BENTO
CINCO ANOS ATRÁS
Me diga o que quer ouvir
Algo que agradará os seus ouvidos
Cansado de toda esta insinceridade
Então abrirei mão de todos os meus segredos
Secrets - OneRepublic
Era festa das bruxas, Sol e Sami foram fantasiados de Arlequina e Coringa numa festa no colégio deles. Avisei que os pegava na escola às vinte e duas horas e mandei que não fizessem gracinha. Sami me acusou de ser pior que Marina, e foram se divertir.
Fiquei no meu Opala SS em frente ao local, fumando, algo que fazia escondido dos pirralhos, não queria dar mau exemplo, e imaginando Sol naquela roupa curta, como parecia uma mulher, mas não era. Até ver uns caras mais velhos saírem com Sol e Sami e outras garotas com garrafas de bebidas, indo para um canto do parque ao lado da escola. Fiquei olhando no escuro das fracas luzes do parque. Sami não seria idiota de deixar Sol beber, de deixar que tocassem nela, ele era inocente, não burro.
Vi um oferecer a Sol, e Sami pegar a garrafa.
Boa! Isso protege ela.
Sol pega de volta e bebe. Eu meio que gostei, repreendi-me mentalmente, mas gostei de ela parecer adulta. Sol bebe, Sami não, eles riem, conversam, até que um cara começa a falar perto demais de Sol. Eu fazia isso às vezes, provocando ela, mas eu podia porque me controlava, esses caras não.
Sol se afasta dele, mas ele insiste, babaca! Sami estava meio perdido em uma garota, então soco o volante fazendo a buzina assustar eles. Saio do carro batendo a porta violentamente, jogo o cigarro fora e vou até lá. Quando eles me reconhecem, fazem cara de “fodeu” e sim, fodeu mesmo.
— Ben…
Sol fala, tentando me parar, mas já soquei o cara do lado dela, perto demais, tanto que ela até se desequilibra quando ele cai no chão, mas eu a puxo pelo braço para perto de mim e a seguro pela cintura possessivamente, como tanto queria fazer, mas não podia.
— Fora! Agora!
Todos os idiotas saem, levando o amigo desacordado. É, eu sabia dar um bom soco mesmo sendo jovem ainda, Afonso me ensinou a me defender e a defender Sol e Sam. Era como se Afonso soubesse que eu precisaria. Sami me olha culpado.
— Nem uma palavra, Sami. Me entendo com você depois. Para o carro!
Sol me olha perplexa e então vomita tudo nos meus sapatos. Sami ri, eu olho feio, ele para. Sol vai cair, mas seguro ela e a pego no colo. Sol é grande, tão forte que transparece no corpo, preciso malhar mais para acompanhar ela. Sigo para casa com ela apagada no banco de trás.
— Ben… — Samuel tenta falar.
— Não, você não fala. Você está errado, não há argumento!
— Eu sei!
— Não sabe! Você não sabe, eles eram mais velhos, mais fortes que você, e se eles fizessem algo com ela, Sami?
— Eu não deixaria.
— Você não dá conta de um, imagina três, Sami!
— Para! Para de me humilhar, de me dizer que não sou tão bom quanto você!
Foi a primeira vez que ouvi isso da boca dele. De onde isso veio? Eu podia imaginar, Marina. Ela adorava criar competições entre nós, adorava fazer Sami se esforçar em me superar. E para quê? Não havia competição, não para mim. Eu ficaria feliz em ver ele me superar.
— Não, Sami, é que você é menor, mais novo. É só a realidade. Você não daria conta deles. Se a coisa ficasse feia, como ia ser para ela, hein? Já pensou? Homens maus podem ser cruéis com mulheres desprotegidas, você sabe disso. Você já tem idade para saber.
— Deus… você acha que eles…
— Acho. Não deixe mais eles chegarem perto dela, se ver, me liga na hora.
Paro o carro em casa, ele desce. Olha Sol apagada com culpa.
— Eu levo ela.
— Ben…
— Não se preocupe, vou falar para os pais dela e para os nossos que dei bebida para ela. Eu aguento a bronca.
— Valeu.
Saio dirigindo devagar, tentando não acordar ela.
— Preciso vomitar…
Ouço e paro o carro, Sol desce e vomita ao lado, no acostamento. Eu seguro os cachos rebeldes e olho para a roupa que mostrava demais, desvio o olhar, tarde demais, Sol percebe.
— Não vai me matar, né?
— Você merece, sabe o que podia ter rolado, né?
— Eu vi você.
— Quê?
— Vi você, Bento. Vi que não saiu de lá desde o começo, então fiquei esperando o que faria, se teria coragem.
Sol parecia doce e inocente, uma menininha, ainda inteira, com todos os sonhos, mas eu sabia que ela era forte, sabia pelas coisas ruins que ela já havia passado só por ser quem é. Ela era forte, mas não devia precisar ser. E essa força que ela aprendeu a ter às vezes a levava a ser adulta demais, provocativa, e eu quase esquecia que não devia chegar muito perto.
