Simone e eu nos consideramos naquele dia duas sortudas. O mundo inteiro daria qualquer coisa para estar no nosso lugar, limpando cada centímetro do lugar que Fred Hunt ocuparia. Já tinha encerrado o nosso horário e ainda não estava tudo como queríamos. Me dei à liberdade de retirar todas as roupas de cama verdes e substituir por brancas de melhor qualidade. Óbvio que tínhamos os quartos tops e os mais em conta. Fred não ficaria no melhor, que foi destinado para Gabriel Dimitryev, o vocalista da banda, nosso Às de Espadas.
O segundo melhor quarto seria ofertado para Oleg Chausson, o empresário da 4 Nipes. Os demais tivemos que nos virar para deixá-los o melhor possível para que a experiência dos integrantes da 4 Nipes no Hotel Bali fosse perfeita.
Encerramos o trabalho quando passava das três horas da madrugada. Sequer me alimentei, porque sabia que Fred poderia chegar a qualquer momento e eu não queria que nada estivesse fora do lugar quando ele entrasse no quarto verde, que tentei deixar o menos verde possível.
A previsão de chegada da 4 Nipes era às 6 horas da manhã, podendo ser um pouco antes ou depois, dependendo do trânsito que enfrentariam do aeroporto até nossa cidadezinha.
Aguardávamos no hall de entrada na recepção quando Dominic, estressado, passou por nós rapidamente. Nossos olhos se encontraram e ele parou imediatamente. Então me chamou:
- Manuela, venha aqui, por favor.
Saí do meu lugar e o segui, sendo conduzida até seu escritório. Assim que chegamos, Dominic fechou a porta.
- Esqueci de dizer antes, já estava atordoado com tudo... você está dispensada.
Engoli em seco, achando que era uma brincadeira:
- Dispensada?
- Você trabalhou bastante. Receberá seu valor triplo pela noite de colaboração. Sua folga será antecipada para hoje. Tenha um bom descanso. – Abaixou a cabeça, dando atenção à uma pilha de papéis.
Escorei-me na porta de madeira escura, talhada à mão. Não, ele não faria aquilo comigo!
- Dominic, eu não estou cansada. E... não quero antecipar a minha folga. Você disse que tudo precisava estar perfeito. E... eu darei o meu melhor... juro.
Ele me olhou brevemente:
- Dispensada!
- Dominic, por favor... por tudo que é mais sagrado... não tire isto de mim. Você, mais do que ninguém, sabe o quanto... eu... sou louca pela 4 Nipes.
- Claro que eu sei. Eu te dei uma camiseta deles, lembra? E a critiquei por meses por conta da tatuagem do Rei de Copas na sua nuca. Vá logo antes que eu não lhe dê somente o dia de folga e sim uma carta de demissão.
Andei vagarosamente até a mesa dele e sentei-me na cadeira, com as pernas trêmulas:
- Não faça isto comigo... por favor.
- Sabe que fez bem pior, Manu. Você terminou comigo e destruiu o meu coração.
- Você dormiu com a minha irmã! – minha voz mal saiu, mas as lágrimas não aguentaram mais ficar contidas – Não se faça de vítima... “eu” fui a vítima.
- Não torne isto pessoal, Manu... porque não é. Sejamos profissionais, por favor.
- Eu imploro... seja profissional então. E me deixe ficar, como todos os outros.
Dominic olhou no relógio:
- Eu realmente não tenho tempo para os seus dramas, Manu. E estou fazendo isto pela segurança de todos do Hotel Bali. Lembro bem das suas palavras “Não mexa com meu silêncio se não puder lidar com o meu barulho!” Sinceramente, não quero barulho. Todos aqui precisam ser discretos, porque é nosso local de trabalho.
- Eu imploro...
- Vá antes que eu a demita. Estou sendo muito piedoso com você e detesto agir assim.
Levantei, sentindo o peito arder. Infelizmente eu não tinha o que fazer.
