Foram segundos... que valeram por uma vida inteira. Deixei as lágrimas banharem meu rosto e toquei a tatuagem no meu pescoço, o presente que dei a mim mesma quando fiz 18 anos, a carta do rei de copas, em homenagem ao guitarrista da 4 Nipes, Fred Hunt.
Engoli o choro e fui para casa. Não havia o que eu pudesse fazer para mudar aquilo.
Quando cheguei, estava tudo uma bagunça. Roupas jogadas por todos os lados, e todos os itens das gavetas pareciam ter sido retirados para fora de propósito. Eu tinha passado a noite trabalhando e ninguém foi capaz sequer de ligar para saber se eu estava viva. Poderia ter sido atropelada no caminho, assaltada ou levado um tiro. Ninguém se preocupava. Eu era um cinco de espadas, uma carta sem função no baralho, que só servia para juntar com outro cinco de naipe diferente ou numa sequência de espadas. Eu era a carta que ninguém se preocupava muito e que raramente juntariam do “lixo”, aquele monte que ficava no meio da mesa onde eram descartadas pelos jogadores. Mas o mundo era grande demais... populoso demais... e quem mera eu para querer ser importante?
Meu telefone tocou. Era do hotel. Senti o coração acelerar e atendi, esperançosa.
- Oi, Manu. Já chegou em casa? – reconheci a voz de Dominic.
- Sim.
- Estou ligando para saber se... você quer sair comigo hoje à noite?
Engoli em seco e olhei para a tela, para me certificar de que não era uma brincadeira.
Demorei a responder, o que fez com que Dominic continuasse:
- Entende que eu posso mudar isto, não é mesmo? Uma noite... só uma noite comigo e você poderá conhecer Fred pessoalmente.
Sorri, sentindo as lágrimas queimando o meu rosto:
- Se o preço para conhecer Fred é ter que dormir com você... prefiro nunca na vida realizar o meu sonho. Conseguiu o que queria, Dominic. Siga com seu trabalho. Estou... bem.
- Por que você resiste tanto, Manu?
- Porque eu tenho nojo de você! E cada coisa que faz, me faz odiá-lo ainda mais.
Ouvi a risada debochada dele do outro lado da linha:
- Perdeu a oportunidade da sua vida, Manu.
- Só tenho 20 anos – aleguei – terei outras oportunidades.
- De limpar a privada que Fred Hunter usou nunca mais! – encerrou a ligação.
Rarlat apareceu no topo da escadaria:
- Manu, eu preciso levar algo para leiloar para a formatura. Faremos uma noite de leilões para arrecadar fundos. O que você pode me dar?
- Eu... não tenho nada. – Limpei as lágrimas, tentando não deixar transparecer a minha dor.
- Já reviramos toda a casa e não encontramos nada útil ou de valor – minha mãe apareceu ao lado dela e as duas desceram – precisa providenciar algo Manu.
- Eu...
- Quem sabe a toalha que Gabriel Dimitryev usou no Hotel Bali? – ela tentou.
- Eu... não vou trabalhar hoje.
- Como assim não vai trabalhar hoje? – mamãe perguntou, surpresa.
- Antecipei a minha folga.
- Por que você fez isto? É uma idiota, por acaso?
- Não estou... me sentindo bem. Preciso descansar. Trabalhei a noite inteira.
- Porque quis. Aposto que recebeu a mais por isto.
- Sim, eu recebi. Mas...
- Então pode me dar este valor que recebeu? Eu posso comprar algo para leiloar para a minha formatura.
- Caralho... será que podem só hoje... me deixar em paz? – gritei.
Rarlat arregalou os olhos e logo em seguida começou a chorar.
Mamãe logo me criticou:
- Como você consegue ser tão insensível, Manu? Sabe que sua irmã é emotiva. Nunca mais grite com ela ou irá se arrepender.
- Me desculpe, Rarlat – falei imediatamente – Estou muito cansada... e não deveria ter descontado em você.
- Arrume esta bagunça toda. – Mamãe ordenou.
- Eu... estou cansada. Não dormi ainda.
- Lhe dou onde morar. Limpar é o mínimo que pode fazer, Manu. Mas tem a opção de pegar suas coisas e ir embora. Se acha que conseguirá algo melhor do que nesta casa, fique à vontade. Estou sendo muito tolerante com você e minha paciência está se esgotando.
Respirei fundo e comecei a juntar tudo que estava fora das gavetas e botar no lugar. Parei ao meio-dia para fazer o almoço e depois tentei concluir.