— Tá bêbada.
— Eu tô?
Ela ri, e eu a seguro para ela não cair.
— Eu queria saber se te incomodava me ver com um cara que não fosse Sam, um que você não soubesse se eu ficaria ou não.
Então, Sami está fora? Isso me deixa feliz, até demais. Sol se inclina em direção a minha boca, mas no último segundo viro o rosto e ela beija minha bochecha. Eu me afasto.
— Sol! Tá maluca?
Ela ri. Filha da puta! Essa merda é engraçada para ela.
— To, há muito tempo, a minha paz foi embora, Bento, e a culpa é sua, sua!
Ela grita e agita as mãos no ar, como adora fazer, uma mania, outra que decorei, e eu noto a beleza absoluta dela: olhos negros, cachos bagunçados, boca roxeada volumosa, pele lisa preta. Ela é perfeita.
Perfeita!
— Como é?
— Você é muito gostoso, é lindo, que dá raiva. Por que tem que ser tão lindo, hein? E ainda, ficar tão perto, sempre me protege, cuida. Não vê que me confundi?
Ela fala desabafando, e eu me dou conta de que fiz isso mesmo: flertes inocentes, protetor, sempre do lado dela. Confundi a cabeça inocente dela, eu era o culpado. Armei minha própria armadilha e caí. Eu queria cair.
Ela se aproxima, e eu me afasto.
— Sam disse que você tem namorada… é verdade?
Ela termina a pergunta segurando o choro. Olhos murchos, boca num biquinho que sempre usava. Eu só quero abraçá-la, beijá-la, mas não sei se quando começar vou conseguir parar. Não posso fazer isso com ela. Preciso juntar minha merda e me afastar dela.
— Gosto de você desde os 10 anos. Agora que tô ficando mais velha, outra vai ter você?
Eu quis rir. Mais velha? Garota, você é só uma criança e eu, a porra de um louco se te ouvir, se der abertura.
— Sol…
Comecei com cautela.
— Eu sou seu irmão, você é minha irmãzinha. Nada vai mudar isso. Vamos para casa?
— Então, por que me olha assim?
Ah, não, porra, ela é esperta. Ela me viu olhar para ela, viu todas às vezes. Todas as malditas vezes! Seu burro!
— O quê?
— Quando eu saio da piscina, me olha. Quando eu acordo na sua casa, você tá me esperando, seus olhos. Quando busca a gente na aula, seus olhos no retrovisor, sem falta, seus malditos olhos verdes.
Quem é ela? Quem é essa mulher determinada na minha frente?
Ela dá um passo, puxa minha camisa, e eu quase cedo, quase. Queria, nossa, como eu queria beijar a boca dela, roxa, volumosa. Deve ser deliciosa para caralho. Ela me olha, olhos negros, e sei que, se não parar, vou fazer besteira. Porque não sei se consigo parar, não sei o quanto quero ela, e o quanto ela me controla.
Então, a afasto meio ríspido.
— Eu não namoro, ainda, mas vamos fazer um trato: se e quando eu namorar, você será a primeira a saber, Sol Medeiros Duarte, ok? Ficamos bem assim?
Sol pensa meio lenta e decide que isso é melhor que nada.
— Não minta para mim. Confio em você.
— Nunca.
Ela entra no carro, do meu lado, e a levo para casa. Em silêncio, tento ignorar as pernas dela. Nossa, que pernas. Porra, eu estou muito fodido.
Eu era fraco e, principalmente, inocente, bobo, como minha mãe gostava de dizer. E ela gostava que todos fossem, menos ela; na sua mente, ela era a mais poderosa, e todos se dobravam perante ela, narcisista nata. E eu cresci com essa merda. Era só uma desconfiança até que tive a prova.
Era um dia comum, estava insuportavelmente quente. Isso foi alguns meses antes da merda explodir. Fui buscar os pirralhos na escola com o carro que meu pai havia me dado para emergências, e ver Sol para mim era emergência, naquela época. Quando vi os dois saírem da escola, disfarcei o sorriso.
— Por que veio, idiota? — Sami falou entrando no carro, naquela época ele me adorava, ainda adorava, pelo menos eu achava, antes dele me trair. Alguns meses depois, o que restou foi ódio entre nós.
— Quer ir no sol? — perguntei.
— Com a Sol? Sim.
Os dois riram, e eu saí dirigindo. Passamos numa sorveteria, comprei para eles e os fiz prometer que não deixariam Marina saber. Perguntei da escola, Sami falou sem parar, Sol me olhava pelo retrovisor, já sabendo que eu faria o mesmo.
Alguns dias antes, a garota tinha tomado coragem e se declarado. Foi um desastre, porque antes era só flerte bobo, inocente. Agora, não sabíamos o que fazer.
