O aroma do tatame novo misturava-se com o das flores que o vento carregava do jardim. Haruki sentou-se no chão da sala ainda quase vazia, com uma caneca de chá quente entre as mãos. O sol atravessava as janelas amplas, espalhando uma luz suave sobre os poucos móveis montados e caixas ainda abertas.
Era seu primeiro dia, sozinho. Pela primeira vez, a casa não cheirava à frustração de ninguém. O silêncio não pesava — era leve. Livre.
Ren havia saído cedo, mas deixara um bilhete colado na porta da geladeira:
> “Hoje, mais que nunca, viva como se tivesse nascido agora. Você merece tudo o que construiu com seus próprios pés. — Ren”
Haruki sorriu ao reler a mensagem. E foi nesse momento, no auge de sua serenidade, que a campainha tocou.
O ambiente da casa Aiba era um campo de tensão sufocante. As lágrimas da mãe ainda estavam frescas no chão, o pai permanecia em silêncio, e a tia sentada ao lado apenas observava. O tempo parecia congelado dentro daquelas quatro paredes.
No quarto ao fundo, sua irmã — Kana — tentava, em vão, encontrar alívio. Sentada na beira da cama, mexia no celular de forma distraída. Seus dedos percorriam vídeos curtos, músicas, memes. Tudo parecia bobo, sem graça. Nada preenchia o buraco que agora pesava em seu peito.
> "Ele foi embora mesmo… e nem se despediu de mim."
Sentia-se sozinha. Pela primeira vez, sentia-se invisível. Um gosto amargo de rejeição que ela nunca conhecera, agora cravava-se em sua garganta.
Ao deslizar para um vídeo aleatório, o nome a fez congelar.
"Haruki Aiba – composição original, solo instrumental"
Seus olhos arregalaram-se. A miniatura do vídeo mostrava um pequeno estúdio com luz baixa. Era claramente um espaço profissional. Ela clicou.
A música começou suave. Um dedilhar calmo, profundo, com notas que pareciam querer conversar. Aos poucos, outros instrumentos se sobrepunham — cordas, sopros leves —, mas era o violino que conduzia tudo. Um som familiar, quase... íntimo.
Kana levou a mão à boca.
A câmera não mostrava o rosto dele, mas ela sabia. Sentia. Aquela era a alma do irmão que ela nunca tentou ouvir.
Correu pela casa, o celular ainda tocando.
— Mamãe! Papai! Olhem isso! — gritou, empurrando o aparelho nas mãos da mãe, que ainda enxugava os olhos.
A música invadiu a sala. E por um instante, o mundo parou de girar.
O pai sentou-se, como se o peso do próprio corpo tivesse aumentado. A mãe escutava com uma expressão de espanto, levando as mãos trêmulas ao peito.
— Essa música… — sussurrou ela. — Ele… ele tocava quando era pequeno. O violino... — olhou para a tia, em choque. — Lembra? Eu mesma levei ele para as aulas no primeiro ano do ginásio. Ele… ele dizia que quando tocava, o mundo ficava menos cinza.
Kana mordeu o lábio.
— Por que ele parou?
Silêncio.
O pai respondeu, quase sem voz:
— Eu… eu disse que música não dava futuro. Que era perda de tempo. E tirei o violino dele. Vendi.
A mãe arregalou os olhos para o marido, como se ouvisse isso pela primeira vez.
— Você disse que ele tinha desistido.
— Era melhor ele se conformar. A vida não é feita de sonhos — murmurou o pai, encarando o chão.
Kana sentou-se ao lado deles. Pela primeira vez, ela sentia um vazio que antes não compreendia — e agora não conseguia suportar.
— Eu… eu nunca soube disso. Eu achei que ele era só... estranho. Silencioso. Frio.
— Ele não era frio — disse a tia, com a voz pesada. — Ele só estava tentando sobreviver. Sem ser visto, sem ser ouvido, sem ser validado.
A música terminou. E o silêncio que ficou depois era quase cruel.
A mãe tocou o rosto da filha, com lágrimas escorrendo.
— Por que não vi isso? Ele era meu menino... como eu não percebi que ele gritava?
Kana recostou-se no colo dela, lágrimas nos olhos.
— Porque a senhora só ouvia quando alguém gritava alto. E ele... ele sempre sussurrava.
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Na manhã seguinte, Haruki saía da estação de trem com uma pasta embaixo do braço e os fones nos ouvidos, tocando discretamente a mesma faixa que publicara na internet. Seu rosto estava sereno. Pela primeira vez, ele ia para o trabalho com um sentimento diferente: pertencimento.
O prédio da empresa musical onde trabalhava era moderno, com painéis de vidro que refletiam o céu azul. Recebeu um sorriso amigável da recepcionista e subiu de elevador até seu setor.
Seu supervisor o cumprimentou com entusiasmo:
— Haruki-kun! Sua última faixa teve mais de 80 mil reproduções em dois dias! Vamos incluir você como destaque no próximo showcase da empresa!