Depois que mamãe e minhas irmãs almoçaram, foram comprar roupas para Carly trabalhar, sendo que ela nem tinha começado, não recebera o salário e usaria uniforme, já que todos usavam no Hotel Bali. O engraçado é que eu pagava a comida e todas as contas da casa porque ninguém ali tinha dinheiro. No entanto para futilidades arranjavam.
Era 15 horas quando recebi uma ligação do Hotel Bali. Respirei fundo e disse de imediato:
- Não vou dormir com você, Dominic.
- Eu sabia que “algo de errado não estava certo” nesta história. – Ouvi a voz de Simone do outro lado da linha – Bote o seu uniforme e volte para cá.
- Eu... não posso.
- Estou ligando em nome da dona do hotel.
- Como assim?
- Ela está aqui e não quer ninguém fora. Dominic avisou que você estava passando mal e ela disse que se não estiver aqui em meia hora, se considere demitida. Como imaginei que ele não lhe avisaria, eu mesma o fiz. Isto aqui está uma loucura. E eu já vi Fred Hunter duas vezes e meia.
- Meia?
- Sim, porque uma não conta por inteiro porque só vi ele entrando no elevador, por dois segundos. Mas não quero contar... venha ver por si mesma o caos no Hotel Bali e a 4 Nipes ao vivo. E se prepare: Gabriel Dimitryev será seu novo ídolo.
- Vou pegar um táxi. Consigo chegar em 30 minutos. E só para constar: ainda estou de uniforme. Não parei de trabalhar desde que cheguei em casa.
- Venha logo. E por favor, traga seu sapatinho de cristal, porque se não o perder depois do encontro tórrido com Fred Hunt, eu mato você.
Comecei a rir e corri para rua, procurando um táxi.
Assim que cheguei de volta no Hotel, percebi que seguia o mesmo caos na entrada. Acho que metade da cidade estava ali, esperando por alguém da 4 Nipes aparecer na janela.
Me embrenhei entre as pessoas e por estar com o uniforme e crachá, fui autorizada por um segurança a entrar. Sim, um segurança da 4 Nipes que tomava conta do Hotel e decidia quem era autorizado a entrar. O caos estava instaurado e eu compreendia perfeitamente. Se uma daquelas garotas entrasse ali, destruiria os garotos mais requisitados do planeta com beijos, abraços e muito amor. Mal sabiam que eu era uma delas... talvez a pior de todas.
Dei alguns passos pelo hall da recepção quando fui interceptada por nada mais nada menos que Oleg Chausson, o empresário da 4 Nipes, aquele que nunca vi ao vivo, mas que conhecia cada ruga do seu rosto, ou melhor, a falta delas, através dos noticiários e canais de internet.
- Onde você estava, porra? – ele perguntou, como se tivesse me visto há segundos atrás.
- Na... minha... casa? – fiquei confusa.
- Vá imediatamente limpar o quarto de Fred. Ele está bem estressado porque derrubaram champagne nos lençóis. Lembrando que discrição é indispensável aqui – pôs um maço de dinheiro no meu bolso – limpe a porra que ele fez e suma.
Oleg sumiu tão rápido quanto apareceu. Senti meu coração disparar. O meu momento estava chegando... o tão esperado encontro da minha vida... aquele que nunca imaginei que aconteceria, mas estava prestes a se tornar realidade.
Era como se tivessem dado um baile e eu não fosse convidada. Enquanto limpava a casa e servia minha madrasta e irmãs, a fada madrinha, neste caso Simone, minha melhor amiga, tivesse aparecido e me dado a chance de chegar ao príncipe. Infelizmente ela não tinha o poder de me dar um vestido novo, tampouco os sapatinhos de cristal. Tudo que eu tinha nos pés era uma sapatilha preta sem salto, confortável para o dia a dia.
Era hora de conhecer o príncipe, dançar com ele e sair correndo antes da meia noite, a fim de que ele me procurasse por todos os lugares depois.
Fui para o elevador e apertei a tecla 1, que me levaria ao primeiro andar. Meu coração parecia querer saltar para fora do peito. Dei uma leve batida na porta do quarto verde e disse, com a voz embargada:
- Serviço de quarto... vim trocar os lençóis.
- Pode entrar. – Ouvi a voz dele do outro lado da porta, aquela que ocupou a minha vida por anos, que me levou a tatuar uma carta do baralho na nuca, mais especificamente um rei de copas. A voz que ouvi era a mesma que sonhei que cantava músicas com letras escritas para mim.