"Ravenna"
No dia da Festa da Aliança, Zara apareceu cedo na minha casa, toda arrumada e no salto. Sainha curta, blusa coladinha, jaqueta estilosa, cabelos escovados, maquiagem perfeita. Fez careta quando me viu de tênis, camisa preta de mangas longas, calça jeans surrada.
— Não acredito que vai assim!
— Assim como? É a roupa que eu uso.
— Mas é festa! E teremos convidados especiais!
— Eu não convidei ninguém.
— Venna, me deixa pelo menos cuidar desse cabelo e pintar essa boca! Achei graça, pois nunca tinha usado maquiagem na vida. Impliquei:
— Qual é? Quer impressionar os morceguinhos?
— Cara, você é muito tosca! E se forem gatos?
— Morcegos gatos?
Zara desistiu. Ela me conhecia há tempo demais para saber que era meu jeito e eu nunca mudaria por ninguém. Muito menos pelos vampiros. Só queria saber o que desejavam ali e se teria um inimigo para me preocupar.
(...)
Com as vozes de Cassius:
— Caliban não vai.
A voz baixa e fria do meu pai, ao entrar na sala, não trouxe nenhuma novidade. Vimos como meu irmão chegou mais cedo, a ponto de desmaiar de exaustão, em péssimo estado. Precisaria dormir mais de vinte e quatro horas para se recuperar um pouco da farra que o fez sumir por dois dias.
Antares não demonstrava descontrole, mas seus olhos ardiam de fúria contida.
— Ridículo! Só nos fez esperar! — Calíope, minha irmã de 205 anos, saiu de perto da janela, seus cabelos longos e negros, naquele dia, em contraste com a pele muito clara e a boca vermelha. — Vamos para essa festa infernal por causa dele e o noivo some?
— Ele sabia do compromisso, da importância disso! — Meu pai me encarou. — Só me faz passar vergonha. Consegui três convites para nada!
— Nós iremos. — Não me alterei, ajeitando minha longa capa preta enquanto me virava para meu amigo Thorn. Ele era da América do Norte e estava nos visitando. — Quer conhecer alguns lobos?
— Isso não é arriscado?
— E desde quando você teme riscos?
— Quase nunca. É, não posso perder isso por nada. — Na mesma hora se levantou, quase sorrindo. — Preciso fingir que sou irmão de vocês?
— Nem fala isso! Vai que a lobinha se apaixona por você? — Calíope também entrou na brincadeira, relaxando. — Isso estragaria seus planos, não é, pai?
O vampiro mais velho apertou os lábios, irritado. Então nos analisou, mais contido.
— Vocês precisam causar boa impressão.
— Isso sabemos fazer. — Calíope sorriu. — Pensando bem, é melhor Caliban não ir mesmo. Ele faria alguma merda.
Era bem provável.
Meu pai se aproximou de mim, quando viu que estávamos prontos para partir. Parou em frente, muito sério.
— Ravenna e o pai dela precisam gostar de vocês. Fiquem atentos as conversas e absorvam informações. Confio que saberá o que fazer, Cassius, para que fiquem abertos à nossa proposta depois.
— Será assim — garanti, sem vacilar. Ele assentiu, confiando.
Saímos em silêncio e Calíope, que sempre se animava quando Thorn estava presente, passou como um raio na frente dele, desafiando:
— Aposto que chego antes de vocês!
Ele nem parou para retrucar. Usou da velocidade espantosa para sumir atrás dela, descendo pela vila. Pelo menos estavam se divertindo.
Calmo, caminhei pela lateral do palácio até uma espécie de deck, que virava uma ponte de madeira enfeitada por lâmpadas. Cada ponte seguia em uma direção e peguei a que levava para a mata, subindo pelas árvores, passando entre elas.
Minha mãe mandou construir aquilo e, no início, era apenas enfeite.
Os caminhos iluminados, misteriosos. Mas acabou se tornando útil.
Acelerei e a capa ondulou atrás de mim, enquanto eu percorria a ponte em segundos, pulando de uma para outra, planando no ar como se voasse. Saltava alto, deslizava como luz pelos corredores, não havia criatura no mundo mais rápida do que nós.
Quanto mais puro um vampiro, maior as suas habilidades. Muitos pensavam que voávamos, mas isso era muito raro. Quase uma lenda. Pouquíssimos ainda conseguiam.
