Mundo de ficçãoIniciar sessão
O som insistente do despertador rasgou o quarto apertado e abafado, arrancando Helena de um sono que parecia ter durado apenas alguns segundos. Ela piscou várias vezes, tentando lembrar onde estava; o cérebro ainda pesado depois de passar a madrugada estudando para a última prova do semestre.
— Merda… — murmurou ao conferir a hora. Justo hoje. A entrevista. Levantou num salto, tropeçando nos cadernos espalhados pelo chão, atravessou o corredor minúsculo e acendeu a luz fraca do banheiro. O espelho devolveu sua imagem — e, como sempre, ela demorou um instante para reconhecê-la. Helena Marlow tinha 22 anos, pele clara com brilho suave mesmo sob olheiras teimosas, e olhos castanhos grandes demais para esconder o que sentia. O cabelo castanho-escuro caía até metade das costas, espesso e ondulado, naquele momento preso em um rabo baixo e apressado, com algumas mechas soltas emoldurando o rosto. Era pequena, pouco mais de 1,63m, corpo delicado e curvas sutis; uma beleza silenciosa, que se notava mais pela presença do que pelo esforço. Jovem… mas com algo amadurecido cedo demais. Passou os dedos sob os olhos, tentando apagar o cansaço. Não adiantou muito. Ser babá não era seu plano de vida, mas era uma chance real. A família era rica — rica mesmo — e o salário pagaria o semestre da faculdade. Acima de tudo, significava estabilidade. Algo que ela não sentia desde que sua vida desmoronou anos atrás. Respirou fundo. “Helena Marlow.” Repetiu o nome no espelho. Soava como roupa emprestada, ainda não moldada ao corpo. Mas era o nome que ela escolheu para sobreviver — o nome que não carregava os escombros do passado. O trajeto até lá foi lento. O trânsito parecia conspirar contra ela: sinais vermelhos intermináveis, calor preso dentro do ônibus. Quando finalmente desceu, o cenário mudou drasticamente — ruas silenciosas, carros importados, muros altos, jardins milimetricamente aparados. Helena sempre sentia o mesmo em bairros assim — um lembrete de que talvez ela não pertencesse àquele tipo de mundo. A mansão Hartman apareceu no final da rua. Não era extravagante. Era pior: perfeita. Polida, simétrica, imponente de um jeito que sussurrava poder. Helena conferiu o endereço uma última vez. “É aqui.” Ajeitou a bolsa no ombro e atravessou o portão lateral destinado a visitantes. O coração batia rápido, como se quisesse fugir antes dela entrar. Aquilo não era apenas uma entrevista. Era uma chance de respirar com menos peso no fim do mês. Um salário estável, faculdade paga, teto garantido. Talvez… uma vida menos sufocante. Ela tocou a campainha. A porta abriu quase imediatamente. — Senhorita Marlow? — A mulher diante dela tinha postura impecável, coque baixo, uniforme alinhado e voz firme. — Sou a senhora Quinn, a governanta. Entre, por favor. Helena sorriu, mesmo nervosa. — Obrigada. O hall era amplo, silencioso, impecável. Móveis caros, flores frescas, quadros nas paredes. Tudo organizado com precisão quase obsessiva — como se a casa respirasse controle. Mas a presença da governanta era curiosamente acolhedora, como se ela fosse o único ponto quente naquele ambiente impecável. — Sente-se — convidou. — O senhor Hartman está finalizando uma reunião no escritório e pediu que eu conduzisse a primeira parte da entrevista. Helena se acomodou no sofá, tentando parecer menos deslocada do que se sentia. — Claro. Quinn ofereceu um pequeno sorriso, genuíno. — O pequeno Henry tem quatro anos. É doce, mas tímido. O senhor Hartman procura alguém paciente. Alguém realmente presente. A palavra “presente” veio carregada de significado, fazendo Helena erguer os olhos. Havia história por trás daquilo — e não parecia uma boa. Antes que pudesse perguntar, o som marcado de saltos ecoou pelo corredor. Quinn virou-se. Helena acompanhou o olhar. Uma mulher descia as escadas como quem desfila numa passarela. Elegante, cílios longos, perfume caro deixando rastro pelo ar. Cabelos loiros platinados em ondas suaves, corpo magro, postura altiva. O rosto anguloso, as maçãs do rosto altas e os olhos azuis frios lembravam esculturas de mármore: belos… e intocáveis. Eloise Hartman analisou Helena como quem avalia etiqueta de vitrine. — Estou saindo. — O tom seco não pedia resposta. — Se o Ethan perguntar, diga que tenho compromissos. — Claro, senhora Hartman — respondeu a governanta, profissional como sempre. Eloise não agradeceu. Apenas ajustou os óculos, lançou um último olhar de desdém para Helena e saiu, deixando perfume e arrogância no ar. Helena inspirou devagar. — Ela é a mãe do Henry? — murmurou. Quinn fechou a porta. — Sim. Ela está sempre com pressa — respondeu, com um tom neutro demais para esconder o incômodo. Então sorriu de forma pequena e afetuosa. — Aqui, o que importa é o Henry. E eu sinto que você será boa para ele. O calor daquelas palavras surpreendeu Helena mais do que deveria. Mas antes que pudesse responder, novos passos ecoaram pela casa. A postura da governanta mudou no mesmo instante. — O senhor Hartman está vindo — avisou. O estômago de Helena afundou. Os passos se aproximaram, firmes, ritmados, até surgirem diante delas. E então ele apareceu, vindo pelo corredor, o paletó pendendo no antebraço, a gravata afrouxada, o ar ao redor dele parecendo ocupar mais espaço do que deveria. Helena sentiu o corpo reagir antes da mente. Não era só nervoso. Era um pressentimento estranho — bom e ruim ao mesmo tempo, como se alguma porta interna tivesse se aberto dentro dela.






