"Cassius"
— Eu pensei que a reunião seria daqui a uma hora, pai. Estava me preparando.
A voz sonolenta de Caliban me tirou dos devaneios. Afastei meu olhar daqueles olhos azuis na fotografia e me virei para eles.
Meu irmão era um grande mentiroso. Foi bem informado do horário, mas, como sempre, passou a noite toda em farras e achou que Antares deixaria por isso mesmo.
— Sente-se de uma vez. — Lutando contra a impaciência, meu pai apontou para uma cadeira. — Não me faça perder mais tempo.
Caliban suspirou e obedeceu, esfregando o rosto pálido, com círculos escuros sob os olhos. Devia ter emendado alguma festa com outra. Ou experimentado o que não devia. Não era à toa que sua aparência era péssima.
— Essa é a sua noiva. A filha mais velha de Sebastian Thorne.
Seu olhar foi para a fotografia, sem muito interesse. Deu de ombros.
— Tudo bem. Pode ser qualquer uma.
— É isso o que tem a me dizer? Depois de todo esse tempo de pesquisa, observação e reuniões... — Antares não perdeu a cabeça, nunca o fazia. Mas a raiva fervia sob seu olhar gelado. — Consegue entender a gravidade da situação?
— Claro que sim, pai! Recebi uma função importante e vou cumprir com a minha parte.
— E qual é ela? Ainda se lembra ou está dopado demais para pensar? O tom frio o fez se remexer e me dar uma olhada. Suspirou:
— Tenho a missão de seduzir a loba, filha de um Alfa Supremo. E fazer um filho nela. Viu, eu...
— Por quê? Por que eu estou mandando um dos meus filhos, que tem sangue puro, se sujar com um vortex? Quando sempre os desprezei?
Antares exigiu, pálido. Eu continuei apenas a observar, assim como o juiz.
— Corremos risco de entrar em extinção. Somos cada vez mais a minoria. Sei de tudo, pai...
— Responda!
— Ela é, provavelmente, uma raça superior. Como nós. Um cruzamento pode significar uma raça única, ainda mais evoluída. Só saberemos tentando.
— E por que escolhi você para isso?
Caliban ficou ainda mais branco. O tom de voz contido mudou quando me encarou, com um sorriso sarcástico, assim como sua voz:
— O senhor jamais testaria isso no seu primogênito. Cassius vai manter a nossa espécie pura. Eu serei a experiência, o sacrifício.
— Sacrifício de um imprestável? Encare como a única possibilidade de mostrar algum valor e fazer algo que preste. — Sem alterar a voz, nosso pai se ergueu. — A Festa da Aliança se aproxima e enviei uma carta a Sebastian, pedindo três convites. Cassius, Calíope e você comparecerão. Faça a sua parte, se aproxime dela e a traga para cá na primeira oportunidade. Consegue ouvir, ou é uma tarefa difícil demais para um vampiro como você?
— Vou mostrar que não sou imprestável — murmurou. Antares não ficou mais tempo ali. Saiu, seguido por Casimir. Meu irmão apertou a boca, ainda irritado. Grunhiu:
— É bom ser o filho perfeito?
— A inveja não lhe cai bem. — O meu cinismo o irritou mais.
— Invejar o quê? Você ser tão necessitado de agradar nosso pai que se tornou essa máquina sem coração? Que obedece a tudo o que lhe mandam?
Mal terminou de falar, e eu já disparei em sua direção como uma flecha, tão rápido que só teve tempo de soltar arquejos quando sua cadeira caiu para trás. Eu o tirei do chão, agarrando seu pescoço com apenas uma das mãos, meus olhos ardendo tanto que os sentia cheios de sangue.
— Cassiu...
— Não confunda minha inteligência com suas idiotices, meu irmão — grunhi baixo, friamente, enquanto Caliban se debatia e tentava se soltar dos meus dedos. Apertei mais, cortando seu ar. — Desconhece o mínimo sobre família, honra e tradição. Se não fosse por mim, esse clã seria destruído por você.
