"Cassius"
210 anos depois— Esta é Ravenna Gabor Thorne. A nossa escolhida.
A pasta caiu sobre o tampo de madeira da enorme mesa, enquanto meu pai se acomodava à cadeira alta da cabeceira. Sua expressão era séria, compenetrada. Até mesmo um pouco irritada.
— Ela foi a sua decisão final, Vossa Majestade?
A pergunta veio do homem de cabelos quase que totalmente brancos, sentado ao seu lado esquerdo. O juiz Casimir era o mais velho entre os conselheiros e o que tinha a confiança do meu pai.
— Minha decisão seria não nos envolver com os lobos. Mas parece que não tenho muita escolha. — Seus olhos azuis se fixaram em mim. — Onde está Caliban? Você o informou da reunião, Cassius?
— Ele foi avisado.
Não precisei complementar o restante. Todos sabiam que meu irmão só fazia o que tinha vontade.
Desgostoso, Antares se voltou para um dos guardas na porta e ordenou:— Vá buscar esse inconsequente! Ele é o maior interessado no assunto e nem assim aparece! Aposto que passou a noite fazendo alguma besteira. Mais uma desse imprestável!
Espiei a pasta fechada sobre a mesa. Sem dizer nada, puxei-a para mim e a abri, sabendo o que veria. Há alguns anos tínhamos muitas anotações sobre os Alfas dos Ajaks, os observávamos de longe enquanto juntávamos informações, criando nossas estratégias.
Para muitos, éramos invisíveis. Os vampiros reclusos no ponto mais alto dos Alpes da Transilvânia, praticamente cercados por vales profundos e cordilheiras perigosas, de difícil acesso. Era um dos locais mais inóspitos e distantes dos Ajaks. Porém, sabíamos de tudo.
Uma das regras de sobrevivência era cuidar do nosso território e observar os possíveis inimigos, como caçadores humanos, híbridos e lobos. No passado, guerras com eles quase nos dizimaram.
Quando soubemos dos Alfas Supremos, nossa atenção se redobrou. Há pelo menos vinte anos, colhíamos todos os dados sobre eles, assim como os que apareciam no entorno e podiam ser ameaças ou aliados.
A primeira fotografia que vi foi dos irmãos Sebastian Thorne, Jax Vanóia e Fenrir Dãneşti. Diziam ser os mais fortes e poderosos que se tinha notícia, tornando-se fato o que antes parecia lenda: únicos no mundo como Supremos. Imperavam em seus territórios, atraindo alianças com outras espécies. Possivelmente sendo um risco futuro para nós.Enquanto meu pai dizia a Casimir o quanto não tinha mais paciência com seu filho caçula inútil, eu passava as fotografias. Vi imagens das casas, das esposas e famílias, do local em que ocorriam as Festas da Aliança, dos moradores, até da universidade criada lá, que atraía cada vez mais interessados.
Quando finalmente encontrei o que eu queria, parei. Concentrei-me totalmente na figura imóvel perto de um muro, olhando sobre o ombro, como se estivesse na mira de uma lente potente. Os olhos azuis-claros eram firmes e desconfiados. Toda sua postura preparada para uma possível briga.
Ravenna Gabor Thorne. A primogênita do Alfa Supremo mais velho. Por isso, a escolhida.
Não prestei atenção nas vozes, nem para saber se Caliban daria o ar da sua presença. Enquanto observava a jovem linda e altiva, fui novamente atingido pela curiosidade. Havia algo nela que chamava a minha atenção, me fazia querer olhar mais. Foi assim desde que a vi pela primeira vez.
Ouvi do meu pai as histórias sobre eles e seus planos. Ajudei-o a orquestrar tudo, mas nunca me importei com a fêmea que faria parte da experiência arriscada. Até o dia em que, numa reunião, foram apresentadas todas as informações sobre as filhas de Thorne, Vanóia e Dãneşti.
Ela foi a primeira a ser exposta no telão, em um vídeo feito às escondidas. Devia ter por volta de 17 anos e saía de uma luta com um rapaz bem mais forte, embora tivesse sua idade. Nenhum dos dois ainda passara pela transformação de lobo, que aconteceria aos 21 anos. Mas eram fortes e preparados.
Ravenna comemorou furiosamente quando o venceu, toda suada e vermelha, os olhos brilhando demais.
Uma guerreira ruiva, atlética, decidida. Cheia de sangue quente, ofegando por mais adrenalina.
Naquele instante, teve toda a minha atenção. Ovacionada pelo seu clã, ergueu um punho e gritou, antes de correr para o pai. Foi erguida por ele, aclamada por todos, e então riu. Não deu para ouvir o som, estava longe. Mas a vibração de sua alegria foi intensa, feroz. Bem diferente de tudo com o que eu estava acostumado.Não havia frieza entre os familiares, como eu conhecia entre os vampiros. Ela, o pai, todos pareciam de uma realidade bem distante da vivida em meu clã. Sua personalidade contrastava violentamente com a minha.
