Não mexa com meu silêncio

- Não... isto não é verdade! – mamãe me olhou, atordoada – Você não gastou todo o nosso cartão de crédito para comprar um ingresso para aquela banda ridícula!

A 4 Nipes poderia ser qualquer coisa que ela quisesse e eu respeitava sua opinião. Mas... era a única coisa que “eu” gostava no mundo e que me tirava da vida de Cinderela que eu levava. E não, eu não estava me referindo à parte que a Cinderela casava com o príncipe e virava princesa e sim daquela que trabalhava o dia inteiro, vivia no sótão e seus únicos amigos eram os ratinhos. E Deus, se Simone sonhasse que eu a comparava com os ratinhos, me picaria em mil pedacinhos.

Rarlat começou a chorar. Inicialmente o choro foi fraco, mas acabou com berros enquanto me acusava:

- Você é uma pessoa horrível, Manu. Só pensa em si mesma! Mamãe tirou você daquele orfanato e lhe deu uma vida, uma família... e é assim que paga... com ingratidão.

Ingratidão? Eu fazia tudo por elas. Mantinha a casa, fazia a comida, lavava a louça, a roupa e ainda tinham coragem de dizer que “eu” era ingrata? Como eu queria pode dizer tudo que pensava. Mas por algum motivo, não saía da minha boca. Era como se tivesse que ser eternamente grata por um dia Irene Romanova ter me adotado, quando minha verdadeira mãe me rejeitou. E a vida foi tão injusta comigo que fez com que minha mãe adotiva também me rejeitasse.

Enfim... eu não tinha nada nem ninguém a não ser elas, minha mãe e minhas irmãs. Não tinha motivos para ficar, tampouco para partir. Porque a minha vida era aquela... um limiar entre o abismo e o nada. Então ficar na beira do penhasco era a minha maior segurança.

- Não fique assim, Rarlat – Carly foi em direção a nossa irmã caçula e sentou-se ao lado dela, abraçando-a, me encarando como se eu fosse um monstro.

E... eu era um monstro por ter gasto meu dinheiro num ingresso em vez de fazer a festa dela, que tinha se esforçado e em breve teria um diploma por ter concluído o Ensino Médio?

- Eu... – tentei justificar a minha atitude, mas não sabia exatamente como.

- Eu não queria revelar antes, porque seria uma surpresa – Carly avisou, enquanto consolava Rarlat – mas consegui um emprego no Hotel Bali. E não é como camareira – me olhou com desdém – serei recepcionista, já que sou muito mais inteligente do que você.

- Carly, que ótima notícia! – mamãe a abraçou e as três ficaram ali, juntas, comemorando, enquanto eu assistia tudo do segundo degrau da escada.

Senti vontade de parabenizar Carly e tentar fazer parte daquele momento. Mas eu sabia que não me deixariam.

- Quem sabe... você poderia... ajudar na festa de Rarlat agora que tem um emprego. – Sugeri.

As três me olharam, incrédulas.

- Acha mesmo que vou deixar Carly gastar com isto? – mamãe foi quem falou – sua irmã precisa investir nela mesma. Não percebe o quanto ela tem potencial? Carly é bonita, inteligente! O seu próprio noivo a preferiu. Jamais eu deixaria minha filha biológica usar o dinheiro sem ser para ela mesma.

Ok, aquilo doeu. Mas não mais do que outras coisas que elas já tinham me dito em diferentes situações.

- Eu não sou burra. Só não consegui terminar a escola porque precisei trabalhar. – Tentei justificar.

- É o mínimo que deveria fazer por nós, Manu. Ou acha que manter a casa é um favor que nos faz? Se eu não tivesse tirado você daquele hospital, esta hora seria uma ninguém, criada num orfanato. Sabe que a chance de adotarem uma criança depois dos três anos é praticamente 70% menor do que um recém-nascido.

- Mas... talvez se você e papai não tivessem me adotado... outra família teria feito.

Mamãe riu:

- Não seja ridícula. Você teve foi muita sorte de ter recebido o sobrenome Romanova.

