6 SOL

6

SOL

Quando o dia é longo

E a noite, a noite é somente sua

Quando você tem certeza de que já se cansou

Desta vida

Bem, aguente firme

Everybody Hurts - R.E.M 

Depois de estudar tanto que a cabeça dói, eu resolvo comer escondida, meu ato de rebeldia contida. Na cozinha meio escura, entro e paro, vendo Carlos e Marina bebendo vinho. Vou sair, mas o nome dele me atrai.

— O que vamos fazer com Bento? — Carlos pergunta, esperando uma ordem da mulher. Ele nunca agia sem ela.

— Vamos esperar, ver o que ele quer.

— Sabemos o que ele quer.

— Não se desespere, eu mais uma vez vou resolver tudo.

Ela sempre tomava a frente, resolvia tudo. Ela que foi até mim quando meu pai morreu e minha mãe sumiu. Eu ainda lembro da sua proposta; ela realmente resolveu tudo.

Vejo o casal Villas Carvalho confabulando sobre como se livrar do filho mais velho, e quase tive pena dele, mas lembro que ele me deixou depois de matar meu pai. Ele me abandonou, escolheu obedecer à sua hipócrita família, e ela mesma virou as costas para ele. Então, por que eu não podia? Por que não deveria escolher a opção que me faria sobreviver? Eu devia o quê, esperar por ele para sempre na rua? Esperar por uma explicação que não viria? Ele me traiu, e ponto. Deixou-me sem remorso. Ele era louco se achava que eu esperaria por ele para sempre. Era louco se achava que eu era a traidora. Eu era apenas um espelho; ele traiu primeiro, eu apenas refleti.

Saio da cozinha e volto para o quarto. Deito na cama macia que não mereço e penso em minha mãe. Como será que ela está? Bem? Feliz? Viva? Pensa em mim? No meu pai? Em nós?

Nos pesadelos, vejo o dia em que cheguei em casa feliz, sorrindo, achando que seria mais um dia comum. Vinha da aula, e Carlos, de carro, deixou-me em casa. Despeço-me de Sam e saio, vejo Bento treinando na academia do meu pai, ele me afeta com seu sorriso. 

As imagens do meu pesadelo se mesclam com outras, tentando me tirar dali, mas eu ainda lembro de tudo vividamente, como se fosse ontem.

CINCO ANOS ATRÁS

— Vem, quero ganhar de você de novo.

Fico tentada, jogo a mochila de lado e o observo, de short e blusa preta colados ao corpo, suado. A camiseta desenhando seu torso entalhado. Ele percebe meu olhar quase suplicante.

— Que isso, que imoral.

Rimos, trazendo leveza ao ambiente, coloco as luvas e começamos a lutar.

— Você é lenta, gordinha. — Odiava aquele apelido. Ele sabia. — Vamos, Girassol!

Esse eu amava. Ele me derruba, eu suspiro e levanto. Ele ri, e então coloco a mão na cabeça.

— Que foi? Está se sentindo mal? Eu peguei pesado? — Bento pergunta preocupado e se aproxima, tocando meu braço. Arrepio com o toque e então puxo ele com tudo, o derrubando e ficando em cima dele.

— Filha da… — Ele sorri, nossas respirações se mesclando. — Não posso fazer isso aqui. Para de me provocar, Sol.

— Mas eu quero. — Aproximo-me para beijar ele. Era sexy namorar escondido. E então ouço um baque seco, como uma cadeira pesada caindo, o que nos faz parar.

Ele me passa para o lado, rápido, forte, e levanta, já me levantando junto.

— Se seu pai nos ver, ele me mata. Sua mãe me mata, a minha me mata, o meu pai, todos me matam.

— Mas eu te amo. Não some mais, por favor.

Bento desarma, se segurando para não me pegar nos braços.  Estávamos juntos escondidos há alguns meses, depois de um começo conturbado. Dizer aquilo era natural para mim, sempre foi, desde que ele parou de resistir a mim e cedeu ao que sentia, mas para ele não era. Ele nunca falava. Que bom que foi assim, posso hoje em dia ter certeza de que ele nunca me amou. Ele só brincou comigo, só usou a carne fresca.

