Tinha sido uma noite maravilhosa. Não fizemos sexo como das outras vezes — desta foi sem pressa, sem urgência — porque sabíamos que, agora, não era a última vez, entrelaçamos nossos corpos num ato vagaroso, delicioso sem hora para acabar. Adormeci com Maria Vitória em meus braços, enquanto ela falava sobre os cortes secos que a nova orientadora fizera em sua monografia. Aconselhei que publicasse a pesquisa depois da defesa — com minha revisão.Ver os olhos dela brilhando na imensidão escura do quarto me trouxe uma certeza: estávamos recomeçando. Não sabia quanto tempo aquilo duraria, mas queria que fosse bom enquanto durasse.Ela saiu cedo. Tinha estágio. E, embora fosse ruim deixá-la sair da cama, foi... admiravelmente responsável quando chegou a porta. A luz da manhã entrava tímida pelas cortinas. O sol ainda não aquecia o suficiente pra tirar o frio do peito. Sentei na beirada da cama, sem camisa, celular na mão.A mensagem de Mavi ainda brilhava na tela:“Ele me ligou. Disse que
Meus batimentos estavam descompassados.Eu e Marcelo apertamos o gatilho praticamente ao mesmo tempo — o dedo dele forçando o meu, tentando destravar a arma.Mas o tiro… não foi em mim.Quando o corpo dele estremeceu sob o meu, um nó se formou na minha garganta.A mão dele fraquejou sobre a minha.— Maria Vitória… Maria… — ouvi Alexandre atrás de mim, a voz embargada, os braços tentando me afastar.Mas era tarde. Tarde demais.Apertei o gatilho novamente.Uma. Duas. Três. Quatro vezes.Na quinta, a arma travou. Não disparava mais.E, mesmo assim, eu continuei ali. Tremendo.Eu não queria mais ver minha mãe com medo. Sempre assustada.Não queria mudar de cidade outra vez.Não queria viver com medo.— Maria Vitória? — a voz dele ecoou na minha orelha.O barulho da porta se abrindo me atingiu como uma onda distante. Mas eu não me virei.Eu estava paralisada. Em choque.Confessando, em silêncio, tudo o que havia feito.— Me dá isso! — Alexandre tentou puxar a arma da minha mão.— Não! — g
Por mais que eu estivesse preocupado com Maria Vitória, mesmo sabendo que ela estava sendo representada por advogados competentes, havia um mal-estar maior que me corroía.Maria Clara ainda estava solta.As estradas tinham blitz. A rodoviária, vigilância reforçada.Todos os acessos estavam sendo monitorados.Mas nada. Nenhum sinal dela.Quando fui informado de que Maria Vitória havia alegado legítima defesa, o caso se inverteu completamente.O olhar da Justiça mudou.As atenções também.Ela deixou de ser vista como uma criminosa impulsiva — e passou a ser reconhecida como alguém que sobreviveu.A partir dali, deixei de me preocupar com ela, pelo menos juridicamente.Caroline a preparou com maestria. Ainda mais com o inquérito aberto contra Marcelo pelo ataque brutal à Laura.Ele agora era oficialmente um foragido. Um homem perigoso.E Maria Vitória… uma vítima.Mas os meus males, esses não haviam acabado.Quando revisamos as filmagens do prédio, senti o sangue gelar.Maria Clara apare
Após a prisão de Maria Clara, as coisas finalmente se acalmaram. Ela foi transferida para um presídio quase imediatamente. Ninguém nos explicou o motivo, mas a doutora Caroline me contou, com um olhar mais sério do que o habitual, que Maria Clara havia sido classificada como alguém extremamente perigosa, até mesmo para outros detentos.Eu tentava retomar minha vida: os estudos, o estágio. Minha mãe voltava à sua produção. Tia Lena veio passar o fim de semana conosco, mas eu sabia que não era apenas uma visita. À noite, ela desapareceu, como sempre. E, desta vez, eu não fui atrás.Meu pai estava surpreendentemente centrado naqueles dias. Dividia a direção do hospital com Alexandre, e os dois até contrataram um cirurgião temporário para substituí-lo em alguns plantões. Ele parecia determinado a manter tudo funcionando, como se quisesse provar alguma coisa, talvez a si mesmo.Naquela noite, fui até a área externa da casa e os encontrei ali: meu pai e Alexandre, sentados sob a luz amarela