Como conhecia cada percurso nas montanhas, foi fácil cortar caminho. Adiantei-me tanto, já bem longe da aldeia e perto dos vales, que, quando senti Calíope e Thorn se aproximando, parei perto de uma árvore, colocando meu cabelo para trás, sem qualquer gota de suor.
— Porra! Como chegou tão rápido? — Meu amigo estacou abruptamente e minha irmã quase bateu em suas costas. — Tem asas?
— Talvez. — Dei um pequeno sorriso. — Podemos seguir juntos ou vão continuar brincando?
— Pra você estragar de novo? Tem que ser tão perfeito sempre, o melhor em tudo? — Calíope implicou, empurrando meu ombro ao passar.
— Eu sou o perfeito e o melhor. Ainda não percebeu?
Ela revirou os olhos, e Thorn riu discretamente. Sem esperar mais, aceleramos, virando praticamente flashes de luz pelas cordilheiras frias.
Eu amava aquilo: pular até sentir as folhas nas pontas dos dedos, planar de um pico a um andar mais baixo, desviar de obstáculos no escuro sem perder o fôlego. Tão facilmente que nem cansava. Quando criança, meu sonho era poder me aventurar na floresta sem ter ninguém para me dizer o que fazer.
Mantive um ritmo comedido para os acompanhar. Algumas habilidades eu mantinha para mim mesmo.Apesar de estarmos em locais diferentes dos Ajaks, não foi difícil chegar até a parte oriental, onde os lobos haviam fixado território. Quando chegamos bem perto da área em que ocorria a festa, paramos de correr e caminhamos pela floresta.
— É bonito aqui. A vegetação é bem diferente de Oregon. — Thorn olhou em volta.
— Pode ficar o quanto desejar. Precisamos de mais vampiros como você por aqui.
Falei com sinceridade. Éramos amigos desde crianças. O que não era uma coisa comum à nossa espécie.
Vampiros sempre foram seres individualistas, que não se prendiam a muitos sentimentos, como a amizade. Mas, desde que visitamos a família dele para uma reunião importante na América do Norte, nos demos bem. Passamos a nos ver com certa frequência e a amizade se tornou natural.— É. Em alguns momentos, me b**e uma vontade estranha de largar tudo e sumir por um tempo.
Seu tom ficou subitamente sério, carregado. Eu entendia bem os seus motivos e ofereci:
— Quando quiser, faça isso. Temos algumas propriedades nos Alpes da Transilvânia.
— Ia ser bem divertido ter você por perto. — Minha irmã sorriu para ele.
Se ela não estivesse prometida em casamento, eu poderia crer que gostava de Thorn mais do que devia. Isso não impediria que se envolvessem apenas por prazer, se quisessem. Vampiros não ligavam para fidelidade.
— Mas me diga, por que estamos indo para uma festa de lobos?
Aceitei sem entender muito bem. Em meu território, ainda somos inimigos.
— É uma longa história.
— Tenho tempo, Cassius. Pelo que entendi, seu irmão ia encontrar a noiva?
— Ela ainda não sabe, mas vai casar e dar filhos a Caliban — explicou Calíope, afastando os longos cabelos para trás e fazendo uma careta.
— Ah! E a noiva é uma loba!
— Cacete. Agora vocês têm toda a minha atenção. Vamos, falem. — Ficou entre nós dois, surpreso. — Como? Pelo que me lembro, Antares e meu pai sempre foram os maiores defensores do fim das interespécies! Eles desprezam os vampiros que tiveram filhos com humanos, bruxos e lobos!
— Ravenna é diferente — falei baixo. Foi estranho sentir o nome dela na língua.
— Já ouviu falar nos Alfas Supremos? — Calíope deu o braço a ele, bem pertinho. — Não são lendas.
Existem. E são os donos desse território em que estamos agora.
— Como sabem que não são lendas?
— As histórias se espalham rapidamente por aqui, Thorn. Eles foram enganados sobre sua própria origem, mas, pouco mais de vinte anos atrás, acabaram descobrindo a verdade, depois de uma guerra. Hoje, os três irmãos são poderosos, quase invencíveis. Vivem em paz e recebem outras espécies.
— Por isso é Festa da Aliança — complementei. — Humanos, lobos, bruxos e híbridos chegam cada vez mais nesta região.
— Agora até os vampiros. — Sacudiu a cabeça, impressionado. — Por isso Antares quer casar Caliban com a loba?
— Ela é filha de um Supremo. São evoluídos, podem ser ainda mais fortes do que imaginamos. Uma cria com um puro pode intensificar ainda mais uma provável nova raça.