— Me... larga... eu...
Sorri devagar, com desprezo.
— Esqueceu que podemos ficar muito tempo sem respirar? Pare de agir como um ordinário. — Empurrei-o contra a mesa, esfregando sua cara na fotografia. — Devia se preocupar com você, não comigo. E pensar no que fazer. Ela não parece fácil de ser seduzida.
Larguei-o e meu irmão se ergueu, esfregando o pescoço marcado por meus dedos. Os olhos estavam vermelhos, seu ódio fervia em minha direção, a palidez mais acentuada. Aos 197 anos, Caliban ainda não tinha aprendido algo que todos nós sabíamos desde muito cedo: dominar a si e às suas emoções.
— Não preciso que me ensine nada! Tenho qualquer mulher que quiser.
— Acha que Ravenna vai ser como as servas que cedem aos seus caprichos? Muitas por obrigação?
— Elas gostam e essa cadelinha não vai ser exceção. — Ajeitou o paletó e os cabelos no lugar, se empertigando. — Basta dominá-la mentalmente. Viverá aqui como as outras, se arrastando aos meus pés.
E farei o sacrifício de dar alguma atenção na cama, até engravidar. Só espero que não nasça um cachorro sarnento. Para mim, essa história do meu pai de misturar raças é uma palhaçada! Ele só quer me castigar!
Como sempre, Caliban achava que o mundo girava em torno dele e que todos estavam ali para servi-lo. Meu pai nunca depositaria as esperanças do Clã nas mãos de alguém como ele.
Não me movi quando saiu da sala, me mantendo na mira para não ser pego desprevenido. Meu olhar voltou a se fixar na foto, que parecia me fitar sobre um dos ombros. Lembrei-me de sua presença perto da cachoeira, com os cabelos espalhados, prestes a se despir.
Eu duvidava muito que fosse fácil, como meu irmão imaginava. Mas de uma coisa ele tinha razão: aquela história de misturar um vampiro puro com uma filha de Alfa Supremo era loucura.
Tínhamos provas que nossa espécie estava acabando com os cruzamentos, as inter-espécies. Não havia nada que provasse que com ela seria diferente, por isso meu pai testaria no filho que julgava mais fraco e desnecessário. Não na nossa irmã ou em mim, o futuro líder do nosso clã, já prometido para uma pura.
Apesar de ter minhas dúvidas sobre o sucesso daquela missão, eu faria tudo para que fosse levada até o fim. E quando eu começava algo, ninguém me parava até concluir. Podia não ser a máquina que meu irmão me acusava, mas era perfeccionista e determinado. Cumpria meu papel de líder.Se havia alguma chance de uma espécie poderosa nascer entre um puro e uma suprema, eu descobriria.