Enquanto as imagens das irmãs passavam no telão, a de Ravenna continuou a me marcar. Com certeza, apenas por curiosidade. Nossas vampiras eram calmas e contidas, elegantes e frias. Ravenna parecia prestes a tragar o mundo em volta, consumida em chamas.
Depois disso, acompanhei com mais atenção o crescimento dela até completar 22 anos. Claro, de longe. Meu pai era cuidadoso nas investigações, não queria que os lobos soubessem do nosso interesse. Não até o momento certo.
Ela ficou ainda mais bonita. De um jeito duro e direto, sem enfeites. Cheguei a cogitar que, por esse motivo, seria logo uma das opções descartadas. Meu pai era apreciador de coisas suaves e contidas. Por alguma razão, isso não aconteceu.
Recebi imagens dela na forma humana e na Vortex, quando se transformou ao completar a maioridade. Sua loba era avermelhada, com grandes olhos dourados, livre e destemida como a dona, correndo pela floresta, caçando. Até que, um ano atrás, decidimos observar cada um dos filhotes mais de perto, sem que soubessem, é claro.
Eu me ofereci para rondar a área dela. Todos sabiam das dificuldades; seu pai tinha o território muito bem protegido e vigiado. Mas não era impossível para um vampiro, principalmente um como eu. Por isso, me aproximei de onde sabia ser um dos seus locais preferidos. A cachoeira.
Venna Thorne era uma loba que apreciava rotinas. Trabalhava com o pai nas minas, visitava a vila cigana da mãe uma vez por semana e se encontrava constantemente com a prima e amiga Zara Vanóia. Amava se meter na floresta e, pelo menos três vezes por semana, ia para a cachoeira logo cedo.
A viagem pela floresta de madrugada, desde meu palácio nos Ajaks Meridionais até aquele ponto, foi fácil. Minha velocidade extraordinária facilitou o percurso. Era como se tivesse feito uma leve caminhada, com o cabelo ainda no lugar, completamente parado e aguardando-a. Naquela manhã meio nublada, quando ouvi seus passos, eu já estava encorujado entre ramos e folhas de uma grande árvore, camuflado sobre um galho. Esperando.
Ela apareceu perto da margem, estacando de uma corrida que deixou suas faces coradas. Quase escondendo as sardas que pintavam a pele branca, muito mais evidentes do que nos vídeos ou fotografias.
Usava jeans, blusa simples, tênis e cabelos presos. E, na mesma hora, se imobilizou, ergueu o rosto, aspirando o ar, o olhar ficando alerta. Percebeu imediatamente uma presença diferente ali, embora eu tivesse averiguado que estava sozinho. Ravenna era tão perspicaz a ponto de perceber meu olhar afiado sobre ela?Irritei-me por não ter pensado naquela possibilidade. Os lobos, assim como nós, tinham os sentidos apurados, especialmente o olfato. Preparei-me para sair dali se sua desconfiança aumentasse.
Ravenna não se moveu, olhando e respirando, sondando cada palmo em volta. Minutos se passaram, ambos quietos, os sons da floresta contidos pela força da água da cachoeira caindo.Enfim, ela relaxou um pouco. Tirou os tênis com os próprios pés, mas ainda atenta, a expressão concentrada. Foi então que puxou o elástico que segurava seu coque e o cabelo caiu como uma cascata viva por seus ombros e costas, transformando-a. A feminilidade ficou evidente, sensual, fervente.
As mechas eram de um ruivo aloirado, como se pegassem fogo sob a luz do dia. Meus dedos estranhamente comicharam para sentir como seriam sob o tato, o que me surpreendeu. Isso não devia importar. Eu estava noivo de uma vampira.Minha sorte é que eu podia conter minha respiração por um bom tempo, o que diminuía também os batimentos cardíacos e o calor do corpo. Pensavam que éramos mortos-vivos, mas a verdade era que nosso sistema era diferente, mais lento e contido. Menos ali.
Imobilizei-me, contendo minha respiração e cheiro.
Ela se acalmou. Afastou os cabelos longos dos ombros e se aproximou da água, mergulhando os pés nus nela. Fui pego desprevenido por um calor adicional, um despertar imediato que fez meu coração acelerar sem que eu me desse conta, quando ela começou a abrir a calça. Aquilo era inusitado, já que nossos batimentos eram muito lentos.
No mesmo momento, Ravenna parou antes de descer completamente o zíper, virando o rosto exatamente na minha direção. Farejando o ar a ponto de suas narinas fremirem.