— Você acha que isso é possível, Cassius? Thorn ergueu uma sobrancelha.
Era uma boa pergunta, que analisei muito depois que passamos a investigar os alfas. Dei de ombros. Havia uma única forma de descobrir.
"Cassius"— Só vamos saber tentando. Caliban ainda não leva a sério, mas precisa fazer a parte dele.— Se não fizer, você o obrigará. — Calíope me deu uma olhada e confessou ao amigo com ironia: — Até já vejo o Cassius na noite de núpcias deles, arrastando nosso irmão de uma farra para cumprir com seu papel de macho reprodutor com a lobinha. Aposto que só sai de perto depois que confirmar que o objetivo foi alcançado.Eles riram e não me importei, nem quando Thorn me provocou:— Do jeito que o Caliban anda magro e abatido, pode não funcionar. Aí o que você vai fazer? Cumprir essa parte do papel? Afinal, ninguém precisa saber de quem é a semente pura no útero supremo. Desde que o final seja o esperado. Faria esse sacrifício, meu amigo?A imagem da loba ruiva veio até mim, parada perto da cachoeira, atiçando meu peito. Eu quis que tirasse a roupa, que se mostrasse para mim. Era linda e interessante, me causava curiosidade.— Não será um sacrifício. Desde que não atrapalhe meu casamento
"Cassius"Minha pele formigou quando, enfim, a avistei ao longe, após circular praticamente cercado por Jax e Sebastian. Mantive-a cativa, acompanhando cada um de seus movimentos sem alarde.Na primeira oportunidade, Calíope se desviou e puxou assunto com outras pessoas, logo sendo cercada por homens seduzidos, encantados. Thorn sumiu na multidão, mas percebi que não estavam soltos e sozinhos. Guardas mantinham atenção em cada um de nós.Circulei conversando com os irmãos alfas que o tempo todo direcionavam perguntas a mim, desconfiados. Fui sempre amigável, dando a entender que nossa intenção era pacífica e apaziguadora.Eles me apresentaram a homens de confiança do clã Thorne, como o chefe da guarda, Cezar, e seu irmão, Lonut. Assim como a Teodora Gabor Thorne, de quem a filha herdou a beleza ruiva. Porém, a mãe era mais delicada, menor. E a filha continuava ao longe, acompanhando-me pelo olhar silencioso.Ela andava, falava com outras pessoas, se afastava. Eu circulava, conversava
"Ravenna"Meu pai praticamente o expulsou da festa.Isso eu soube nos dias seguintes, quando percebi o quanto a presença dos vampiros mexeu com todo mundo. Principalmente comigo.Era irritante pensar tanto em Cassius, desde o momento em que eu abria os olhos até o de dormir. Aquilo não era normal e me desestabilizou a ponto de não conseguir disfarçar. O problema é que parecia ter enlouquecido desde que o vi pela primeira vez. Um vício como nunca experimentei na vida. Tive vontade de chamar Zara e desabafar sobre esses sentimentos estranhos. Afinal, ela também andava estranha naqueles dias, não quis falar muito sobre o que achou dos vampiros. E eu estava com medo de confessar oque ainda não compreendia.O pior era admitir que quase o deixei tocar em mim. E fazer muito mais. Se meu pai não tivesse chegado, teríamos nos beijado? Ou feito algo pior? Apesar de ter barrado sua tentativa de manipulação mental, eu me sentia tão abalada e atraída que cogitava ter caído sob algum feitiço de se
"Ravenna"Nos dias seguintes, não consegui voltar ao normal. Pensava direto no maldito sedutor, até sonhei que tocava em mim. Sempre acordava quando sua mão ardia em minha pele, antes que realmente me agarrasse. E as palavras da cigana apenas pioravam tudo.Trabalhei como nunca, treinei até ficar exausta, mas nada me aliviou. Era como se houvesse uma espada pairando sobre minha cabeça, anunciando que algo grave e importante aconteceria.Isso se concretizou exatamente uma semana depois da Festa da Aliança.Percebi a tensão no jantar: meu pai, sério, me dando olhares estranhos, e o clima estava pesado. Então, chamou a mim e à minha mãe para uma conversa no escritório. A ansiedade quase me comeu viva enquanto nos acomodávamos em poltronas e ele permanecia de pé, servindo-se de tuicã, uma bebida forte produzida na vila.— Sebastian, o que está acontecendo? Foi minha mãe quem perguntou.— Antares Stormborn me ligou hoje pedindo uma reunião.— Devia ter imaginado que era algo com os vampir