- Eu... paguei a escola de vocês duas – olhei para Carly e Rarlat – então... fiz minha parte.

- Lhe demos uma família, Manu. Isto não tem preço. – Mamãe insistiu.

- Não adianta explicar, mãe. Manu sempre será uma ingrata.

- Isto significa que... eu continuarei com todas as despesas da casa, mesmo com Carly tendo arranjado um emprego?

- Carly precisa agora comprar roupas novas. Tudo que ela tem são trapos velhos. E acho que seria interessante fazer um preenchimento labial – mamãe analisou os lábios de minha irmã – talvez deva investir na carreira de modelo de uma vez.

- Tenho que comprar roupas para o trabalho inclusive – Carly justificou – minhas maquiagens estão gastas, não tenho nada de qualidade.

- Concordo, Carly – Rarlat defendeu a irmã – Você é a nossa chance de subir na vida. É tão linda! E inteligente! Com o dinheiro que vai ganhar de recepcionista no hotel, poderá investir na sua carreira e ser uma modelo famosa.

- Ou conhecer um homem rico – mamãe esperançou-se – e não ficar sonhando com um idiota de uma banda de rock.

- Pop rock. – Corrigi.

- É tudo a mesma porra! Acha mesmo que algum dia um integrante desta banda olhará para você, Manu? Entendo que é bom sonhar e que isto impulsiona a vida. Mas, Manu... seu sonho é alto demais. E a queda vai quebrá-la ao meio.

Eu realmente sonhava demais. Mas ir ao show nem era sobre ser notada no meio da multidão por Fred Hunter. Mas só estar lá, curtindo as músicas que eu cantei a vida toda nos piores momentos da minha vida. Era graças a elas que eu me mantinha de pé. E inúmeras vezes fingi que uma das letras tinha sido feita especialmente para mim.

Uma notícia de última hora na televisão nos fez parar a discussão. O âncora do telejornal regional anunciava que a os ingressos da 4 Nipes tinham se esgotado em menos de 12 horas de vendas. Ou seja, eu tinha sido uma sortuda. E por final, jogou a bomba de que um dos ingressos vendidos seria sorteado e a pessoa vencedora poderia ir para o camarim da banda depois do show.

Senti meu coração acelerar e tive vontade de gritar. Será que a vida ao menos uma vez em 20 anos me colocaria numa situação de vitória? Era hora de o príncipe encontrar meu sapatinho de cristal (ou meu ingresso dourado)?

- Eu posso abrir mão da minha festa de formatura – Rarlat me olhou – se você me der o seu ingresso.

Eu ri, não acreditando naquilo! Era a primeira vez na vida que eu fazia algo por mim e não por elas. E agora... queriam tomar de mim a única coisa que me fazia feliz, que era o Fred e a 4 Nipes?

- Eu acho justo. – Carly riu, com deboche – Afinal, você deixou a nossa irmã bem triste por não querer pagar a festa dela. O mínimo que pode fazer é deixá-la ir ao show.

- Não acha que será a sorteada, não é mesmo? – mamãe me olhou – mas se Rarlat ficar com o ingresso, há uma chance.

- Todo mundo sabe que você é uma azarada – Carly seguiu a humilhação – foi deixada pela própria mãe no hospital. Cara, nem a sua mãe te quis! Faça algo bom para alguém... entregue o ingresso para nossa irmã caçula e lhe dê ao menos a chance de ir para o camarim da 4 Nipes.

- Vamos levar em conta que Rarlat é bonita – mamãe continuou – assim como Carly. Ambas puxaram a mim e isto não podemos negar. A beleza das Romanova está no sangue e você pode ter o nosso sobrenome, Manu, mas os genes não podemos lhe dar. Se você for sorteada para o camarim, será uma perda de tempo. Nem olharão para você. Mas se Rarlat ou Carly estiverem lá, é claro que serão vistas. E... poderão sair do camarim casadas com um integrante da banda! E isto... mudaria as nossas vidas para sempre. E você estaria incluída nisto, óbvio. Não a deixaríamos para trás.

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