— Tem alguém aí? — Sua voz rouca e decidida ecoou no ar, ganhando notas de irritação. — Juan, se eu te pegar me espionando, vou arrancar sua cabeça dessa vez!
A irritação tremulou em mim. Quem era o maldito Juan?
Contive-me. O que eu estava fazendo? Quase um morto-vivo, como me acusavam de ser, herdeiro de uma das maiores famílias, espiando uma loba. Sem necessidade de estar ali. Era estranho querer apenas vê-la de perto. A realidade me despertou para o ridículo da situação. Por isso, quando Ravenna se abaixou para catar seus tênis, talvez desistindo de ficar nua sob olhos desconhecidos, eu simplesmente disparei para o lado oposto sob as copas das árvores, praticamente voando de galho em galho, sumindo antes que ela tivesse a chance de ter certeza.
Ouvi seu grito e seus passos, na certa para tentar conferir se era algum animal, mas em segundos, eu estava longe, voltando para meu território. Mais irritado do que já me senti um dia.
"Cassius"— Eu pensei que a reunião seria daqui a uma hora, pai. Estava me preparando.A voz sonolenta de Caliban me tirou dos devaneios. Afastei meu olhar daqueles olhos azuis na fotografia e me virei para eles.Meu irmão era um grande mentiroso. Foi bem informado do horário, mas, como sempre, passou a noite toda em farras e achou que Antares deixaria por isso mesmo.— Sente-se de uma vez. — Lutando contra a impaciência, meu pai apontou para uma cadeira. — Não me faça perder mais tempo.Caliban suspirou e obedeceu, esfregando o rosto pálido, com círculos escuros sob os olhos. Devia ter emendado alguma festa com outra. Ou experimentado o que não devia. Não era à toa que sua aparência era péssima.— Essa é a sua noiva. A filha mais velha de Sebastian Thorne.Seu olhar foi para a fotografia, sem muito interesse. Deu de ombros.— Tudo bem. Pode ser qualquer uma.— É isso o que tem a me dizer? Depois de todo esse tempo de pesquisa, observação e reuniões... — Antares não perdeu a cabeça, n
"Ravenna"O café da manhã no castelo, que era sempre agitado com falatório dos meus irmãos, estava em silêncio naquele momento.Desde que um dos guardas se aproximou e entregou um envelope ao meu pai, que mais parecia um pergaminho, a expressão dele mudou e todos nós sentimos que era algo diferente.— De quem é? — Minha mãe também estranhou o silêncio, o clima que se formou.— Porra...— O que foi? — Ela se preocupou.— É de um vampiro que mora nos Ajaks Meridionais. O mesmo que visitou Jax dois anos atrás.— Meu Deus... — Surpresa, Teo deixou a torrada de lado. — Aquele que apareceu à luz do dia e que pediu algum medicamento que prolongasse ainda mais as horas deles no sol?— Esse mesmo.— Por que ele procurou agora o senhor? — Franzi o cenho, realmente surpresa.Todos sabiam que os vampiros eram isolados, nunca se aproximavam.E já era a segunda vez que isso acontecia em pouco tempo.Foi um falatório quando um deles pediu audiência com meu tio e apareceu em plena luz do dia. Até ent
"Ravenna"No dia da Festa da Aliança, Zara apareceu cedo na minha casa, toda arrumada e no salto. Sainha curta, blusa coladinha, jaqueta estilosa, cabelos escovados, maquiagem perfeita. Fez careta quando me viu de tênis, camisa preta de mangas longas, calça jeans surrada.— Não acredito que vai assim!— Assim como? É a roupa que eu uso.— Mas é festa! E teremos convidados especiais!— Eu não convidei ninguém.— Venna, me deixa pelo menos cuidar desse cabelo e pintar essa boca! Achei graça, pois nunca tinha usado maquiagem na vida. Impliquei:— Qual é? Quer impressionar os morceguinhos?— Cara, você é muito tosca! E se forem gatos?— Morcegos gatos?Zara desistiu. Ela me conhecia há tempo demais para saber que era meu jeito e eu nunca mudaria por ninguém. Muito menos pelos vampiros. Só queria saber o que desejavam ali e se teria um inimigo para me preocupar.(...)Com as vozes de Cassius:— Caliban não vai.A voz baixa e fria do meu pai, ao entrar na sala, não trouxe nenhuma novidade.
