Capítulo 3

Helena Evelyn

Eu já estava arrependida antes mesmo de pisar na passarela.

Luzes fortes, música alta, gente rica por todos os lados… e eu ali, de calcinha e sutiã, tentando parecer confiante enquanto minha alma queria fugir correndo de volta pro interior da Bahia.

Ketley dizia que eu tinha o corpo perfeito. Talvez tivesse. Mas não era isso que importava. O que me travava era outra coisa.

Ou melhor, outra pessoa.

Ele.

O moreno dos olhos negros. O arrogante. O demônio disfarçado de CEO. A criatura que Deus com certeza criou num dia de mau humor: Nathan Keen.

Eu jurava que não ia olhar na direção dele. Jurei pra mim mesma, pra Nossa Senhora e pra todos os santos do céu. Mas assim que dei o primeiro passo na passarela, senti.

O olhar.

Pesado, quente, irritante.

Levantei o queixo, fingi que era poderosa, que estava acostumada a desfilarem de lingerie na frente de desconhecidos… e encontrei os olhos dele na primeira fila.

Claro. Onde mais aquele infeliz estaria?

Pernas abertas, braço jogado no encosto da cadeira, terno escuro bem cortado, barba por fazer… e aquele sorriso de canto como se o mundo inteiro fosse um brinquedo particular. Como se eu fosse um brinquedo particular.

“Não tropeça, Helena”, implorei a mim mesma. “Se tropeçar na frente desse homem, você se j**a do palco e não volta nunca mais.”

Cada passo parecia ecoar direto no peito. Eu me obriguei a olhar pra frente, mas a verdade é que, a cada volta, meus olhos voltavam pra ele como se fossem teimosos. Aquele olhar avaliador, de quem acha que tem o direito de aprovar ou reprovar tudo que vê.

Eu queria enfiar um salto agulha na cara dele.

Quando saí da passarela, minhas pernas tremiam. Aplausos ecoavam detrás de mim, flashes, gritos dos fotógrafos, mas tudo o que eu conseguia ouvir era a própria cabeça:

“Por que esse homem é tão bonito, meu Deus? Não podia ser feio? Careca? Barrigudo? Com cheiro de cebola?”

Mas não. Tinha que ser aquela mistura de pecado com arrogância.

— Você arrasou, Valentina! — Ketley me abraçou, empolgada, assim que entrei no backstage. — Os caras quase babaram em cima de você.

— Eu quase desmaiei em cima deles — murmurei, jogando o cabelo pra trás. — E tem um específico que eu queria que engasgasse.

— Deixa eu adivinhar… — Ela revirou os olhos. — O Magnata?

— O próprio filho de satã.

Ketley riu, mas eu não. O problema é que, enquanto falava mal, uma parte de mim lembrava da forma como o terno dele caía nos ombros largos. Da maneira como o relógio caro brilhava no pulso. Do jeito que a calça marcava…

Pare, Helena.

Você não veio pra cá pra admirar bunda de homem rico.

Depois do desfile, tivemos sessão de fotos com a nova coleção Keen. Lingeries caríssimas, poses sensuais, fotógrafo animado, assistentes correndo de um lado pro outro. Fiz tudo certo, pelo menos eu achava que sim. Cumpri o que pediram, aguentei o salto alto, a maquiagem pesando no rosto e a vergonha grudada na pele.

Quando finalmente a equipe liberou a gente, eu só queria arrancar tudo, colocar um short velho e comer arroz, feijão e carne de panela. De preferência com farofa. Muita farofa.

Mas aí veio o recado.

— Valentina — chamou uma das assistentes, com uma prancheta na mão. — O senhor Keen pediu pra você voltar pro setor de figurino e organizar todas as peças que foram usadas hoje. Dobradas, etiquetadas e separadas por tamanho.

Fiquei olhando pra moça alguns segundos, tentando ter certeza de que tinha ouvido direito.

— O quê?

— Foram as ordens dele.

