Alice Kim
O cheiro de café invadia a cozinha. O som da frigideira estalando, minha mãe cantarolando uma música brega qualquer... e eu ali, meio zumbi, sentada na mesa, encarando meu café como se ele tivesse todas as respostas da vida.
Tentando ignorar a ressaca moral de ter transado com um desconhecido. Em um quarto aletorio. Em um apartamento desconhecido. De uma festa aleatória. Depois de xingar meu ex no meio da galera.
Parabéns pra mim. Troféu vergonha, edição 2025.
Minha mãe veio andando até mim, toda sorridente, ajeitando o cabelo como quem tenta parecer plena. Mas eu conheço. Eu SEI quando ela está disfarçando algo.
— Alice, amor... terminei de arrumar seu quarto, tá? E adivinha... — E soltou, como quem fala que vai chover — Seu padrasto está chegando. E trouxe o filho dele pra passar uns dias com a gente!
Meus olhos levantaram tão rápido que quase deslocaram. — O quê??? — Travei o celular na mão.
— Ué... te falei ontem, filha. — Ela riu, passando pano pra própria bomba.
— Falou não. — Cruzei os braços. — Certeza que não.
Ela revirou os olhos, pegou o pano da pia e balançou na minha cara. — Falei sim! Te mandei mensagem! Você nunca lê as coisas que eu mando.
Na mesma hora, puxei o celular, abri o aplicativo e lá estava. A mensagem ignorada, jogada no mar de notificações não lidas:
"Jantamos juntos amanhã? O Ricardo quer te apresentar o filho."
— Puta merda. — Engoli seco. — Desde quando o Ricardo tem filho, mãe?
— Ah, amor... uma longa história. — Ela deu aquele suspiro dramático de novela mexicana. — Cresceram afastados, sabe como é... família, tretas, essas coisas. Mas agora tão tentando se reaproximar. Ele vai passar uns dias aqui.
Nem deu tempo de processar. Nem de gritar. Nem de fugir.
A porta da sala se abriu. Vozes. Risadas. Passos. E o universo... fez questão de me dar um soco na cara.
Quando meus olhos bateram na porta da cozinha... lá estava ele.
Zion.
O mesmo. O homem do beijo. O da sacada. O da cama. O do corpo inteiro. O erro. O bug. A falha no sistema.
O filho do meu padrasto.
Eu travei. Paralisada. Boca meio aberta. Coração batendo igual sirene de incêndio.
E ele?
— Alice... — minha mãe chamou, rindo, zero noção, toda feliz, ignorando o colapso mental acontecendo ali. — Esse é o Zion. Filho do Ricardo.
Zion pigarreou. Passou a mão na nuca, nervoso, claramente tão perdido quanto eu. — E aí... — a voz dele falhou.
— E aí... — respondi. Minha voz também falhou. Bonito. Ridículo.
Minha mãe, plena, bateu palminha como quem apresenta o elenco de um casamento arranjado. — Olha que legal! Vocês têm quase a mesma idade! Vão se dar super bem! Podem se conhecer melhor!
Se conhecer melhor, ela disse. SE CONHECER.
Zion cruzou os braços, encostou no batente da porta. Aquele jeito largado, blasé, meio “tô de boa”... só que os olhos dele diziam “ferrou, ferrou bonito, ferrou MUITO.”
— Que mundo pequeno, né? — soltei, aquele sorrisinho cínico de quem tá no modo rindo de nervoso.
Ele arqueou a sobrancelha, o mesmo sorriso torto da noite anterior, só que agora com uma pontinha de desespero. — Pequeno até demais.
O silêncio ficou tão denso que dava pra ouvir o Wi-Fi caindo.
Meu padrasto entrou, todo feliz, todo bobo, fazendo discurso de boas-vindas, falando sobre “a família tá completa agora” e “como é bom ter os filhos por perto”.
Ah, sim. Uma beleza. Só faltou ele dizer: "Sejam bem-vindos ao colapso mental da Alice."
Minha mãe ajeitou o cabelo, meio nervosa, com aquele sorrisinho forçado, típico de quem percebeu que deu ruim, mas já não tem como voltar atrás:
— Ai, gente... vocês chegaram mais cedo do que eu imaginava. Não deu tempo de preparar nada. Acho melhor a gente jantar fora hoje, né?
Zion deu aquele sorrisinho safado, quase debochado. Só assentiu com a cabeça, como quem diz “tanto faz, só quero cavar um buraco pra enfiar minha cabeça agora.”
Minha mãe então lançou aquele olhar pra mim. Aquele de “socorro, me ajuda, faz alguma coisa, finge costume”.
— Alice, mostra o quarto de hóspedes pra ele? O que fica ao lado do seu.
AO. LADO. DO. MEU.
Engoli seco. Pisquei. Minha alma saiu do corpo, fez as malas e se mudou pra Plutão.
— Tá. — Minha voz saiu mais fina que minha dignidade.
Subi as escadas com ele logo atrás. E, juro por Deus... o cheiro dele. Aquele cheiro. O MESMO da noite passada. Perfume amadeirado, com notas de café, perigo e destruição emocional.
Cada degrau era um grito interno: "Isso não tá acontecendo. Isso não tá acontecendo. Isso NÃO TÁ ACONTECENDO."
Parei na porta do quarto. Girei a maçaneta. Abri. E soltei, sem coragem de olhar pra ele:
— Bom... é aqui. Se... precisar de alguma coisa... — Minha voz morreu no ar.
Me virei pra olhar. E pronto. Erro. Fatal. Tela azul. Crash no sistema.
Ele estava perto. PERTO DEMAIS. Olhar pesado. Fixo. Analítico. Aquele olhar que despe. Que lê. Que desarma.
A respiração falhou. O corpo travou. O cérebro gritou.
Ele segurou no batente da porta, se inclinou um pouco, aquele sorriso torto, debochado, meio nervoso, meio "a gente tá ferrado, né?".
— Então... você mora aqui. — A voz rouca, baixa, cortando minha espinha no meio. — Isso vai ser... interessante.
E eu? Engoli seco. Dei dois passos pra trás, batendo na parede.
— Nem começa, Zion. Nem começa.
Ele riu. Baixo. Aquele riso que arrepia até a alma. — Relaxa, Alice... quem começa é você. Lembra? — E piscou.
Puta que pariu.