"Cassius"— Só vamos saber tentando. Caliban ainda não leva a sério, mas precisa fazer a parte dele.— Se não fizer, você o obrigará. — Calíope me deu uma olhada e confessou ao amigo com ironia: — Até já vejo o Cassius na noite de núpcias deles, arrastando nosso irmão de uma farra para cumprir com seu papel de macho reprodutor com a lobinha. Aposto que só sai de perto depois que confirmar que o objetivo foi alcançado.Eles riram e não me importei, nem quando Thorn me provocou:— Do jeito que o Caliban anda magro e abatido, pode não funcionar. Aí o que você vai fazer? Cumprir essa parte do papel? Afinal, ninguém precisa saber de quem é a semente pura no útero supremo. Desde que o final seja o esperado. Faria esse sacrifício, meu amigo?A imagem da loba ruiva veio até mim, parada perto da cachoeira, atiçando meu peito. Eu quis que tirasse a roupa, que se mostrasse para mim. Era linda e interessante, me causava curiosidade.— Não será um sacrifício. Desde que não atrapalhe meu casamento
"Cassius"Minha pele formigou quando, enfim, a avistei ao longe, após circular praticamente cercado por Jax e Sebastian. Mantive-a cativa, acompanhando cada um de seus movimentos sem alarde.Na primeira oportunidade, Calíope se desviou e puxou assunto com outras pessoas, logo sendo cercada por homens seduzidos, encantados. Thorn sumiu na multidão, mas percebi que não estavam soltos e sozinhos. Guardas mantinham atenção em cada um de nós.Circulei conversando com os irmãos alfas que o tempo todo direcionavam perguntas a mim, desconfiados. Fui sempre amigável, dando a entender que nossa intenção era pacífica e apaziguadora.Eles me apresentaram a homens de confiança do clã Thorne, como o chefe da guarda, Cezar, e seu irmão, Lonut. Assim como a Teodora Gabor Thorne, de quem a filha herdou a beleza ruiva. Porém, a mãe era mais delicada, menor. E a filha continuava ao longe, acompanhando-me pelo olhar silencioso.Ela andava, falava com outras pessoas, se afastava. Eu circulava, conversava
"Ravenna"Meu pai praticamente o expulsou da festa.Isso eu soube nos dias seguintes, quando percebi o quanto a presença dos vampiros mexeu com todo mundo. Principalmente comigo.Era irritante pensar tanto em Cassius, desde o momento em que eu abria os olhos até o de dormir. Aquilo não era normal e me desestabilizou a ponto de não conseguir disfarçar. O problema é que parecia ter enlouquecido desde que o vi pela primeira vez. Um vício como nunca experimentei na vida. Tive vontade de chamar Zara e desabafar sobre esses sentimentos estranhos. Afinal, ela também andava estranha naqueles dias, não quis falar muito sobre o que achou dos vampiros. E eu estava com medo de confessar oque ainda não compreendia.O pior era admitir que quase o deixei tocar em mim. E fazer muito mais. Se meu pai não tivesse chegado, teríamos nos beijado? Ou feito algo pior? Apesar de ter barrado sua tentativa de manipulação mental, eu me sentia tão abalada e atraída que cogitava ter caído sob algum feitiço de se
"Ravenna"Nos dias seguintes, não consegui voltar ao normal. Pensava direto no maldito sedutor, até sonhei que tocava em mim. Sempre acordava quando sua mão ardia em minha pele, antes que realmente me agarrasse. E as palavras da cigana apenas pioravam tudo.Trabalhei como nunca, treinei até ficar exausta, mas nada me aliviou. Era como se houvesse uma espada pairando sobre minha cabeça, anunciando que algo grave e importante aconteceria.Isso se concretizou exatamente uma semana depois da Festa da Aliança.Percebi a tensão no jantar: meu pai, sério, me dando olhares estranhos, e o clima estava pesado. Então, chamou a mim e à minha mãe para uma conversa no escritório. A ansiedade quase me comeu viva enquanto nos acomodávamos em poltronas e ele permanecia de pé, servindo-se de tuicã, uma bebida forte produzida na vila.— Sebastian, o que está acontecendo? Foi minha mãe quem perguntou.— Antares Stormborn me ligou hoje pedindo uma reunião.— Devia ter imaginado que era algo com os vampir
"Cassius Stormborn"O céu estava tingido de sangue naquele fim de tarde.Protegido nas sombras da janela, eu espiava o horizonte, com suas nuvens vermelhas e laranjas acima das montanhas cobertas de neve. Até os pinheiros pontiagudos eram como agulhas furando o líquido viscoso.Sempre achei aquele período do dia o mais lindo. O sol me trazia encantamento, talvez por ser proibido para mim. Mas eu só o observava de longe. Ainda era novo demais para saber como seria sentir os raios sobre a pele.Meu pai disse que era questão de tempo até podermos sair algumas horas por dia. As misturas de ervas para beber e os linimentos para passar na pele, que protegiam os vampiros dos raios solares, tinham sido inventadas há décadas. Os adultos estavam testando e suportavam quase uma hora lá fora.Eu achava aquilo extraordinário. Se aquela experiência finalmente desse certo, eu não precisaria ficar dentro de casa quando o sol estivesse brilhando. Correria pela neve ou pela montanha durante o dia, sem