As outras modelos, ao redor, trocaram olhares. Algumas riram baixinho. Outras fizeram cara de pena.

O sangue subiu para o meu rosto na mesma hora.

Claro. Claro que era isso. O lindo, maravilhoso, desgraçado do Nathan Keen tinha que achar um jeito de me castigar pelo tapa que eu dei nele dias atrás. Em vez de me mandar embora, tinha decidido me transformar em funcionária de almoxarifado.

— Esse homem só pode estar pedindo pra morrer — resmunguei, sentindo a raiva borbulhar.

— Val, deixa isso pra equipe de limpeza, vá… — Ketley tentou me acalmar. — Ele não pode te obrigar.

— Ele é o dono da marca, Ketley. — Cruzei os braços. — Pode tudo.

Tudo não, uma parte da minha alma retrucou. Ele não pode tudo. Não em relação a mim.

Mas, por enquanto, eu ainda precisava do salário.

Fui pro setor de figurino com a vontade de arrancar cada paletó caro daquele homem e enforcá-lo com as gravatas italianas.

O depósito de roupas parecia um campo de guerra: rendas, sutiãs, cintas, meias-finas, cabides espalhados. Respirei fundo, coloquei o fone de ouvido e deixei Ivete Sangalo entrar na minha cabeça.

“Poeiraaaa… levantou poeira…”

— Só não levanta é o meu humor — murmurei, pegando o primeiro monte de lingerie.

Enquanto dobrava uma calcinha rendada mínima, eu o xingava mentalmente.

Canalha. Arrogante. Galinha. Patético. Magnata de meia tigela.

Lembrei da cena da bofetada. Do rosto surpreso dele, da marca vermelha na pele. Do silêncio no salão inteiro. Do meu coração batendo na garganta.

Qualquer pessoa com juízo perfeito teria se encolhido, pedido desculpas, se arrependido pro resto da vida.

Eu, não.

Eu o encarei, levantei o queixo e falei:

“Chama de cadela de novo pra você ver onde eu enfio sua língua.”

Sim, talvez um pouquinho exagerada. Só um pouquinho.

Mas era isso ou ficar quieta enquanto um homem rico achava que podia me tratar como lixo só porque eu vinha da roça.

Dobrei mais um sutiã, empilhei as peças, coloquei etiqueta. Quanto mais organizava, mais a cabeça funcionava.

Eu odiava Nathan.

Odiava o jeito como ele andava, como falava, como olhava pros outros de cima. Odiava a risada dele com as modelos que jogavam o cabelo pro lado pra chamar atenção. Odiava a forma como a imprensa o chamava de “Magnata irresistível”.

Mas, acima de tudo, eu odiava o que ele fazia comigo.

Porque, desde o dia da bofetada, eu não conseguia parar de lembrar do rosto dele. Da altura. Dos ombros. Daquela voz rouca mandando a mulher do telefone “se preparar porque hoje ele ia pegar ela e dar muito prazer”.

Que tipo de homem fala assim com tanta naturalidade? E pior… que tipo de mulher gosta disso?

Senti o rosto queimar só de lembrar da frase completa. Na hora em que ouvi, queria sair no tapa. Agora, sozinha ali, dobrando renda, eu sentia um arrepio estranho percorrer minhas costas.

— Não, Helena — falei em voz alta, cortando o pensamento. — Você não vai ter tesão nesse homem. Nunca.

Uma calcinha caiu do monte porque minha mão tremeu de raiva.

Estava juntando do chão quando ouvi uma voz masculina do lado de fora do depósito.

— Já terminaram de organizar o material?

Reconheceria aquela voz em qualquer canto do mundo.

Engoli seco.

Ele não entrou. Só passou pelo corredor, falando com alguém da equipe, sem me ver. Mesmo assim, meu corpo inteiro ficou em alerta, como se um bicho perigoso tivesse passado na porta da minha cela.

Fiquei quieta, escondida atrás das araras, ouvindo os passos se afastarem.

