DIAS ATUAIS
DIAS ATUAIS
MADISSON
A chuva escorria pelo vidro do meu quarto.
Tudo era embaçado, borrado como uma pintura esquecida. E no meio da névoa, uma garotinha chorava.
Ela estava de joelhos, com as mãos pequenas apertando o chão enlameado.
— Mamãe… — a voz dela era um soluço. — Mamãe, volta…Um grito cortou o ar. Eu virei a cabeça, mas não vi ninguém. Só a menina, sozinha, tremendo como uma folha.
Eu quis alcançá-la. Mas quando tentei dar um passo, a terra me engoliu.Acordei com o coração batendo no pescoço.
— Droga… — sussurrei, sentando na cama com os lençóis grudados nas pernas. O quarto estava escuro, mas a luz pálida que escapava pelas bordas da cortina indicava que o sol já ensaiava aparecer.
Levei a mão ao peito, ainda ofegando. A sensação era sempre a mesma, aquela mistura de tristeza e pânico, como se alguém tivesse arrancado uma parte de mim e esquecido de devolver.
Olhei para o relógio digital na mesinha. 5h48. Ainda dava tempo de dormir mais um pouco.
Deitei de novo, virando de lado, tentando me afastar do sonho. Mas a voz da garotinha ecoava na minha mente como uma nota esquecida no piano.
— Madisson! Acorda! Vamos, a gente tem que terminar de embalar tudo.
Minha irmã praticamente arrombou a porta do meu quarto. Gwen nunca foi boa com sutilezas, especialmente quando está animada. Ela estava de jeans rasgado, camiseta branca e cabelo preso num coque bagunçado. Linda como sempre.
O oposto de mim.
— Já são oito da manhã, preguiçosa. — disse rindo, puxando a coberta que eu tentava desesperadamente agarrar.
— Eu podia jurar que você estava triste por sair da faculdade e vir morar com a gente de novo — resmunguei, cobrindo os olhos com o travesseiro.
— Estou triste. Mas estou também empolgada. Vai ser uma nova fase! Uma cidade nova, casa nova… quem sabe uma vida menos chata pra você?
Revirei os olhos.
Nova fase. Vida nova. As pessoas sempre falavam como se fosse algo mágico.
Mas pra mim, não passava de despedidas, caixas e promessas vazias.Me arrastei até o banheiro e, quando voltei, Gwen já estava recolhendo meus livros e empilhando-os em uma caixa.
— Ei! Vai com calma! — protestei, pegando meu caderno de desenho das mãos dela. — Isso é sensível. E pessoal.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Então guarda você.Respirei fundo.
Era inútil lutar. A mudança era real.Duas horas depois, meu quarto estava irreconhecível.
Tudo empacotado, lacrado, etiquetado. Só restava a cama vazia, o pôster na parede e o buraco no meu peito.Descemos com as últimas caixas. Lá fora, o caminhão de mudança já estava estacionado, e meu pai falava com os carregadores enquanto minha mãe checava a prancheta com a lista das coisas.
Organização era o superpoder dela.— Você realmente acha que essa cidade existe? — perguntei a Gwen em voz baixa, observando a movimentação.
Ela sorriu.
— Lunaris Valley? Sim. Parece até nome de livro de fantasia, mas existe. O G****e mostrou umas fotos bem bonitas.— Bonitas e estranhas — murmurei, cruzando os braços. — Quem escolheu esse lugar esquisito?
— Nosso pai recebeu uma ótima proposta, você já sabe disso. Ele não podia recusar.— ela respondeu com um suspiro.
E, como se o universo estivesse sintonizado, ele apareceu logo em seguida.
— Tudo certo por aqui, meninas? — Oliver Allen, é o homem mais gentil e misterioso que eu conhecia.
— Certo? A gente tá fugindo pra uma cidade que parece saída de uma série de lobisomens — retruquei.
— Não exagera, Maddy… — Gwen tentou intervir.
Mas eu já estava no modo reclamona ativado. Eu não queria deixar meus amigos.
— Você amava seu emprego aqui. Você dizia que o laboratório era sua segunda casa. O que mudou? Por que agora Lunaris Valley é a melhor opção do mundo de repente?
Ele hesitou. Por uma fração de segundo, vi nos olhos dele algo que não era cansaço. Era receio.
— Porque esse novo cargo vai nos dar estabilidade. E vocês duas vão ter mais segurança.
— Segurança? Desde quando a gente vive em perigo?
Ele não respondeu.
Minha mãe se aproximou, envolvendo meus ombros com um braço.
— Vai dar tudo certo, querida. A nova casa tem um quintal enorme. Você sempre quis mais espaço para praticar seus saltos, lembra?Eu não disse nada.
Não era sobre quintal. Eu tinha amigos aqui, minha escola, boas lembranças.Então, existia esse pressentimento.
Uma sensação persistente de que algo estava errado.
Passamos metade do dia na estrada. O tipo de viagem que parece não ter fim.
Aos poucos, as placas de trânsito se tornaram menos frequentes. Os carros também. A paisagem foi mudando, se tornando algo... diferente da cidade grande.
