Mundo de ficçãoIniciar sessãoMadson Granger
Nelson, CA Acordei com a luz da manhã escorrendo por entre a cortina de estrelas, colorindo o quarto em sombras roxas. Acordar numa casa onde alguém se preocupa com pequenos detalhes, cortinas, velas, um edredom que parece um abraço, tem um efeito quase milagroso: o corpo desmaia menos e a cabeça, por algum tempo, cala. Desci as escadas, depois de trocar de roupa, havia colocado uma calça quente, um moletom largo e um cachecol lilás, arrumei minha franja e soltei os cabelos, que formaram algumas ondas. A cozinha estava aquecida pelo cheiro de pão com alecrim e por um café forte que me puxou pelo braço como uma promessa. Agnes já mexia as panelas como se cada movimento fosse um canto de incenso: lento, certeiro, ritualístico. Havia algo naquela mulher que tornava o cotidiano parecido com magia sem que ela precisasse falar uma palavra. — Bom dia, dorminhoca — ela disse quando me viu, sorrindo com os olhos. — Dormiu bem? — Como nunca — respondi, ainda com a voz grossa do sono. — Acho que a banheira e a sopa de ontem me curou. Ela riu, um som que encheu a cozinha e me deixou ainda mais leve. Peguei algo simples: uma fatia do pão caseiro, manteiga, café e uma geleia de morango. Enquanto comíamos, o silêncio era agradável, pontuado apenas pelo chiado do bule e pelo barulho do vento passando pelas frestas da janela. Em algum momento, a campainha soou, um som alegre, como se a casa estivesse esperando visitas. Tia Agnes levantou-se com a muleta e foi abrir a porta. Era Sabrina. Os cachos dourados estavam presos em um penteado, ela vestia um suéter oversized, cheirava de terra molhada e alguma coisa floral. Trazia uma cesta de pãezinhos doces quentinhos e uma energia de quem conhece cada esquina da cidade. — Bom dia, Agnes! — ela cantou, depositando a cesta sobre a mesa. — Trouxe pão e vim ver se Madson está pronta para um pequeno tour. O coração deu um pequeno salto no meu peito. Eu me levantei devagar, ajeitei a franja que insistia em cair sobre os olhos e assenti. Sabrina me abraçou com a leveza de quem abraça uma amiga de longa data. A sensação foi inesperada e gostosa. — Você vai amar a balsa do lago. É o meu lugar preferido no mundo. — Ela disse, animada. Minha resposta foi mais rápida do que eu esperava. — Tenho certeza que sim. — disse, e sorri. — Obrigada por ir me buscar ontem e por ter sido tão gentil. — Imagina — respondeu ela, piscando. — É um prazer. E você vai ver, Nelson tem esse efeito nas pessoas. Tia Agnes me olhou com um fundamento de coisa não dita, como se soubesse que essa saída era menos recreio e mais remédio. Me despedi dela com um beijo na bochecha e saímos. O ar estava cortante, e cada respiração formava uma nuvem pequena que sumia rápido. Pegamos o carro de Sabrina e seguimos pela rua principal. Enquanto dirigíamos, as lojinhas passavam como quadros. Uma vitrine exibindo tricôs coloridos; uma lojinha de livros com uma placa feita à mão; um café com mesas de madeira e dois casais rindo diante de canecas fumegantes. As montanhas, lá longe, dominavam a paisagem com seus picos brancos. A água do lago Kootenay brilhava como vidro partido quando o sol batia nela. — Você mora aqui desde quando? — perguntei, enfiando as mãos no bolso do casaco. — Desde que eu me lembro — ela respondeu sem hesitar. — Nasci aqui. Meus pais tinham a pousada na estrada — ela sorriu. — Não consigo me imaginar morando em outro lugar. Até tentei por uns meses em Vancouver, mas voltei assim que pude. Sabe… aqui as pessoas sabem quem você é. É raro. Achei tão bonito que uma pontada de inveja me atingiu — inveja boa, de quem quer um pouco daquela certeza enraizada. — Deve ser seguro — comentei — diferente de Boston. — Seguro e cheio de vida — ela corrigiu. — No verão tem turista por todo lado, no inverno a cidade vira uma espécie de refúgio. E as pessoas… são de verdade. Você vai gostar. Um silêncio confortável caiu, e então puxei um assunto menor, um desses que mais parecem terapia disfarçada. — Eu adorava um filme natalino que sempre passava… não sei se conhece — disse, rindo baixo. — Sempre pensei que essa cidade parece com o cenário do filme. — Qual? — Sabrina inclinou a cabeça, curiosa. Não tinha coragem de citar o título, porque de alguma forma o filme significava férias em família, e feridas abertas; então falei de forma genérica. — Aqueles de cidade pequena, neve por todo lado, uma história meia melosa, sabe? — dei de ombros. — Ah! — ela exclamou — Amo esses filmes. Sempre que passa eu choro no final. E os cafés? As luzes? Sim, lembra Nelson. Rimos juntas. Havia algo surpreendentemente confortável em descobrir afinidades com alguém que você mal conhecia. Uma amiga em potencial desenhava-se ali, silenciosa e promissora. Chegamos à balsa pouco depois. Havia uma fila de carros, pessoas com roupas de lã e botas, e o cheiro inconfundível de coníferas — pinho, terra, resina — que parecia impregnado no ar. A balsa era uma plataforma rústica, uma construção de madeira que flutuava suave sobre o lago. O céu estava limpo e azul; o vento batia no