Eu precisava pôr um limite, eu era o adulto, e ela a criança. Eu precisava relaxar, me distrair, levar algumas mulheres para cama e tudo ficaria bem, pelo menos por um tempo.
— Irmão, você ainda está namorando aquela garota? — Sami perguntou. Sol prestou atenção, e eu olhei feio para ele, sabendo que esse boato foi o motivo de Sol se declarar. Ela fingiu não ouvir.
— Cala boca, Sami!
Em casa, saímos do carro, eles foram para perto da piscina como crianças animadas.
— Cinco minutos! Ou a carcereira pega vocês — falei e entrei em casa sob o olhar desconfiado de Sol. Era melhor assim, ela era só uma criança, e eu tinha faculdade e tudo mais. Todos surtariam. Apenas… esqueça!
Eu a convenci a esquecer há alguns dias, mas não queria provocar. Prometi a ela que, se eu namorasse, ela saberia. E com nosso acordo mantido, teria um tempo para procurar algum rabo para me distrair dela.
Entro em casa e vejo meus pais discutindo.
— Não consegue segurar esse pau nas calças? — Marina grita, sem saber que estou ali. Meu pai tenta se defender.
— Marina, eu…
— Você não aprende, ela não é para você, ela é uma puta! Eu sou… eu sou a escolha, esqueceu?
Meu estômago pesa. Meu pai traía Marina? Eu e ela não nos dávamos bem. Eu sempre achei que fosse a mania de controle dela, mas ela parecia mesmo não gostar de mim, só de Sami. Eu fazia o máximo para não estar em casa, sumia por tempos e ignorava eles. Acabei a escola, entrei na faculdade, mas mal frequentava. Só queria irritar eles. Era bom demais. Meu pai mal me olhava, mas era próximo de Sami, ela também era. Então ouvi as palavras delas que me deram as peças que faltavam.
— Eu destruí meu corpo para segurar você, eu tive que ter um filho quando não queria, para agradar sua mãe! Bento é seu pagamento em troca da fidelidade, então me dê a porra da sua fidelidade!
Marina grita quase fora de si, e eu saio sem que me vejam, passo pelos meninos que estão rindo e brincando. E penso, será que eles aguentariam se eu sumisse de vez? Se importariam?
Éramos bem próximos. Eu tentava cuidar deles como dava, já que meus pais e os de Sol não davam tanta atenção, menos Afonso. Ele, dos quatro, parecia o único afim de ser pai. Pego o carro e saio rápido, vou para o único lugar que me sinto em casa, a velha academia ao lado da casa de Sol. Vejo Afonso ensinando crianças e o cheiro da comida de Luana. Os dois eram perfeitos, ou eu achava que eram. Simples, felizes, sem toda aquela pomposidade dos Villas Carvalho. A aula acaba, os alunos saem, Luana me vê, sorri arrumando algo na entrada da casa meio desconfiada, e eu sorrio.
— Já levo algo para comerem!
Ela fala e eu sorrio de volta, entro. Vejo Afonso arrumando as coisas. Ele me observa.
— Tudo bem, garoto?
Eu não respondo, e então ele já sabe.
— Seus pais brigaram? O que foi? Fala para o seu mestre, garoto.
Como uma criança, começo a chorar com as mãos no rosto, e Afonso larga tudo no chão e me abraça. Ele me segura, enquanto me permito ser frágil pela última vez. Ele me segura como um pai deveria fazer, até que me recupero e consigo falar.
— Ela disse… ela disse que eu… eu só nasci para segurar ele, segurar meu pai para agradar aquela velha maldosa da minha avó que castigava a gente.
Afonso, com pena nos olhos, abraça-me mais forte, e sentamos. Hoje eu tenho plena consciência, assim como tinha há cinco anos, que decepcionei Afonso. Minha obrigação era cuidar de Sol e de Sami. E eu falhei.
— Eu sinto muito que tenha ouvido isso. Eu sei como é ser a segunda opção, ser a consequência, a escolha errada.
— Do que está falando?
— Não precisa saber as histórias desse velho, mas precisa saber que eu estou aqui se quiser socar, se quiser chorar ou rir, estou aqui como seu amigo.
— Eu sei. Obrigado, mestre.
Esse era um dos motivos de rejeitar Sol no começo. Afonso, ele confiava em mim para cuidar dela. Como eu poderia?
— Como eles pareciam, Ben? Acha que vão se separar?
— Não sei, Afonso. Acho que não. Eles… se merecem.
Funguei, tentando disfarçar o choro, mas não precisava fingir na frente dele, Afonso era meu amigo. Ele suspirou e me abraçou, deitando minha cabeça em seu ombro, dando-me espaço para chorar.
— Porque não treinamos um pouco? Ainda sonha em ser um lutador famoso, né? — Ele pergunta me fazendo sorrir e eu assinto.
Eu era sem sorte em ter uma mãe que não me queria e um pai que nem lembrava de mim, mas sortudo por ter Afonso, um amigo, um pai. Teria que dar um jeito de me controlar com Sol.