Mundo ficciónIniciar sesiónPov Clara
Eu dormi igual uma pedra acordei com o sol batendo direto no meu rosto e um cheiro forte de café vindo da cozinha minúscula. Por um segundo, entre o sonho e a realidade, achei que estava no meu quarto no Pará, e que meu pai começaria a gritar a qualquer momento.
Mas o sofá era macio demais. E o silêncio era... pacífico.
Me sentei num pulo, a cabeça girando levemente. Eu estava no apartamento de Isadora, um conjugado no centro de Porto Alegre que era a cara dela: caótico, colorido e cheio de vida. Havia sapatos de salto alto jogados num canto, fantasias eróticas e uma pilha de livros de Direito. Ela estava montando a mesa de café.
— Bom dia, Bela Adormecida! — Isadora apareceu na porta da cozinha, usando apenas uma camiseta larga e calcinha, segurando duas canecas. O cabelo loiro estava preso num coque bagunçado, mas ela parecia fresca como uma rosa, mesmo tendo chegado de madrugada.
— Bom dia... — Minha voz saiu rouca. Aceitei a caneca com gratidão. — Que horas são?
— Oito e meia. — ela se sentou a mesa e me convidou com a mão. — Seu "encontro" com o Diabo Cavallieri é às onze. Dá tempo de você tomar café decente, um banho e tirar essa cara de quem viajou no bagageiro do ônibus.
Ri, passando a mão no rosto oleoso.
— Obrigada, Isa. Pelo sofá, pelo X-Bacon ontem, por esse café da manhã maravilhoso... por tudo.
— Que isso, esse café é de boas vidas— ela sorriu parecia um girassol — e me agradeça conseguindo esse emprego e dividindo o próximo aluguel. — Ela piscou, mas logo ficou séria. — Separei uma roupa para você. Está em cima da cama. É o mais "social" que eu tenho. Sabe como é, meu guarda-roupa é mais "noite" do que "entrevista de babá".
Terminei o café num gole comi dois pães francês, lembrei da minha mãe, mesmo em situações ruins sempre tomávamos café juntos. Mas infelizmente ela morreu de forma trágica na minha frente. Jamais vou esquecer da brutalidade daquela cena.
Agradeci mais uma vez a minha amiga e corri para o banho. A água quente parecia um milagre, lavando não só o cansaço da estrada, mas um pouco do peso do fracasso de ontem. Esfreguei a pele até ficar vermelha, querendo me sentir nova. Você consegue, Clara. É só cuidar de crianças. Quão difícil pode ser?
Saí do banho enrolada na toalha e fui até a cama onde Isa tinha deixado a roupa. Uma saia lápis preta e uma camisa social branca de botões. Parecia perfeito. Até eu tentar vestir.
O problema é que Isadora tinha aquele corpo de quem vive na academia e se alimenta de luz e alface. E gasta muita energia no trabalho dela. Eu... bom, eu tinha o corpo de quem gostava de pão e herdou as curvas generosas da minha mãe, tinha até uma leve protuberância na barriga
A saia subiu, mas travou nos meus quadris. Tive que deitar-me na cama e prender a respiração para fechar o zíper. Quando me levantei, o tecido esticou tanto que mal conseguia dar um passo largo. E o comprimento, que na Isa ficava no joelho, em mim subiu perigosamente para o meio da coxa.
— Merda... — sussurrei, pegando a camisa.
A camisa foi pior. Os botões na região do peito pareciam que iam estourar a qualquer momento se eu respirasse fundo. Me olhei no espelho de corpo inteiro que havia na porta do armário e tive vontade de chorar.
Eu parecia uma salsicha embalada a vácuo. Ou pior, parecia que estava tentando seduzir a entrevistadora, e não conseguir um emprego sério.
— Isa! — chamei, abrindo a porta com vergonha.
Isadora apareceu no corredor, escovando os dentes, e parou. Ela me olhou de cima a baixo e assobiou com a boca cheia de espuma.
— Uau.
— Uau nada! — corei violentamente, cruzando os braços para esconder o decote que se abria entre os botões esticados. — Eu não posso ir assim! Está indecente. Olha isso, Isa, a saia tá curta, a blusa tá explodindo... Ele vai achar que eu sou... sei lá!
Isadora enxaguou a boca e voltou, analisando-me criticamente.
— Amiga, você não tá indecente. Você tem corpo. É diferente. Em mim fica "secretária executiva", em você fica... "comissão de frente nota dez".
— Eu preciso de uma roupa que diga "babá responsável", não "mulherão que gosta de x burguer"!
— Tentei puxar a saia para baixo, mas ela não cedeu. — Eu tô ridícula. Gorda.
— Ei! — Isa me deu um tapa leve no braço. — Para com isso. Você é gostosa, aceita. E outra, é isso ou ir com seu vestido de viagem que tá fedendo a mofo. Qual você prefere?
Mordi o lábio, olhando meu reflexo. Os olhos verdes grandes e assustados contrastavam com a roupa justa. Eu me sentia exposta. Vulnerável.
— Ele vai me demitir antes de me contratar.
— Coloca esse blazer por cima. — Ela jogou um blazer preto. — Vai disfarçar o aperto da blusa. E a saia... bom, tenta não se sentar de perna aberta e reza. Agora vai, chama o Uber senão você chega atrasada. E pontualidade é a única coisa que rico gosta mais do que dinheiro.
Quarenta minutos depois, o Uber parou diante de um portão de ferro preto que parecia a entrada de um castelo medieval. O bairro Moinhos de Vento era outro mundo. As árvores eram podadas, as calçadas eram limpas, e as casas não tinham muros descascados.