Fui em direção à porta e quando toquei na maçaneta ele disse, num tom cortante:
- Se contar a alguém, principalmente à Simone o que aconteceu aqui, amanhã se considere uma mulher sem trabalho.
Abri a porta e saí, limpando as lágrimas. Enquanto me dirigia à porta de saída, eu ri. Por que passou pela minha cabeça que poderia dar certo? Afinal, era eu! Não nasci para ser feliz, nem um minuto sequer. Vim ao mundo somente para servir aos outros... e ser pisada.
Tentei sair sem dar explicações, mas todos vieram até mim.
- Onde você vai? – Simone perguntou, atordoada.
- Eu... vou embora.
- Como assim vai embora? – ela olhou no relógio – A 4 Nipes estará aqui em minutos.
- E o Fred também. – Uma das garotas comentou, já que todo mundo ali sabia do meu amor platônico pelo rei de copas – Você não pode sair.
- Estou... – lembrei das palavras de Dominic – não estou nada bem. Não tenho condições de ficar. Vou... procurar um médico. – Eu não podia perder meu trabalho, de forma alguma.
- Você não pode ficar doente agora. Aguente firme e morra depois que a 4 Nipes chegar. – Simone sorriu – Eu tenho alguns analgésicos na bolsa. Vamos resolver isto temporariamente e depois irei com você até a emergência.
- Eu... não estou em condições de ficar. – Limpei as lágrimas e saí pela porta principal da recepção, não dando mais explicações.
Assim que saí na rua, vi a multidão se formando na porta do Hotel. Nunca na vida vi tantas pessoas reunidas num só lugar. Realmente o Hotel Bali entraria para a história. A mídia do país inteiro estaria ali naquele dia. Era a 4 Nipes, a banda mais famosa da atualidade que ocuparia os quartos do hotel sem estrelas da cidadela do interior de Noriah Sul.
As garotas seguravam placas, banners, todos com frases de “Eu te amo” para os integrantes da banda e alguns refrões das músicas. Usavam camisetas e várias tinham pintado os rostos com os nipes do baralho, de acordo com sua preferência pelos integrantes do quarteto.
Saí dali carregando talvez uma das piores dores da minha vida. Poderia parecer pouco e até ridículo eu estar me sentindo daquele jeito por causa da 4 Nipes, sendo que naquele exato momento pessoas morriam pelo mundo, fosse com uma bala perdida, uma doença grave... ou qualquer outro motivo realmente digno de tristeza e dor.
Acontece que Fred Hunt era tudo que eu tinha. Todos os dias quando acordava eu pedia pela proteção dele e não a minha. E... eu estava fora, dispensada por Dominic e deixada para assistir tudo como mera espectadora, junto da multidão, o que meus colegas veriam ao vivo, algo que esperei a vida inteira, mais do que qualquer um deles.
Quando o ônibus se aproximou da porta do Hotel Bali, com dificuldade devido à multidão que esperava pela 4 Nipes, toquei meu celular no bolso e limpei as lágrimas. Nem tudo estava perdido. Eu ainda tinha o meu ingresso. Então veria Fred, de onde eu sempre estive, num cantinho perdido, o mais insignificante possível. Eu mal conseguia ser protagonista da minha própria vida... por que passou pela minha cabeça que pudesse ver Fred Hunt?
Tentei me embrenhar na multidão, mas mal conseguia me mover. Era um empurra-empurra e eu não era melhor que ninguém. Todos estavam ali pelo mesmo motivo: ver seus ídolos. O primeiro a sair do ônibus foi Oleg, o empresário. Depois dele saiu Gabriel Dimitryev, o Às de Espadas. Laisa Marie, a dama de paus, foi seguida pelo irmão, Maxon Vecchi. E então ele apareceu... carregando a guitarra nas costas, coberta por uma capa de couro. Os cabelos estavam desgrenhados e entre os dedos tinha um cigarro aceso. Levantou brevemente a mão, mal passando os olhos pelas meninas enlouquecidas, entre elas eu.