimento de que coisa boa não era. De qualquer forma, estaríamos preparados.
Durante o dia, enquanto trabalhava nas minas de diamantes da minha família, aquele assunto vinha à minha mente de vez em quando e eu criava várias possibilidades para explicar a aproximação dos vampiros. A única real era que eles tinham algum interesse secreto. Duvidava muito que tivessem simplesmente decidido virar nossos amiguinhos.
Foi somente no fim do dia, depois que tomei banho, que falei sobre o assunto com minha prima Zara. Ela veio me visitar e se jogou na minha cama, cheia de curiosidade.
— Quando meu pai contou, eu vim correndo saber da fofoca! É sério isso? — De pernas cruzadas, balançava o pé em um sapato preto de salto alto. Os olhos verdes brilhavam.
— Se você fala sobre os vampiros, é sério, sim.
Enrolada em uma toalha, enxuguei o cabelo com outra, sentando-me ao lado. A curiosidade também me comia viva, e virei para ela.
— Enfim, vamos conhecer os mortos-vivos. Minha prima e amiga riu, agitada.
— Lembra quando a gente era pequena e ficava imaginando como eles seriam?
— Gelados como picolé — comecei.
— Fedendo a naftalina.
— E terra de caixão. Sem sombra nem alma, pálidos.
— Isso é um ponto a discutir! — Ela chutou os sapatos longe e se acomodou melhor na cama, cruzando as pernas sob o corpo. — Quando o tal Stormborn foi lá em Vanóia, disseram que os filhos ficaram esperando do lado de fora. E que eram fortes e bronzeados.
— Duvido! — Esfreguei a toalha no cabelo com mais vigor. — Todos dizem que são pálidos, a pele parece de papel!
— Dizem, não! Você está falando dos filmes. que viu. Se eles apareceram de dia, talvez possam pegar sol e ter uma corzinha saudável.
— Saudável? — Foi minha vez de rir. — O coração deles não b**e! Podem ter enganado todo mundo, usando enchimento sob a roupa e base na cara.
Ela gargalhou também.
— Em breve teremos certeza! A verdade é que são misteriosos, têm muitas lendas sobre eles. Minha mãe disse que não estão mortos e respiram.
— Agora fiquei confusa. Não comem comida como a gente, só engolem sangue dos outros. Acho difícil que sejam diferentes do que imaginamos. Mas, como você disse, em alguns dias vamos saber.
— Tô desesperada aqui para olhar na cara deles!
— E eu desconfiada. O que esse povo quer? Coisa boa não é. Se vierem de graça, coloco os três para correr! — Larguei a toalha no colo e comecei a pentear o cabelo com força.
— Hei, vai quebrar os fios assim! Deixa de ser bruta! — Zara tomou o pente de dentes largos da minha mão e desembaraçou com cuidado. — Venna, você mal os conhece e já pensa em briga! Nunca vi! Por isso os garotos têm medo de você.
— Ainda bem! Bando de fracotes — resmunguei.
— Já sei por que não dá chance para nenhum, nem para os que estão a fim. Está esperando o seu prometido, o vampiro.
— Para de palhaçada! — Riu ainda mais, lembrando da nossa brincadeira de criança, do que falei um dia da boca para fora: que ia me casar com um vampiro, caso visse um pela frente. — Da outra vez, contou isso na frente do meu pai e ele pensou que era sério!
— Isso faz séculos!
— Você é cheia de conversinha de namoro, mas dá mole para todos e não pega ninguém! Qual é a sua desculpa, Zara? Está esperando um vampiro também, frio como mármore de cemitério?
— Deus me livre! Tá doida? — Parou de me pentear um pouco. Então chegou mais perto, cochichando: — Será que são gelados mesmo? Até lá nas partes íntimas?
— Nem quero saber! Aliás, duvido que façam sexo. Pelo que sei, criam outros vampiros mordendo o pescoço dos inocentes.
Rimos como idiotas, os questionamentos espocando, a gente debochando enquanto a curiosidade continuava acesa.
Foi assim toda vez que nos falamos naqueles dias, inventando moda. A todo momento, uma mandava mensagem para a outra com perguntas e questionamentos do tipo:
São imortais? Eles cagam? Peidam fedorento? Mijam? Gozam? É real a lenda de que só entram num lugar se alguém convidar? Ficam invisíveis, voam, viram morcegos? Hipnotizam? Precisam dormir? Será que são mais fracos ou fortes do que a gente?