— Claro que é! E se não for... — Deslizei a mão entre nós, por dentro do roupão. O gesto desfez o nó com uma facilidade quase simbólica — imprudente, diferente, estranho. — Eu quero tudo. Que você seja minha esposa, que tenhamos filhos, netos... bichos, o que quiser. Quero mor...Mavi levou o dedo aos meus lábios, firme.— Não ouse dizer isso. Eu aceito ser sua mulher. Já sou sua mulher. Quero ser mãe dos seus filhos, dos seus netos... mas nunca fale de morrer, Alexandre. Nunca.Assenti, silencioso, a conduzi até o banco de trás. Ela se deitou ali, me olhando como se o mundo fosse só nós dois.— Eu aceito ser sua... em qualquer lugar — sussurrou.Olhei para o corpo dela, magnífico, natural, de um jeito só dela.— Você é incrivelmente perfeita...Ela me puxou pela gola da camisa, urgente.— Me come primeiro, me elogia depois — falou com pressa, com fome.Ri, me aproximando da sua boca.— Você parece mais faminta que eu.— Claro que sim. Você me olha com esses olhos e eu só consigo pens
O relógio digital da sala de reuniões marcava 8h07 quando Maria Vitória empurrou a porta com uma pasta de relatórios sob o braço e um copo de café na outra mão. Os cabelos presos num coque prático, o jaleco branco por cima do vestido azul-marinho. A sala estava cheia — enfermeiros, gestores, dois representantes da ala pública recém-inaugurada.— Bom dia a todos — ela sorriu, sentando-se à cabeceira. — Vamos tentar resolver tudo antes das nove. Tenho uma entrega no colégio da Alana às dez.Todos sorriram. A doutora Xavier era conhecida por ser firme, objetiva e… absolutamente apaixonada pelos filhos. Mas pelo marido? Todos sabiam que ela largaria tudo, sem hesitar, se ele ligasse repentinamente.Enquanto ela revisava gráficos de atendimento e planos de expansão da ala pública, o celular vibrou discretamente sobre a mesa. Uma foto apareceu: Alexandre com os cabelos bagunçados, jaqueta jogada no ombro e um sorrisinho de canto, em frente à universidade.Mensagem dele: "A aula hoje foi um c
De todos os pecados que aprendi a esconder, a gula era o mais inofensivo. Uma indulgência simples, quase inocente, que me permitia escapar, nem que fosse por um breve momento, da realidade sufocante em que vivia. No calor insuportável de um domingo carioca, meu refúgio era um copo generoso de sorvete de morango. Gelado, doce e quase inocente. Quase.Sentada no sofá da sala, com o ventilador batendo em meu rosto, observava o movimento na piscina através da janela entreaberta. Minha mãe de biquíni laranja, rodeada de convidados bronzeados, risadas ocas, corpos molhados e taças de espumante. A típica cena das festas dela. Aquelas festas que sempre me faziam sentir como se fosse uma intrusa no mundo dela. O tipo de vida ao qual nunca consegui pertencer.As risadas alheias me pareciam vazias, como se fossem apenas uma forma de preencher o silêncio desconfortável que sempre reinava entre nós. O copo de sorvete se esvaziava lentamente enquanto eu me perdia em pensamentos, tentando ao menos po
Os dias foram passando, o ambiente em casa se tornava cada vez mais hóstil. Minha mãe sempre ocupada, distraída com suas próprias preocupações, mal percebendo o que acontecia ao seu redor. Eu, por outro lado, tinha as obrigações da faculdade, as provas finais, os estágios práticos chegando, o final do de semestre, mas nada disso parecia ser suficiente para me afastar das visitas de Marcelo.Às vezes, eu mal podia acreditar em como ele conseguia se fazer presente sem ser convidado, aparecendo em todos os cantos da casa, sempre com aquele olhar que não sabia esconder. Ele parecia estar em todo lugar, sempre perto demais, como se quisesse ocupar cada espaço. Cada movimento meu era seguido por ele, e eu não sabia mais como reagir.Era comum que eu estivesse no meu quarto, tentando estudar ou descansar, quando ouvia a porta se abrir com um ranger baixo. Ele nunca batia. Apenas entrava, e o simples som de seus passos parecia encher o ambiente com uma tensão que eu não sabia como cortar.No i