— Vai, sai daqui, anda — ele fala, eu rio e saio, entrando em casa. 

Tudo silencioso. Essa parte do pesadelo vem dia sim, dia não. Sempre revejo na mente, tentando ver algo novo, alguma dica, algo que perdi, mas nada muda.

— Luana!

Nada. Não falava direito com ela há meses.

— Pai!

Sigo para o quarto deles, pensando em quando poderia beijar Ben livremente, sem medo. Malditos dezoito anos. Quase dezenove. Abro a porta, e meu coração para, sem respirar, olho para cima, meu pai pendurado por uma corda no pescoço. Grito, horrorizada, e tento segurar ele pelas pernas, em vão; seu corpo sem vida é pesado.

Olho em volta, vejo malas jogadas, as roupas de minha mãe faltando no guarda-roupa aberto. Ela veio aqui? Ela viu ele, pegou coisas e... ela fugiu? Por quê? Por quê? Por que ela fugiu? Por que ele se matou? Por que me abandonaram?

Chorando, ouço a ambulância chegar e a polícia. Teria Luana avisado eles? Tiram-me a força do meu pai, enquanto molho minha blusa de tanto chorar, desesperada, em pânico. Acho que foi meu primeiro ataque de pânico. Levaram-me para fora, e lá vejo Bento falando com os pais, irritado. Ele vai entrar no carro e me vê. É empurrado pelos pais para o carro e sai. 

Ele não veio até mim. Choro mais ainda vendo meu pai sair morto na maca, procuro minha mãe na multidão e me vejo pela primeira vez absolutamente sozinha. Como seria dali para a frente?

 Ouço um policial dizer:

— Coitado, se matou depois de descobrir as traições da esposa.

Todos já sabiam? A cidade toda já sabia que meu pai era corno? Achei que só eu sabia.

— É, coitado, ser traído assim dessa forma, cara… eu acho que me mataria também. Porque perder para outro homem, ok, mas para um moleque, nem fodendo.

O outro fala para o parceiro, que o olha concordando. O que eles diziam? O que mais eu não sabia além das traições regulares de Luana.

— Ei! — digo, e eles me ignoram. — Ei!

Eles me olham, como se não tivessem me visto antes. Eu limpo o rosto e contínuo:

— Do que estão falando? Por que acham que ele se matou?

— Você é maior? Cadê seus responsáveis?

— Não sobrou ninguém — respondo, sem emoção. — Do que estão falando?

— Do que a Doutora Marina nos declarou quando o filho mais velho começou a gritar surtado, dizendo coisas sem sentido. Ela disse que… ele, o garoto Bento, e a esposa do lutador estavam juntos, e por isso ele se matou.

O policial fala a sentença que me faz entender que minha mãe era bem pior do que eu imaginava, e que Bento era tão ruim quanto. Ali, eu entendi num estalo que era só um brinquedo, um passatempo quando ele não podia ter ela.

Meu estômago se contorce de nojo. A vontade é de vomitar, de por toda a vida para fora. Não podia ser verdade, eu aguentaria se fosse uma traição comum; seria burra nesse nível, mas isso… isso é demais.

Quem eu quero enganar? Nunca aceitaria traição nenhuma, só de pensar em outras mãos tocando nele, eu já sentia ódio e nojo, mas isso foi muito além.

Minha mãe me odiava nesse ponto? O que foi que eu fiz para ela?

— O que está fazendo, cara? Ela é filha do falecido — uma policial fala, e os dois caras se olham, talvez se sentindo culpados… Eu saio flutuando, meio dormente, em direção a lugar nenhum, e Marina me puxa pelo braço.

— Vamos, vou tirar você daqui.

Ela fala, e eu obedeço.

No hospital, eu chorava descontrolada, lembrando da imagem do meu pai morto, sem vida, sendo carregado para ambulância. Olhei em volta; não havia ninguém, minha mãe sumiu, meus melhores amigos não estavam ali. Eu estava sozinha.

— Garota.

Olhei para cima, a voz de Marina era uma ordem, ela parecia gostar do desastre que via em mim, mas devia ser coisa da minha cabeça.