Eu esperava que fossem mais fracos. Assim, se criassem alguma confusão por ali, eu acabaria fácil com eles.
"Ravenna"No dia da Festa da Aliança, Zara apareceu cedo na minha casa, toda arrumada e no salto. Sainha curta, blusa coladinha, jaqueta estilosa, cabelos escovados, maquiagem perfeita. Fez careta quando me viu de tênis, camisa preta de mangas longas, calça jeans surrada.— Não acredito que vai assim!— Assim como? É a roupa que eu uso.— Mas é festa! E teremos convidados especiais!— Eu não convidei ninguém.— Venna, me deixa pelo menos cuidar desse cabelo e pintar essa boca! Achei graça, pois nunca tinha usado maquiagem na vida. Impliquei:— Qual é? Quer impressionar os morceguinhos?— Cara, você é muito tosca! E se forem gatos?— Morcegos gatos?Zara desistiu. Ela me conhecia há tempo demais para saber que era meu jeito e eu nunca mudaria por ninguém. Muito menos pelos vampiros. Só queria saber o que desejavam ali e se teria um inimigo para me preocupar.(...)Com as vozes de Cassius:— Caliban não vai.A voz baixa e fria do meu pai, ao entrar na sala, não trouxe nenhuma novidade.
"Cassius"— Só vamos saber tentando. Caliban ainda não leva a sério, mas precisa fazer a parte dele.— Se não fizer, você o obrigará. — Calíope me deu uma olhada e confessou ao amigo com ironia: — Até já vejo o Cassius na noite de núpcias deles, arrastando nosso irmão de uma farra para cumprir com seu papel de macho reprodutor com a lobinha. Aposto que só sai de perto depois que confirmar que o objetivo foi alcançado.Eles riram e não me importei, nem quando Thorn me provocou:— Do jeito que o Caliban anda magro e abatido, pode não funcionar. Aí o que você vai fazer? Cumprir essa parte do papel? Afinal, ninguém precisa saber de quem é a semente pura no útero supremo. Desde que o final seja o esperado. Faria esse sacrifício, meu amigo?A imagem da loba ruiva veio até mim, parada perto da cachoeira, atiçando meu peito. Eu quis que tirasse a roupa, que se mostrasse para mim. Era linda e interessante, me causava curiosidade.— Não será um sacrifício. Desde que não atrapalhe meu casamento
"Cassius"Minha pele formigou quando, enfim, a avistei ao longe, após circular praticamente cercado por Jax e Sebastian. Mantive-a cativa, acompanhando cada um de seus movimentos sem alarde.Na primeira oportunidade, Calíope se desviou e puxou assunto com outras pessoas, logo sendo cercada por homens seduzidos, encantados. Thorn sumiu na multidão, mas percebi que não estavam soltos e sozinhos. Guardas mantinham atenção em cada um de nós.Circulei conversando com os irmãos alfas que o tempo todo direcionavam perguntas a mim, desconfiados. Fui sempre amigável, dando a entender que nossa intenção era pacífica e apaziguadora.Eles me apresentaram a homens de confiança do clã Thorne, como o chefe da guarda, Cezar, e seu irmão, Lonut. Assim como a Teodora Gabor Thorne, de quem a filha herdou a beleza ruiva. Porém, a mãe era mais delicada, menor. E a filha continuava ao longe, acompanhando-me pelo olhar silencioso.Ela andava, falava com outras pessoas, se afastava. Eu circulava, conversava
"Ravenna"Meu pai praticamente o expulsou da festa.Isso eu soube nos dias seguintes, quando percebi o quanto a presença dos vampiros mexeu com todo mundo. Principalmente comigo.Era irritante pensar tanto em Cassius, desde o momento em que eu abria os olhos até o de dormir. Aquilo não era normal e me desestabilizou a ponto de não conseguir disfarçar. O problema é que parecia ter enlouquecido desde que o vi pela primeira vez. Um vício como nunca experimentei na vida. Tive vontade de chamar Zara e desabafar sobre esses sentimentos estranhos. Afinal, ela também andava estranha naqueles dias, não quis falar muito sobre o que achou dos vampiros. E eu estava com medo de confessar oque ainda não compreendia.O pior era admitir que quase o deixei tocar em mim. E fazer muito mais. Se meu pai não tivesse chegado, teríamos nos beijado? Ou feito algo pior? Apesar de ter barrado sua tentativa de manipulação mental, eu me sentia tão abalada e atraída que cogitava ter caído sob algum feitiço de se
