Mundo ficciónIniciar sesiónMadson Granger
Nelson, CA
Dois voos, um ônibus e incontáveis tentativas de cochilo mal-sucedidas depois, finalmente pisei em Nelson. Minhas pernas estavam dormentes, minha coluna ameaçava entrar com um pedido de divórcio e minha bunda… bem, minha bunda já tinha desistido da vida há pelo menos duas horas.
Mas, mesmo assim, a primeira lufada de ar frio que tocou meu rosto me fez respirar fundo — tão fundo que senti o peito abrir, como se estivesse acordando depois de muito tempo debaixo d’água. O ar era puro, cortante, quase doce. Uma promessa silenciosa de que talvez, só talvez, eu pudesse começar a respirar de verdade outra vez.
As montanhas que eu só via nas fotos da minha tia agora se espalhavam diante de mim, enormes e majestosas, com picos cobertos de neve que refletiam o sol como cristais. A pequena rodoviária parecia saída de um cartão-postal: madeira clara, telhado inclinado, bandeiras tremulando num vento gelado que parecia gostar de cutucar as pessoas só pra se divertir.
O motorista anunciou que havíamos chegado e, antes mesmo de processar, eu já estava de pé, puxando minha mochila, depois minha pequena mala — que provavelmente não sobreviveria ao inverno canadense. Desci do ônibus e fui abraçada pela frieza da cidade, um frio que morde, mas de um jeito quase acolhedor. O tipo de frio que desperta.
Nelson tinha aquela estética de cidade pacífica em filme natalino: casas tradicionais, cores suaves, chaminés soltando fumaça preguiçosa, pessoas caminhando com casacos enormes e sorrisos tranquilos. Uma atmosfera tão diferente de Boston, tão mais… leve.
E, pela primeira vez em dois anos, eu me senti leve também.
Leve de verdade.
Leve sem álcool, sem remédios, sem dor de cabeça — pelo menos por enquanto.
— Madson? — chamou uma voz feminina atrás de mim.
Me virei e encontrei uma jovem de cabelos cacheados dourados, altura mediana, pele clara, olhos brilhantes e um sorriso fácil. Linda de um jeito natural, meio “acordei assim”.
— Sua tia me pediu pra buscar você. — explicou ela antes que eu perguntasse. — Sou Sabrina Martin. Moro ao lado dela.
Apertei sua mão, retribuindo o sorriso.
— Madson Granger.
— Wow… — ela me analisou com humor. — A genética da sua família é realmente poderosa.
Ri baixo. Era verdade — os cabelos pretos Granger gritavam de longe, e pelas poucas fotos que vi dos meus ancestrais, sempre foi assim.
Sabrina me guiou até um SUV preto estacionado alguns metros adiante. O ar dentro do carro estava quente e perfumado com algo que parecia mistura de cedro e hortelã. Ela guardou minhas malas no porta-malas e logo estávamos seguindo pelas pequenas ruas da cidade.
Atravessamos uma avenida cheia de lojinhas charmosas, cafés fofos com vitrines repletas de tortas e chocolates, e várias pessoas andando com expressão tranquila. Nelson parecia segura, organizada, viva — pequena, mas com tudo que alguém precisaria para viver bem.
— Está gostando da cidade? — Sabrina perguntou, quebrando meu devaneio.
Olhei pela janela mais uma vez antes de responder.
— É linda.
— Vai amar ainda mais quando conhecer a balsa do lago Kootenay. — disse ela, animada. — Se quiser, posso te levar.
Ela parecia tímida ao oferecer, como se tivesse medo de soar invasiva.
Sorri, sincera.
— Eu adoraria. Obrigada mesmo.
E então ela parou o carro.
— Chegamos.
A casa da minha tia era puro aconchego. Não era grande, mas tinha charme de sobra: fachada azul suave, janelas brancas, plantas espalhadas pela varanda, vasos pendurados, lamparinas decorativas… parecia abraçar quem chegava.