"Cassius Stormborn"O céu estava tingido de sangue naquele fim de tarde.Protegido nas sombras da janela, eu espiava o horizonte, com suas nuvens vermelhas e laranjas acima das montanhas cobertas de neve. Até os pinheiros pontiagudos eram como agulhas furando o líquido viscoso.Sempre achei aquele período do dia o mais lindo. O sol me trazia encantamento, talvez por ser proibido para mim. Mas eu só o observava de longe. Ainda era novo demais para saber como seria sentir os raios sobre a pele.Meu pai disse que era questão de tempo até podermos sair algumas horas por dia. As misturas de ervas para beber e os linimentos para passar na pele, que protegiam os vampiros dos raios solares, tinham sido inventadas há décadas. Os adultos estavam testando e suportavam quase uma hora lá fora.Eu achava aquilo extraordinário. Se aquela experiência finalmente desse certo, eu não precisaria ficar dentro de casa quando o sol estivesse brilhando. Correria pela neve ou pela montanha durante o dia, sem
"Cassius"210 anos depois— Esta é Ravenna Gabor Thorne. A nossa escolhida.A pasta caiu sobre o tampo de madeira da enorme mesa, enquanto meu pai se acomodava à cadeira alta da cabeceira. Sua expressão era séria, compenetrada. Até mesmo um pouco irritada.— Ela foi a sua decisão final, Vossa Majestade?A pergunta veio do homem de cabelos quase que totalmente brancos, sentado ao seu lado esquerdo. O juiz Casimir era o mais velho entre os conselheiros e o que tinha a confiança do meu pai.— Minha decisão seria não nos envolver com os lobos. Mas parece que não tenho muita escolha. — Seus olhos azuis se fixaram em mim. — Onde está Caliban? Você o informou da reunião, Cassius?— Ele foi avisado.Não precisei complementar o restante. Todos sabiam que meu irmão só fazia o que tinha vontade.Desgostoso, Antares se voltou para um dos guardas na porta e ordenou:— Vá buscar esse inconsequente! Ele é o maior interessado no assunto e nem assim aparece! Aposto que passou a noite fazendo alguma be
"Cassius"— Eu pensei que a reunião seria daqui a uma hora, pai. Estava me preparando.A voz sonolenta de Caliban me tirou dos devaneios. Afastei meu olhar daqueles olhos azuis na fotografia e me virei para eles.Meu irmão era um grande mentiroso. Foi bem informado do horário, mas, como sempre, passou a noite toda em farras e achou que Antares deixaria por isso mesmo.— Sente-se de uma vez. — Lutando contra a impaciência, meu pai apontou para uma cadeira. — Não me faça perder mais tempo.Caliban suspirou e obedeceu, esfregando o rosto pálido, com círculos escuros sob os olhos. Devia ter emendado alguma festa com outra. Ou experimentado o que não devia. Não era à toa que sua aparência era péssima.— Essa é a sua noiva. A filha mais velha de Sebastian Thorne.Seu olhar foi para a fotografia, sem muito interesse. Deu de ombros.— Tudo bem. Pode ser qualquer uma.— É isso o que tem a me dizer? Depois de todo esse tempo de pesquisa, observação e reuniões... — Antares não perdeu a cabeça, n
"Ravenna"O café da manhã no castelo, que era sempre agitado com falatório dos meus irmãos, estava em silêncio naquele momento.Desde que um dos guardas se aproximou e entregou um envelope ao meu pai, que mais parecia um pergaminho, a expressão dele mudou e todos nós sentimos que era algo diferente.— De quem é? — Minha mãe também estranhou o silêncio, o clima que se formou.— Porra...— O que foi? — Ela se preocupou.— É de um vampiro que mora nos Ajaks Meridionais. O mesmo que visitou Jax dois anos atrás.— Meu Deus... — Surpresa, Teo deixou a torrada de lado. — Aquele que apareceu à luz do dia e que pediu algum medicamento que prolongasse ainda mais as horas deles no sol?— Esse mesmo.— Por que ele procurou agora o senhor? — Franzi o cenho, realmente surpresa.Todos sabiam que os vampiros eram isolados, nunca se aproximavam.E já era a segunda vez que isso acontecia em pouco tempo.Foi um falatório quando um deles pediu audiência com meu tio e apareceu em plena luz do dia. Até ent