rosto e trazia com ele um frio que mordia, mas não feriu, apenas lembrava que eu estava viva. Pagamos e sentamos num canto com vista para a imensidão líquida. Sabrina pegou uma câmera pequena e começou a tirar fotos como se cada clique fosse um fragmento precioso do dia. — O que você pretende fazer em Nelson? — ela perguntou, acomodando as pernas sobre a barra de madeira. — Ajudar a tia — respondi, simples. — Por umas semanas. Talvez um mês. No máximo. Falar aquilo fez um nó crescer na minha garganta. “Por umas semanas” soava tão definitivo quanto um contrato assinado para mim — e ao mesmo tempo, vazio. Em voz baixa acrescentei: — Mas, acho que preciso de tempo pra me organizar. Me recompor. Sabrina me olhou com compaixão e disse algo que entrou como um bálsamo: — Aqui tem espaço pra respirar. Você vai ver. A balsa deslizou com um rangido melódico. A água, azul-escura, abria-se lentamente à nossa frente, pontilhada por pequenas ondas que refletiam o sol como se fossem peças de prata. Do lado, as margens eram bordadas por árvores densas, e uma leve neblina brincava de esconder e revelar tufos de bosque. Um grupo de patos seguiu a embarcação, inquietos, e crianças apontavam para as gaivotas no convés oposto. Sentei-me e deixei a brisa cortar meu rosto; o vento trazia o cheiro da água misturado a folhas úmidas e algo que lembra ozônio depois da chuva. Tudo parecia limpo, lavado, improvisando uma terapia natural que palavras não alcançavam. Olhei para Sabrina: ela falava sobre trilhas, cafés que serviam bolos de mirtilo, um mercado semanal com produtores locais, uma feira de Natal que lotava a praça no fim do ano — detalhes que eu absorvia como se fossem instruções de um mapa novo. — Você já pensou em ficar mais tempo? — ela perguntou, enquanto o sol fazia o lago cintilar. — No máximo um mês — repeti. — É o que posso prometer por agora. Por dentro, uma tristeza sem motivo claro apertava o peito. Eu não conseguia nomear aquilo. Não era saudade — eu sentia saudade também — era algo mais sutil, como um buraco que insistia em puxar a maré do meu humor. Olhei para o horizonte e fiz um esforço para não deixar que a voz do passado invadisse o presente. Quando a balsa fez o retorno, com as margens se aproximando novamente, Sabrina sugeriu um chocolate quente. Concordei na hora. Estacionamos o carro e caminhamos sem pressa pelas ruas até uma cafeteria de fachada em madeira escura, com janelas grandes emoldurando mesas ocupadas por clientes enrolados em cachecóis. A porta abriu e um calor doce nos recebeu — cheiro de cacau, canela e pão quente. Escolhemos um canto perto da janela. O frio lá fora fazia o vapor do chocolate formar pequenos desenhos no ar que eu observei como se fossem sinais. Sabrina pediu um chocolate espesso com raspas de laranja e eu escolhi um com chantilly que derretia devagar. Cada gole era aconchego líquido que preenchia a alma, e conversávamos sobre nada e tudo: os melhores horários para caminhar pela margem do lago, o nome das padarias que não se pode perder, e aquelas histórias locais de fantasmas de inverno que as crianças contavam para se assustar antes de dormir. Ao sairmos, nossos passos nos levaram em direção ao centro histórico. E foi ali, em frente a uma construção de pedra antiga, que meu corpo parou como se alguém tivesse puxado um fio invisível preso ao meu estômago. A igreja ou templo, como Sabrina corrigiu com um sorriso erguia-se sólida, seu exterior coberto por criptas e trepadeiras, entalhes antigos enfeitando arcos e colunas. Havia um símbolo discreto gravado acima da porta: uma lua com três facetas. A pedra parecia vibrar sob a luz do dia, não literalmente, mas havia uma sensação, uma frequência amorfa que me atravessou. O coração bateu mais rápido. Um arrepio percorreu a nuca. O mundo ficou um pouco mais denso no ponto onde eu observava aquela fachada. — O que é esse lugar? — perguntei em voz baixa. Sabrina sorriu, olhos brilhando como se tivesse acabado de descobrir um segredo maravilhoso. — É o templo antigo de Hécate — ela disse. — Há lendas que falam de um santuário aqui há mais de quinhentos anos. Dizem que as bruxas antigas se reuniam ali, que o solo guarda histórias. Minha respiração ficou curta, por uma razão que eu não soube explicar. Hécate. O nome da deusa tinha cantado nos ouvidos da minha mãe por anos, em canções que eu sempre achara como mitologia de família. Ver o símbolo ali, diante de mim, foi como encontrar uma memória que eu não sabia ter perdido. Prometi a mim mesma, sem alarde, que voltaria. Não sabia quando, mas prometi. Algo naquela pedra — naquele símbolo, naquele cheiro de musgo e incenso velado — me chamava de uma forma profunda, quase primordial. Sabrina percebeu meu silêncio e tocou minha mão com leveza. — Poderíamos comprar umas flores pra sua tia, ela ama tanto. — sugeriu, puxando-me do transe. Aceitei, e quando nós caminhamos de volta pelas ruas de Nelson, o templo ficou para trás, mas a sensação que deixara em mim permaneceu, como se aquela pedra antiga tivesse plantado uma semente que começava a acordar.