"Ravenna"Nos dias seguintes, não consegui voltar ao normal. Pensava direto no maldito sedutor, até sonhei que tocava em mim. Sempre acordava quando sua mão ardia em minha pele, antes que realmente me agarrasse. E as palavras da cigana apenas pioravam tudo.Trabalhei como nunca, treinei até ficar exausta, mas nada me aliviou. Era como se houvesse uma espada pairando sobre minha cabeça, anunciando que algo grave e importante aconteceria.Isso se concretizou exatamente uma semana depois da Festa da Aliança.Percebi a tensão no jantar: meu pai, sério, me dando olhares estranhos, e o clima estava pesado. Então, chamou a mim e à minha mãe para uma conversa no escritório. A ansiedade quase me comeu viva enquanto nos acomodávamos em poltronas e ele permanecia de pé, servindo-se de tuicã, uma bebida forte produzida na vila.— Sebastian, o que está acontecendo? Foi minha mãe quem perguntou.— Antares Stormborn me ligou hoje pedindo uma reunião.— Devia ter imaginado que era algo com os vampir
"Cassius Stormborn"O céu estava tingido de sangue naquele fim de tarde.Protegido nas sombras da janela, eu espiava o horizonte, com suas nuvens vermelhas e laranjas acima das montanhas cobertas de neve. Até os pinheiros pontiagudos eram como agulhas furando o líquido viscoso.Sempre achei aquele período do dia o mais lindo. O sol me trazia encantamento, talvez por ser proibido para mim. Mas eu só o observava de longe. Ainda era novo demais para saber como seria sentir os raios sobre a pele.Meu pai disse que era questão de tempo até podermos sair algumas horas por dia. As misturas de ervas para beber e os linimentos para passar na pele, que protegiam os vampiros dos raios solares, tinham sido inventadas há décadas. Os adultos estavam testando e suportavam quase uma hora lá fora.Eu achava aquilo extraordinário. Se aquela experiência finalmente desse certo, eu não precisaria ficar dentro de casa quando o sol estivesse brilhando. Correria pela neve ou pela montanha durante o dia, sem
"Cassius"210 anos depois— Esta é Ravenna Gabor Thorne. A nossa escolhida.A pasta caiu sobre o tampo de madeira da enorme mesa, enquanto meu pai se acomodava à cadeira alta da cabeceira. Sua expressão era séria, compenetrada. Até mesmo um pouco irritada.— Ela foi a sua decisão final, Vossa Majestade?A pergunta veio do homem de cabelos quase que totalmente brancos, sentado ao seu lado esquerdo. O juiz Casimir era o mais velho entre os conselheiros e o que tinha a confiança do meu pai.— Minha decisão seria não nos envolver com os lobos. Mas parece que não tenho muita escolha. — Seus olhos azuis se fixaram em mim. — Onde está Caliban? Você o informou da reunião, Cassius?— Ele foi avisado.Não precisei complementar o restante. Todos sabiam que meu irmão só fazia o que tinha vontade.Desgostoso, Antares se voltou para um dos guardas na porta e ordenou:— Vá buscar esse inconsequente! Ele é o maior interessado no assunto e nem assim aparece! Aposto que passou a noite fazendo alguma be
"Cassius"— Eu pensei que a reunião seria daqui a uma hora, pai. Estava me preparando.A voz sonolenta de Caliban me tirou dos devaneios. Afastei meu olhar daqueles olhos azuis na fotografia e me virei para eles.Meu irmão era um grande mentiroso. Foi bem informado do horário, mas, como sempre, passou a noite toda em farras e achou que Antares deixaria por isso mesmo.— Sente-se de uma vez. — Lutando contra a impaciência, meu pai apontou para uma cadeira. — Não me faça perder mais tempo.Caliban suspirou e obedeceu, esfregando o rosto pálido, com círculos escuros sob os olhos. Devia ter emendado alguma festa com outra. Ou experimentado o que não devia. Não era à toa que sua aparência era péssima.— Essa é a sua noiva. A filha mais velha de Sebastian Thorne.Seu olhar foi para a fotografia, sem muito interesse. Deu de ombros.— Tudo bem. Pode ser qualquer uma.— É isso o que tem a me dizer? Depois de todo esse tempo de pesquisa, observação e reuniões... — Antares não perdeu a cabeça, n