Continuei olhando para Venna Thorne, esperando que ela fosse a peça que precisava ser manipulada e controlada para nossos objetivos."Ravenna"O café da manhã no castelo, que era sempre agitado com falatório dos meus irmãos, estava em silêncio naquele momento.Desde que um dos guardas se aproximou e entregou um envelope ao meu pai, que mais parecia um pergaminho, a expressão dele mudou e todos nós sentimos que era algo diferente.— De quem é? — Minha mãe também estranhou o silêncio, o clima que se formou.— Porra...— O que foi? — Ela se preocupou.— É de um vampiro que mora nos Ajaks Meridionais. O mesmo que visitou Jax dois anos atrás.— Meu Deus... — Surpresa, Teo deixou a torrada de lado. — Aquele que apareceu à luz do dia e que pediu algum medicamento que prolongasse ainda mais as horas deles no sol?— Esse mesmo.— Por que ele procurou agora o senhor? — Franzi o cenho, realmente surpresa.Todos sabiam que os vampiros eram isolados, nunca se aproximavam.E já era a segunda vez que isso acontecia em pouco tempo.Foi um falatório quando um deles pediu audiência com meu tio e apareceu em plena luz do dia. Até ent
"Ravenna"No dia da Festa da Aliança, Zara apareceu cedo na minha casa, toda arrumada e no salto. Sainha curta, blusa coladinha, jaqueta estilosa, cabelos escovados, maquiagem perfeita. Fez careta quando me viu de tênis, camisa preta de mangas longas, calça jeans surrada.— Não acredito que vai assim!— Assim como? É a roupa que eu uso.— Mas é festa! E teremos convidados especiais!— Eu não convidei ninguém.— Venna, me deixa pelo menos cuidar desse cabelo e pintar essa boca! Achei graça, pois nunca tinha usado maquiagem na vida. Impliquei:— Qual é? Quer impressionar os morceguinhos?— Cara, você é muito tosca! E se forem gatos?— Morcegos gatos?Zara desistiu. Ela me conhecia há tempo demais para saber que era meu jeito e eu nunca mudaria por ninguém. Muito menos pelos vampiros. Só queria saber o que desejavam ali e se teria um inimigo para me preocupar.(...)Com as vozes de Cassius:— Caliban não vai.A voz baixa e fria do meu pai, ao entrar na sala, não trouxe nenhuma novidade.
"Cassius"— Só vamos saber tentando. Caliban ainda não leva a sério, mas precisa fazer a parte dele.— Se não fizer, você o obrigará. — Calíope me deu uma olhada e confessou ao amigo com ironia: — Até já vejo o Cassius na noite de núpcias deles, arrastando nosso irmão de uma farra para cumprir com seu papel de macho reprodutor com a lobinha. Aposto que só sai de perto depois que confirmar que o objetivo foi alcançado.Eles riram e não me importei, nem quando Thorn me provocou:— Do jeito que o Caliban anda magro e abatido, pode não funcionar. Aí o que você vai fazer? Cumprir essa parte do papel? Afinal, ninguém precisa saber de quem é a semente pura no útero supremo. Desde que o final seja o esperado. Faria esse sacrifício, meu amigo?A imagem da loba ruiva veio até mim, parada perto da cachoeira, atiçando meu peito. Eu quis que tirasse a roupa, que se mostrasse para mim. Era linda e interessante, me causava curiosidade.— Não será um sacrifício. Desde que não atrapalhe meu casamento
"Cassius"Minha pele formigou quando, enfim, a avistei ao longe, após circular praticamente cercado por Jax e Sebastian. Mantive-a cativa, acompanhando cada um de seus movimentos sem alarde.Na primeira oportunidade, Calíope se desviou e puxou assunto com outras pessoas, logo sendo cercada por homens seduzidos, encantados. Thorn sumiu na multidão, mas percebi que não estavam soltos e sozinhos. Guardas mantinham atenção em cada um de nós.Circulei conversando com os irmãos alfas que o tempo todo direcionavam perguntas a mim, desconfiados. Fui sempre amigável, dando a entender que nossa intenção era pacífica e apaziguadora.Eles me apresentaram a homens de confiança do clã Thorne, como o chefe da guarda, Cezar, e seu irmão, Lonut. Assim como a Teodora Gabor Thorne, de quem a filha herdou a beleza ruiva. Porém, a mãe era mais delicada, menor. E a filha continuava ao longe, acompanhando-me pelo olhar silencioso.Ela andava, falava com outras pessoas, se afastava. Eu circulava, conversava
