- Claro que não – eu sorri, não contendo o tom irônico – alguém teria que levar as malas para o avião!
- Caralho, é muita ingratidão numa só pessoa! – Carly cruzou os braços – Eu desisto, mãe.
- Podem fazer o que quiserem... mas eu não darei o meu ingresso. Não importa que eu não seja sorteada, tampouco que se for, ninguém fale comigo ou se importe com a minha presença. Ainda assim... eu estarei lá... e verei Fred Hunt, como sonhei a vida inteira.
Dizendo aquilo subi as escadas, sentindo o peso da dor e da humilhação nas costas.
Tomei um banho, deitei na cama, e ingeri um comprimido forte para dormir. Eu sabia que em breve bateriam na minha porta para que eu fizesse o jantar, organizasse a casa ou simplesmente abrisse mão do meu ingresso. Então era melhor eu apagar, literalmente, antes que roubassem a única coisa que eu tinha na vida, que era a chance de ver meu ídolo. E eu nem me referia ao fato de estar perto de Fred, porque meu ingresso era o mais barato, daquele que ficava no último lugar do estádio. Para ele eu seria como uma formiga num formigueiro... como fui a vida inteira para o mundo.
Assim que o relógio despertou naquela manhã, dei um salto na cama, com medo de ter me atrasado por conta do medicamento da noite anterior. Deparei-me com Fred Hunt no pôster e disse, olhando em seus belos olhos azuis claros, que pareciam mais uma pintura do que a realidade:
- Deus, proteja este homem e um dia promova o nosso reencontro. E... hoje ele chega perto de mim, como nunca antes esteve.
Sim, aquele era o dia em que a 4 Nipes chegaria na cidade vizinha onde eu morava, para o grande show. Eu os acompanhava e sabia que estavam vindo diretamente de Moscou para o interior de Noriah Sul. Desembarcariam no aeroporto internacional e seguiriam no ônibus da banda, do qual não abriam mão, para o Hotel cinco estrelas que os receberia.
Me deu vontade de deixar tudo e ir para frente do hotel, como várias pessoas já faziam desde o dia anterior. Tudo para poder ao menos eles chegando, mesmo que por alguns minutos e quem sabe receber um aceno de longe, já que estavam sempre cercados de seguranças.
Fui para o trabalho e estava finalizando a limpeza de um quarto, borrifando a aromatizador, quando a porta se abriu e Dominic apareceu.
Respirei fundo e tentei manter meu réu primário:
- Deseja alguma coisa? – perguntei de forma educada.
- Sim, o de sempre... – ele sorriu de forma sarcástica.
- Por favor, Dominic, me deixa trabalhar. Ainda tenho dois quartos para limpar e quero ajudar Simone no banheiro do hall principal.
- Você sabe que posso demiti-la, não é mesmo? – Ameaçou, enquanto se escorava na porta e cruzava os braços, me observando atentamente.
- Sim, eu sei. Mas para isto, você teria que ter um motivo. E todo mundo aqui sabe que eu sou uma das melhores funcionárias, embora nunca tenha ganhado o destaque do mês.
- Está me ameaçando, Manu?
- Eu posso ser quieta, Dominic. No entanto, não mexa com o meu silêncio se não souber lidar com o meu barulho.
- Frases feitas... típicas de você. Infelizmente não tem capacidade de criar algo autoral.
Fui para a porta e pedi:
- Me deixe sair.
- Você deveria implorar para ser fodida por mim.
- Prefiro morrer virgem.
- Espero que a sua primeira vez seja horrível.
- Não será... afinal, não vai ser você!
- Vagabunda.
- Seria... se tivesse dado para você. – O encarei.
Dominic abriu a porta furioso. Eu sabia que estava lidando com o homem que poderia me arruinar. Sim, não arruinar a minha existência, mas fazer eu perder o emprego, que era a minha vida.
Eu só não abaixava a cabeça para Dominic porque sabia que no Hotel Bali todos gostavam muito de mim e sabiam o quanto eu me dedicava ao trabalho e se algo acontecesse, ficariam do meu lado. Apesar de minha família me rejeitar e odiar, e meu ex me tratar da pior forma possível, sendo que foi ele que me traiu e não o contrário, eu tinha “estranhos” que estavam a meu favor. E que me tratavam com respeito e dignidade.
Fui para o segundo quarto, que estava fechado há um tempo porque o banheiro não estava funcionando. Vez ou outra, mesmo sem necessidade, eu gostava de passar por lá e dar uma ajeitada em tudo. Se um dia, por um milagre, o hotel ficasse lotado, era um quarto que poderia ser usado, desde que o banheiro ficasse fechado.
Eu estava com os fones de ouvido, escutando “You”, da 4 Nipes, enquanto ajeitava os lençóis que estavam com algumas imperfeições quando o comunicador bipou na minha cintura. A última vez que biparam, a emergência era que o dono do Hotel tinha morrido. Ou seja, havia uma emergência.