Antes mesmo de eu alcançar o portão, minha tia Agnes apareceu na porta com a ajuda de uma muleta. O sorriso dela — idêntico ao da minha mãe — fez meu coração afundar e emergir ao mesmo tempo. Cabelos negros curtos num chanel elegante, olhos escuros e quentes como chocolate derretido.
— Tia Agnes… — falei, e fui direto para o abraço.
— Mads! Minha menina! — ela me apertou com força surpreendente.
E eu chorei.
Não consegui evitar.
Talvez pelo alívio, talvez pela saudade, talvez por finalmente sentir algo que não fosse dor.
Só me controlei porque Sabrina ainda estava ali.
A vizinha salvadora tirou minhas malas do carro e se despediu, prometendo passar no dia seguinte para o passeio. Quando ela foi embora, entrei com minha tia e fui imediatamente recebida pelo calor da lareira.
A sala parecia saída do P*******t: sofá enorme em L, almofadas fofas em tons de creme e verde, uma mesinha de madeira clara no centro, e a lareira de tijolos cor laranja queimado crepitando suavemente. O cheiro de madeira queimando se misturava ao aroma de lavanda vindo de algum lugar da casa.
A cozinha, integrada à sala por um balcão, era linda — armários verdes com detalhes em madeira, uma janela grande iluminando tudo, panelas penduradas, chaleiras coloridas e potes cheios de temperos artesanais.
— Venha, querida. Vou te mostrar seu quarto. — disse minha tia.
Segui pelo corredor iluminado por janelas enormes que revelavam, ao fundo, montanhas cobertas de neve tão brancas que pareciam pintadas. Era impossível não parar para olhar.
Quando entramos no meu quarto, meu coração deu um salto.
Ele era… perfeito.
Parecia a versão adulta do meu quarto de infância: tons de roxo e azul, cama grande com dezenas de travesseiros, edredom macio, uma manta felpuda que praticamente sussurrava “deite aqui agora”. As cortinas tinham estampas de estrelas e lua, e no chão havia um tapete em formato de lua cheia.
A penteadeira encostada à parede tinha luzes suaves nas laterais, e ao lado havia duas portas: uma levava ao banheiro e a outra a um closet pequeno, porém bem organizado.
— Eu me lembrei de como você amava seu quarto antigo. — disse tia Agnes com um sorriso terno. — Espero que se sinta em casa. Vou preparar uma sopa deliciosa enquanto você se acomoda.
— Posso ajudar, tia… — comecei, lembrando da cirurgia.
Ela ergueu a muleta como quem mostra uma arma secreta.
— Consigo me virar. As bancadas são baixas. Vá descansar, tome um banho decente. Depois conversamos.
E eu obedeci sem protestar.
No banheiro, encontrei um pequeno paraíso pessoal: velas aromáticas alinhadas, sabonetes artesanais de lavanda, óleos corporais, e uma banheira funda e branca que parecia ter sido instalada especialmente para curar almas quebradas.
Liguei a água e o vapor começou a preencher o ambiente. Acendi duas velas — uma de baunilha, outra de sândalo — e o cheiro misturado criou algo quente, doce e relaxante. Acrescentei sais de banho que tinham brilho lilás, como se fossem feitos de pó de estrelas.
Quando a banheira ficou cheia, tirei a roupa e entrei devagar, sentindo a água quente envolver minha pele como um abraço que eu nem sabia que precisava tanto. Um gemido escapou de mim, involuntário, porque depois de tantas semanas dormindo mal, chorando escondido e tentando ignorar a dor pulsante na cabeça, aquilo ali parecia a primeira coisa boa que acontecia comigo em muito tempo.
Encostei a nuca na borda da banheira, fechei os olhos e deixei meu corpo finalmente — finalmente — relaxar.
Pela primeira vez desde que perdi meus pais…
Eu consegui respirar sem dor.
E por alguns minutos, só existi ali.
Na água quente.
Na casa cheirosa.
No silêncio seguro.
Em Nelson.