— Ele… se foi, sua mãe não atende, então… por consideração à amizade que tivemos um dia, eu vou falar só uma vez. Eu e Luana estudamos juntas, ela me traiu, destruiu nossa amizade, mas  vou ser superior, vou cuidar de você. Se quiser, fique, seja minha filha, siga minhas ordens e tudo ficará bem. O que me diz?

Ela era inquisitiva, e eu sabia o porquê, então, num ato de total insanidade, disse:

— Só quer tirar a culpa do seu marido e do seu filho? Os dois assassinos, não é?

— A culpada é a sua mãe, Sol. Não seja boba. Eu sou a vítima aqui.

Ri com lágrimas escorrendo do rosto, e ela acabou com tudo.

— Eu não tenho obrigação de cuidar de você, ninguém tem, mas como sou superior, eu vou.

As lágrimas caem e faço que sim com a cabeça, aceitando.

— Então, uma condição, sem negociação. Ou aceita, ou vai para um orfanato, rua, sei lá, tanto faz. — Ela agita as mãos no ar. — Apenas termine as coisas com Bento, esqueça essa paixonite adolescente e controle Sam. Faça ele ver que só serão irmãos, feito?

Eu, de dezoito anos, assustada, confusa, sem saída, com medo de ir para a rua, esperando que Bento entrasse ali, explicasse tudo, que me salvasse. Olho  para ela e falo na última esperança:

— Bento, não quer nem falar comigo? Ele não quer se explicar? Me ver?

— Sol, ele está a caminho da capital, ele não precisa. Ele não te quer mais, ele já teve o que queria. E agora ele vai para longe, como eu mandei. Não posso permitir que digam que meu filho é um assassino.

Sinto-me traída pelo garoto que amei, eu digo sim. Sim para a única opção de sobrevivência. Seguir ela e suas regras parecia melhor que morar na rua. A última esperança que eu tinha era Bento entrar e dizer que tudo ficaria bem, pegar minha mão como sempre fazia, explicando e me acalmando que ele não matou meu pai, que ele não me traiu, mas ele não veio. Eu esperei, esperei, e esperei, mas ele não veio.

Depois de horas chorando, fui para um hotel, como Marina mandou, ser consolada por Samuel. Quando ele me convenceu a ir comer algo, depois de dois dias ali trancada, Bento jogou sua praga em nós no meio do hotel e foi embora, deixando-me para trás.

PRESENTE

Acordo do pesadelo, olho em volta, torcendo para ser minha velha casa, mas não, é uma casa luxuosa. Toda suada, depois de mais uma noite de pesadelos, revendo as cenas finais do meu tormento pessoal. Eu sigo, porque é só o que resta.

Saio arrumada e feliz por todos já terem saído. Até Sam me deu folga, ainda bem. Sigo de Uber para a faculdade, paro no sinal, olho no rumo da velha academia de meu pai, onde ele ensinava luta, e vejo ela aberta. Uma onda toma meu corpo, parece como antes, nos velhos tempos. Tomada pela loucura, eu pago o Uber e desço correndo. Atravesso a rua, quase sou atropelada e paro na porta da academia , esperando ver, sei lá, o fantasma do meu pai, ou talvez minha mãe, já que o lugar havia ficado para ela, eu imagino. Mas vejo ele.

Bento, o maldito, sem camisa, calças pretas, suado, imponente, cada pedacinho do corpo que vejo coberto com tatuagens das mais variadas, novas e antigas. Ele está ofegante, treinando com uma mulher. A ruiva esguia é a primeira a me ver, e quando bota os olhos em mim, sorri, chamando a atenção de Bento com a cabeça.

— Mais cedo do que você disse que seria.

Uma música alta faz Bento olhar para ela, buscando entender, e seu olhar segue a cabeça dela, caindo sobre mim. Ele sorri de forma maligna, só no canto da boca, como se comemorasse um item na lista maldita de vingança dele.

— Girassol, estava pensando quanto tempo você demoraria para vir até aqui.

Os dois sorriem, e eu cerro os punhos. Desgraçados!

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