"Ravenna"Meu pai praticamente o expulsou da festa.Isso eu soube nos dias seguintes, quando percebi o quanto a presença dos vampiros mexeu com todo mundo. Principalmente comigo.Era irritante pensar tanto em Cassius, desde o momento em que eu abria os olhos até o de dormir. Aquilo não era normal e me desestabilizou a ponto de não conseguir disfarçar. O problema é que parecia ter enlouquecido desde que o vi pela primeira vez. Um vício como nunca experimentei na vida. Tive vontade de chamar Zara e desabafar sobre esses sentimentos estranhos. Afinal, ela também andava estranha naqueles dias, não quis falar muito sobre o que achou dos vampiros. E eu estava com medo de confessar oque ainda não compreendia.O pior era admitir que quase o deixei tocar em mim. E fazer muito mais. Se meu pai não tivesse chegado, teríamos nos beijado? Ou feito algo pior? Apesar de ter barrado sua tentativa de manipulação mental, eu me sentia tão abalada e atraída que cogitava ter caído sob algum feitiço de se
"Ravenna"Nos dias seguintes, não consegui voltar ao normal. Pensava direto no maldito sedutor, até sonhei que tocava em mim. Sempre acordava quando sua mão ardia em minha pele, antes que realmente me agarrasse. E as palavras da cigana apenas pioravam tudo.Trabalhei como nunca, treinei até ficar exausta, mas nada me aliviou. Era como se houvesse uma espada pairando sobre minha cabeça, anunciando que algo grave e importante aconteceria.Isso se concretizou exatamente uma semana depois da Festa da Aliança.Percebi a tensão no jantar: meu pai, sério, me dando olhares estranhos, e o clima estava pesado. Então, chamou a mim e à minha mãe para uma conversa no escritório. A ansiedade quase me comeu viva enquanto nos acomodávamos em poltronas e ele permanecia de pé, servindo-se de tuicã, uma bebida forte produzida na vila.— Sebastian, o que está acontecendo? Foi minha mãe quem perguntou.— Antares Stormborn me ligou hoje pedindo uma reunião.— Devia ter imaginado que era algo com os vampir
"Cassius Stormborn"O céu estava tingido de sangue naquele fim de tarde.Protegido nas sombras da janela, eu espiava o horizonte, com suas nuvens vermelhas e laranjas acima das montanhas cobertas de neve. Até os pinheiros pontiagudos eram como agulhas furando o líquido viscoso.Sempre achei aquele período do dia o mais lindo. O sol me trazia encantamento, talvez por ser proibido para mim. Mas eu só o observava de longe. Ainda era novo demais para saber como seria sentir os raios sobre a pele.Meu pai disse que era questão de tempo até podermos sair algumas horas por dia. As misturas de ervas para beber e os linimentos para passar na pele, que protegiam os vampiros dos raios solares, tinham sido inventadas há décadas. Os adultos estavam testando e suportavam quase uma hora lá fora.Eu achava aquilo extraordinário. Se aquela experiência finalmente desse certo, eu não precisaria ficar dentro de casa quando o sol estivesse brilhando. Correria pela neve ou pela montanha durante o dia, sem
"Cassius"210 anos depois— Esta é Ravenna Gabor Thorne. A nossa escolhida.A pasta caiu sobre o tampo de madeira da enorme mesa, enquanto meu pai se acomodava à cadeira alta da cabeceira. Sua expressão era séria, compenetrada. Até mesmo um pouco irritada.— Ela foi a sua decisão final, Vossa Majestade?A pergunta veio do homem de cabelos quase que totalmente brancos, sentado ao seu lado esquerdo. O juiz Casimir era o mais velho entre os conselheiros e o que tinha a confiança do meu pai.— Minha decisão seria não nos envolver com os lobos. Mas parece que não tenho muita escolha. — Seus olhos azuis se fixaram em mim. — Onde está Caliban? Você o informou da reunião, Cassius?— Ele foi avisado.Não precisei complementar o restante. Todos sabiam que meu irmão só fazia o que tinha vontade.Desgostoso, Antares se voltou para um dos guardas na porta e ordenou:— Vá buscar esse inconsequente! Ele é o maior interessado no assunto e nem assim aparece! Aposto que passou a noite fazendo alguma be