Quando o som desapareceu, eu me larguei numa cadeira, exausta.

Era isso que ele fazia comigo: me deixava em estado de guerra o tempo todo. Não importava se estava perto ou longe, minha mente vivia girando em torno da existência dele — pra odiar, planejar respostas, imaginar formas de humilhá-lo de volta.

Se isso não era uma praga, eu não sabia o que era.

Quando finalmente me liberaram, o céu já estava escuro. Eu e Ketley saímos juntas, e ela falava animada sobre a festa de sábado, sobre o look, o salto, as pessoas que iam.

Eu só pensava em duas coisas:

1. Pizza.

2. Sumir do planeta em que Nathan Keen existia.

— Você hoje estava com uma cara… — Ketley me encarou no carro. — De quem tinha vontade de matar.

— Uma pessoa só. — Cruzei os braços. — Mas uma pessoa grande. Ia dar trabalho.

— O Magnata, né?

— Se eu falar o nome, talvez ele apareça, igual demônio de filme. — Suspirei. — Aquele homem tira minha paz, Ketley. Eu odeio ele com todas as forças da minha alma.

Ela riu.

— E seu corpo?

— Meu corpo também — menti rápido demais.

Ela ergueu uma sobrancelha, como se não acreditasse muito.

Fiquei olhando pela janela, vendo as luzes da cidade grande passarem rápido. Lembrei do cheiro de terra molhada da Bahia, do barulho do vento no milharal, dos gritos dos meus irmãos correndo pelo quintal.

Ali, com o corpo doendo do salto e o peito apertado, eu me perguntei quando tinha sido que minha vida virou isso: trabalhar quase nua, com um CEO galinha me odiando e um medo constante de alguém descobrir que meus documentos eram falsos.

Se Nathan descobrisse…

Arrepiei só de imaginar.

Ele podia me demitir, me entregar pra polícia, me expor, me humilhar. Podia fazer o que quisesse. Era rico, poderoso, mimado. E eu era só uma menina de dezoito anos escondida atrás do nome Valentina.

Uma mentirosa de calcinha rendada.

— Eu nunca devia ter vindo pra cá — murmurei.

— O que você disse? — Ketley perguntou.

— Nada. Só tô cansada.

Emily e Sophia se espremiam no sofá, mexendo no celular, enquanto eu e Ketley ríamos na cozinha por causa da minha fome escandalosa.

— Você tem um buraco negro dentro do estômago, só pode — Emily resmungou. — Se eu comer isso a essa hora, amanhã não visto uma peça da nova coleção.

— Problema seu — respondi, dando mais uma mordida. — Minha genética é abençoada. Até agora, eu posso comer de tudo.

— Até agora — Sophia destacou, maldosa.

Revirei os olhos. Só quem tinha passado fome de verdade sabia o prazer que era poder pedir uma pizza inteira e comer sem medo de faltar amanhã.

Enquanto mastigava, minha cabeça voltou pro homem que eu tentava odiar em paz.

Nathan e seus olhos negros.

Nathan e o tapa que eu tinha dado.

Nathan e a cara de nojo cada vez que olhava pra mim na Model.

Se eu fechava os olhos, conseguia ouvir a voz dele de novo, no telefone, chamando outra mulher de cadela. O tom rouco, sujo, convencido. Uma parte de mim tinha vontade de vomitar.

Outra parte… não sabia o que sentir.

Terminei de comer, tomei banho, coloquei meu pijama ridiculamente curto cheio de bichinhos e me joguei na cama, abraçando o travesseiro.

— Eu odeio esse homem — sussurrei para o teto. — Odeio, odeio, odeio.

Repiti tantas vezes que o ódio virou quase uma reza.

Só que, quando finalmente o sono veio, não foi a lembrança da bofetada que apareceu.

Foram os olhos dele.

Negros, intensos, prepotentes.

E, no sonho, eu não estava dando um tapa.

Eu estava chegando perto demais.

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