Deixei minhas coisas ali e corri para o ponto de encontro, que era a antessala, ao lado da sala principal da recepção. Assim que cheguei no silêncio que chegava a ser constrangedor, onde só se ouvia as respirações tensas e aceleradas de todos, deu para ouvir os últimos acordes de “You” no meu fone.
Com os olhos de todos sobre mim, desliguei a música no celular, sob o olhar de crítica de Dominic, o encarregado geral, o homem de confiança da herdeira do Hotel Bali, que assumiu o cargo depois que o pai dela morreu.
- Prestem atenção – a voz de Dominic transparecia todo seu nervosismo – Acontece um incidente... o melhor incidente das nossas vidas...
- Como assim? – Simone perguntou – Por favor, fale logo ou eu vou ter um infarto aqui e agora e a minha vovozinha não poderá sobreviver sem mim. e todos aqui saberão que a culpa é sua, Dominic. Fale logo... a dona do Hotel morreu?
- Me poupe dos seus comentários ridículos e dispensáveis, Simone – ele a olhou com desdém – O Hotel que receberia a 4 Nipes pegou fogo...
- Que horror!
- E o hotel mais próximo é... o Bali.
Senti meu coração saltar pela boca. Sentei no sofá, enquanto todos se mantinham de pé. Minhas pernas começaram a tremer a ponto de não conseguirem se manter firmes.
- Caralho, ela está passando mal! – Simone gritou – tragam uma água.
Eu queria falar, mas não conseguia. Tudo ao meu redor girava e minhas bochechas pareciam pegar fogo.
Logo me trouxeram a água, que bebi até a última gota.
- Não temos tempo para os seus dramas, Manuela – Dominic passou os olhos sobre mim em tom de crítica – temos algumas poucas horas para deixar o hotel em perfeito estado. O Bali estará fechado a partir de agora para qualquer hóspede. Os que já fizeram check-in serão ressarcidos e terão que deixar o hotel. Só atenderemos a 4 Nipes e sua equipe, de forma exclusiva.
Ok, eu tive a sensação de que iria morrer. Uma coisa era ter um ingresso para ver Fred Hunter lá de longe, de um lugar onde ele nem saberia da minha existência. Outra coisa era ele se hospedar no Bali, um hotel sem estrelas do interior do interior de uma cidadezinha no meio do nada.
Nunca, nos meus mais loucos e secretos sonhos, aquilo passou pela minha cabeça.
- Há uma lista na recepção com o nome onde cada integrante da banda e equipe ficará distribuído. Preencham a parte que lhes cabe e vão imediatamente trabalhar. Quem quiser fazer hora extra, receberá o valor triplicado. Não pode haver falhas. Tudo tem que estar perfeito. O Hotel Bali está a ponto de ser tornar o mais famoso da região. E tudo isto graças...
- Ao azar da 4 Nipes de não poder desfrutar de um cinco estrelas. – Alguém brincou.
Todos riram, fazendo com que Dominic ficasse ainda mais furioso. Olhei para Simone e saímos correndo para a recepção. E fomos as primeiras. E foi assim que escolhemos o quarto onde ficaria Fred Hunter para limparmos de forma impecável.
Assim que abrimos a porta da suíte verde, onde tudo literalmente era verde (e poderia ser pior, tipo um verde abacate), paredes, roupas de cama, banheiro e móveis, olhei ao redor e disse para Simone:
- Nunca percebi o quanto este quarto é horrível. Ao menos para receber ele.
- Caralho, será que não tinham nada melhor para lhes oferecer? Cara, é a 4 Nipes. Que pegassem um jatinho e fossem para uma cidade na puta que pariu que lhes ofereceria mais conforto que isto aqui.
- Conforto eles terão. Mas se observarem a estética, estão fodidos.
Simone me olhou e começou a gargalhar:
- Você vai ver o Fred Hunter, amiga!
Comecei a pular feito uma mola maluca. Meu corpo todo respondia à adrenalina e eu era capaz de correr a cidade inteira sem nunca parar, tamanha ansiedade que me consumia.
Deitei na cama. E não, eu nunca fiz aquilo antes na vida. Abri os braços e pernas e senti as lágrimas escorrerem pelas minhas bochechas:
- Fred dormirá nesta cama, Simone! Tem noção do quanto eu desejei vê-lo de perto? E agora... bem, isto parece um sonho... um sonho distante.
- É real, Manu – ela deitou do meu lado e pegou a minha mão – você vai conhecer o Fred. E se depender de mim... ganhará um autógrafo, já que sei que ficará catatônica e não terá condições de abrir a boca quando ele se materializar na sua frente.
- Eu sonhei com este homem por quatro anos... quatro longos anos. E agora... poderei vê-lo de perto e me certificar de que ele não é só um personagem dos meus sonhos e sim... alguém de carne e osso.
- E se ele for tão idiota quanto falam?
- Eu tenho certeza de que ele não é. Não dá para acreditar em tudo que vemos ou ouvimos por aí. Não passa pela minha cabeça que um homem com a voz tão perfeita e um coração tão romântico para compor o que compõe possa ser um completo idiota.