Menos concreto. Mais natureza.
— Estamos perto — avisou meu pai, ajustando o GPS no painel do carro. — Mais vinte minutos.
Olhei pela janela. Árvores altas dos dois lados da estrada. Galhos entrelaçados formando túneis sombrios de sombra.
Era como entrar em outro mundo. Como se o tempo ali corresse mais devagar.— Tem certeza de que isso não é uma armadilha? — murmurei.
Gwen, no banco ao lado, soltou uma risada curta.
— Maddy… você é dramática demais. Aposto que a cidade vai ser linda.
Mas havia algo no ar.
Algo que não dava para explicar em palavras. Como quando você entra num cômodo onde alguém estava discutindo segundos antes. A energia continua ali, invisível, mas presente.E então, finalmente, a floresta se abriu.
Lunaris Valley apareceu como um quadro entre as montanhas, guardada por um enorme portão dourado, como uma bela gaiola. Uma cidade de casas charmosas, ruas largas e limpas, cercada por verde por todos os lados. Mas, apesar da aparência acolhedora, havia uma… simetria. Quase como se tudo tivesse sido planejado demais.
O centro comercial era moderno, com prédios de vidro, cafés e lojas de roupas sofisticadas. Pessoas bem-vestidas caminhavam pelas calçadas como se estivessem sempre atrasadas para alguma reunião importante.
— Parece cidade de catálogo — murmurei. — Quase perfeita demais pra ser real.
Meu pai sorriu, orgulhoso.
— Essa cidade foi planejada com muito investimento privado. É por isso que a sede da empresa fica aqui. É um polo tecnológico e ambiental ao mesmo tempo.— E é aqui que você vai trabalhar? — perguntei.
— Ainda não. A sede fica alguns minutos fora da cidade. Um prédio isolado, mais perto das montanhas. Mas o trajeto é curto.
Seguimos pela avenida principal e passamos por uma construção grande, com colunas modernas e janelas espelhadas. Um letreiro de metal brilhava: Universidade Técnica de Lunaris Valley.
— Faculdade — disse Gwen, com um sorriso orgulhoso. — Nossa, é linda. Melhor do que eu imaginava.
— E ali — completou meu pai, apontando para o prédio ao lado — é a escola nova da Maddy. O campus do ensino médio e o da universidade são integrados. Você vai poder almoçar com sua irmã, se quiser.
— Que sorte a minha — murmurei, forçando um sorriso.
A escola parecia… normal.
Não sei explicar, mas era como se eu estivesse sendo observada. Como se as janelas da escola tivessem olhos. Meus braços se arrepiaram.
Seguimos por mais alguns minutos até sairmos da parte central da cidade. As casas foram ficando mais espaçadas, mais sofisticadas.
— Chegamos — anunciou minha mãe.
A casa era maior do que eu esperava. Um sobrado branco com janelas altas, varanda com cadeiras de madeira e um jardim frontal muito bem cuidado.
Era linda.
E ainda assim, não senti nada.
Nenhuma empolgação. Nenhuma alegria.
— É... — murmurei, descendo do carro. — Parece que vamos morar em uma vitrine.
Meu pai riu.
— Você vai se acostumar, Maddy. Às vezes, a mudança assusta no começo. Mas essa cidade é segura, tranquila. É tudo o que a gente precisava.Ajudei a descarregar algumas caixas enquanto os caminhoneiros descarregavam o grosso da mudança. Gwen já corria de um lado para o outro, inspecionando os cômodos e decidindo onde colocaria seus livros, enquanto minha mãe organizava a cozinha.
Eu fui até o andar de cima e encontrei meu quarto.
Janela ampla, vista para os fundos — e o fundo era floresta.
Árvores, outra vez. Altas, imóveis, como se escondessem segredos.Soltei o ar devagar e me sentei na cama ainda sem colchão, com o sol já começando a se pôr lá fora. As sombras das árvores se estendiam como dedos no chão.
E de novo, aquela sensação.
Como se algo estivesse prestes a acontecer.
Mais tarde, após tomarmos banho e organizarmos as coisas mínimas para sobreviver à primeira noite, nos reunimos para jantar.
Minha mãe havia feito macarrão com molho de tomate — uma espécie de tradição da família nas mudanças.
“Molho é conforto”, ela dizia.— Vocês vão adorar a cidade — comentou ela, servindo mais macarrão no prato do meu pai. — Os vizinhos parecem simpáticos. Já vi algumas pessoas na rua sorrindo pra gente.
— Sorrindo demais, se você me perguntar — sussurrei. — Tipo aqueles comerciais de pasta de dente.
Meu pai apenas sorriu e balançou a cabeça.
— Amanhã a gente pode dar uma volta no centro. Mostrar tudo com calma. E Maddy, a escola já vai começar segunda, então aproveita o fim de semana para descansar.— Descansar ou surtar? — murmurei.
— As duas coisas — disse Gwen, piscando pra mim.
Apesar do clima leve na mesa, eu não conseguia relaxar.
Havia algo naquela cidade que me deixava em alerta. Não era medo… mas era algo próximo.