5 SOL

5

SOL

E quando chega a noite e eu não consigo dormir

Meu coração acelera, e eu sozinha aqui

Eu mudo o lado da cama, eu ligo a televisão

Olhos nos olhos no espelho, e o telefone na mão

A Noite - Tiê 

No meu quarto, a noite, quieta, eu sempre estudava, até porque, para acompanhar Samuel, tinha que estudar para me manter próxima e evitar que Marina desconfiasse que eu queria abandonar tudo e ser uma mal-agradecida, mas não nessa noite, hoje eu precisava de um descanso dos Villas Carvalho. Mando uma mensagem para Sam, meu cúmplice em noites como essa, e ele inventa uma desculpa para os pais, dizendo que iríamos ver pessoas importantes, filhos de políticos ou algo do tipo, o que não seria diversão, mas investimento, algo que Marina adora e aprova.

Depois do desastre no carro de Sam, eles estariam ocupados, provavelmente tentando parar o filho mais velho, o demônio que estava de volta. 

Encontro Sam do lado de fora de casa e entro no carro que o pai dele providenciou temporariamente; gente rica era outro nível. No meio do caminho, passo para trás e pego a mochila que trouxe e começo a me trocar, uma missão impossível no banco de trás, conferindo se Sam não me olhava. Fico quase nua, só de sutiã e calcinha, e por um deslize dele, o pego me olhando.

— Ei! — grito, e ele volta a olhar a pista, rindo.

— Foi mal, mas a gente não tem mais 10 anos, fica meio difícil.

Termino e volto para a frente.

— Não, não fica, irmão e melhor amigo, não fica, não.

— Claro — fala, debochando. 

Chegamos no velho bar no centro morto da cidade, o Tropicaliente, onde antes era badalado na época dos nossos pais, e entramos sorrindo. As pessoas nos cumprimentam, os mesmos de sempre, pessoas que não gostam das boates badaladas, dos lugares chiques, pessoas saudosas como nós. Sami não faz o perfil do lugar, mas sempre me acompanha; acho que ele tem medo de eu me meter em problema.

Depois de beber umas cinco doses sem nada no estômago, vejo o palco vazio. Sam me olha e sorri.

— Vai lá, vai se sentir melhor — incentiva, e eu levanto. 

Olho para Sandra, a dona do bar, uma velha amiga, uma senhora bem cuidada. Gosto das noites em que ela bebe demais e conta histórias de quando minha mãe botava fogo naquele bar, no palco, quase nua, hipnotizando todos. Eu era bem mais modesta, mas infelizmente, ou felizmente, a veia artística dela também estava em mim, o que não me deixava esconder e esquecer dela. Em cima do palco, cantando A Noite da Tiê, eu era eu, por alguns minutos, sem amarras, sem ordens, sem comedimentos.

A música me fazia lembrar de uma época que não voltaria mais, quando eu era burra e inocente, antes de perder a inocência divina que protege as crianças, antes de tudo ao redor perder a graça, a cor e o sentido. A escolha da música não agradou Sam, e ele não sorriu como sempre sorria, ouvindo-me no violão e voz, mas não liguei, só queria esquecer tudo por um tempo. Esquecer que já haviam se passado cinco anos, que eu não achava nada sobre Luana, minha mãe, na internet, que ela era um fantasma, não que eu quisesse realmente achá-la, mas pelo menos saber se está viva. Que eu não tinha coragem de ir ao cemitério ver meu pai, que Bento estava de volta e eu era um dos seus alvos.

Eu quase esvaziei a mente, mas então meus olhos pousaram na entrada do velho bar, e vi os olhos verdes me fitando, analisando, e me julgando no fim da música. Quase errei a letra, mas eu conhecia a música demais para isso, já havia cantado mil vezes para mim e para ele. Bento sorriu como se tivesse ganhado uma batalha, outra, ao perceber que eu ainda cantava a música que um dia cantei para ele, no mesmo bar em que vínhamos escondidos. Então ele sai contente, e eu xinguei para todos ouvirem.

— Filho da puta. 

Esse seria o plano dele, desestabilizar, perseguir, até eu implorar por misericórdia, mas eu não iria ceder, também sei jogar. 

Depois de beber além do que sou acostumada, sinto meu corpo mole e até as piadas sem graça do bartender me fazem rir, levanto do banco rente a bancada e tropeço em meus próprios pés, ok, talvez eu tenha exagerado, mas sinto mãos firmes me segurarem.

Sam passa um dos meus braços por seus ombros e se inclina para me pegar no colo, eu confio nele totalmente, mas não quero passar vergonha dele tentar me pegar e não conseguir porque sou pesada demais para ele. Então empurro suas mãos, ele me olha irritado, mas me guia até seu carro.

No caminho para casa, vou olhando pela janela as poucas luzes da cidade pequenas, que estão acesas. Chegamos e por sorte, o casal Villas Carvalho já dorme. Sam me j**a na minha cama e me analisa, suspira como se quisesse dizer algo, mas sai, e eu agradeço silenciosamente.

Acordo de madrugada para estudar, a droga da obrigação de estar à altura do sobrenome honorário. Marina entra e depois b**e na porta. Olha em volta, conferindo tudo como uma carcereira. Eu era agradecida por eles terem me abrigado, mas não via a hora de me ver livre deles. De me livrar dela.

— Ele a assustou? — ela pergunta inquisitiva, começando a conversa como se não fosse de madrugada. Eu convivia com a insônia, mas ela não. Ela dormia o sono dos justos. Ela só veio conferir se ainda tinha o devido e necessário controle sobre mim.

— Não, tudo bem. Ele só quer atenção.

— E não vai ter, né? A atenção que ele tinha, sua, agora é dos estudos, certo?

Marina pergunta firme e meio ameaçadora. No passado, quando eu e Bento tínhamos “qualquer coisa sem nome”, nunca demos nome. Eu, com dezoito anos, ele, com vinte e três, Marina deixou bem claro que não me queria com Bento, e depois, deixou claro que não me queria com Sam. Ou seja, ela até cuida de mim por obrigação, porque ela e minha mãe eram amigas no passado, porque ela é uma pessoa boa, mas não era o bastante para eu ser merecedora de um dos herdeiros Villas Carvalho.

— Certíssimo, Marina — repondo, torcendo para ela acreditar.

— Ótimo, ele deve tentar se aproximar. É só você ignorar e eu cuido dele. Não esqueça, ele destruiu sua família. Não seja boba, criança, ele não te amou. — Sinto o tapa no rosto sem ela precisar mover um músculo. — Cadê Sam?

— Não sei, ele não está no quarto?

— Ele deve estar em algum canto da casa. Ok, vá estudar.

— Sim.

Ela sai como se não fosse nada, e eu fico girando com suas palavras. Ele destruiu minha família. Ele, Bento. Ele matou meu pai. Ele fez minha mãe fugir. Ele me fez ficar sozinha. Ele. E o desgraçado queria vingança de todos, incluindo eu, por fazer apenas o necessário para sobreviver nesse mundo de merda. 

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