Ele sorriu. Não porque precisava agradar. Mas porque estava finalmente onde sempre sonhou estar.
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Do outro lado da cidade, Kana assistia o vídeo pela décima vez.
E, em silêncio, sussurrou para si mesma:
— Aniki... agora eu te escuto.
— Eh…? — murmurou, franzindo o cenho. Ninguém sabia onde ele morava.
Abriu a porta com cautela... e seu corpo paralisou.
— Oba-san...? — sussurrou, sem fôlego.
A mulher à sua frente tinha os cabelos escuros presos num coque apressado, e usava um casaco bege simples. Carregava nos olhos uma urgência embargada, misturada com... culpa.
— Haruki... — disse ela, suavemente. — Podemos conversar?
Ele hesitou, mas a deixou entrar. Ela olhou ao redor com surpresa.
— Você montou tudo isso sozinho? Está tão… bonito aqui.
— Com ajuda de um amigo — respondeu, frio, fechando a porta atrás dela.
Sentaram-se um de frente para o outro, com uma distância que dizia mais que qualquer palavra.
— Haruki… eu vim buscá-lo. Sei que não é o que você quer ouvir, mas sua mãe está… devastada. Seu pai também. A casa está em silêncio, é como se tudo tivesse perdido o sentido sem você lá.
— Engraçado — retrucou ele, com voz baixa mas firme —, eu estive lá por dezessete anos. E ninguém nunca percebeu quando eu chorei em silêncio, quando dormia com fome ou quando passava noites estudando sozinho, porque me diziam que eu jamais seria alguém. Só agora a ausência dói?
Ela desviou os olhos, envergonhada.
— Eu sei. Eu vi. Sempre vi. E isso é o pior. Eu via quando te tratavam como se não valesse nada. E ao invés de fazer algo, de protegê-lo, eu tentava justificar, acalmar as coisas... dizia a mim mesma que era só o jeito deles, que era por amor duro...
— Mas não era amor — murmurou ele. — Era dor. E você sabia.
Silêncio.
Ela respirou fundo, os olhos marejando.
— Você tem razão. E me odeio por isso. Mas... se quiser voltar, mesmo que seja só por um tempo...
Haruki levantou-se, andando até a janela.
— Não. Esse lugar aqui... esse chão, essa parede... é tudo o que eu tenho de mim agora. Eu lutei por isso. Eu mereço isso. E ninguém vai me tirar isso.
Ela assentiu devagar, lágrimas escorrendo discretamente.
— Está bem. Não vou insistir. Mas... posso vir visitá-lo às vezes?
Haruki virou-se e, pela primeira vez em muito tempo, sorriu para ela. Pequeno. Real.
— Pode.
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Enquanto isso, na antiga casa dos Aiba, o colapso era inevitável.
A mãe de Haruki andava de um lado para o outro, descabelada, segurando fotos antigas do filho ainda pequeno. O pai, calado no sofá, esfregava as têmporas com força.
— Onde foi que erramos? Ele era nosso filho! Nós fizemos tudo por ele!
— Tudo por ele? — a voz veio da porta. A tia entrava, firme. — Vocês o destruíram. Cada crítica, cada silêncio, cada comparação injusta... cada vez que ele precisava de um gesto e recebeu um castigo. Vocês o empurraram para fora dessa casa muito antes de ele cruzar a porta com os próprios pés.
— Você está do lado dele agora? — o pai se levantou. — Depois de tudo?
Ela não recuou.
— Não estou do lado de ninguém. Só estou dizendo o que ninguém nunca teve coragem de dizer. Eu vi o que vocês faziam. Eu o vi se apagar aos poucos. E não fiz nada. Tentava convencê-lo de que vocês o amavam… quando nem eu conseguia acreditar nisso.
A mãe caiu de joelhos, soluçando alto.
— Ele disse... que não se sentia parte dessa família. Que o nome dele não significava nada aqui. Ele disse... que eu não sabia nem do que ele gostava de comer...
A irmã de Haruki apareceu à porta, ouvindo em silêncio, paralisada.
E pela primeira vez, viu os pais desmoronarem por algo que ela nunca entendeu: a dor de não saber quem é seu próprio filho.
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Do outro lado da cidade, ao entardecer, Haruki sentava-se no chão de seu novo lar, agora com cortinas leves dançando com o vento. Um pequeno rádio tocava uma melodia suave — uma que ele mesmo ajudou a editar no novo emprego.
Pegou uma folha e começou a escrever:
> “Hoje não estou mais fugindo. Estou indo. Indo em direção àquilo que sou, que posso ser. E ninguém mais me dirá o contrário.”
Dobrou a carta com cuidado. Não era para ninguém. Era para si mesmo.
E do lado de fora, no jardim que florescia devagar, novas pétalas caiam com o vento. Como promessas.