Capítulo 1.
VALÉRIA NARRANDO
O telefone tocou no meio da aula. Um toque seco, insistente, como se quisesse rasgar a normalidade da minha rotina. Quando atendi, sem imaginar o que me esperava, o mundo parou.
— É do Hospital Central. Você é parente de Laura Araújo?
Meu coração gelou.
— Sou filha. O que aconteceu?
Do outro lado da linha, o silêncio durou tempo demais para não ser grave. Então veio a resposta, fria, sufocante:
— Precisamos que compareça com urgência. Sua mãe foi vítima de um atropelamento.
Não consegui escutar o resto. As palavras se transformaram em ruído. O ar me faltou. Meus olhos se encheram d’água antes mesmo de entender exatamente o que estavam me dizendo.
Levantei da cadeira como se estivesse em transe. Minhas mãos tremiam. As costas das cadeiras, os rostos ao redor, o professor falando… tudo virou borrão.
— Val… — ouvi Eduardo me chamar, preocupado.
Mas eu não consegui responder. Peguei minhas coisas de qualquer jeito, quase derrubando a mochila no chão. Caminhei até a professora Augusta, tentando controlar a respiração.
— Professora… eu preciso ir. Aconteceu… aconteceu um acidente com a minha mãe.
Ela me olhou com os olhos arregalados, depois assentiu com um aperto de lábios.
— Vai. Se cuida. Depois você nos atualiza, tá?
Balancei a cabeça, sem conseguir agradecer. Bastou dar três passos pra sentir Eduardo ao meu lado.
— O que foi, Val? O que tá acontecendo?
— Minha mãe… — minha voz saiu embargada — ela foi atropelada.
Ele não disse mais nada. Só pegou a chave do carro no bolso e caminhou ao meu lado. O silêncio dele dizia tudo.
O caminho até o hospital foi uma tortura. O trânsito, o barulho, a cidade… tudo parecia zombar da dor que crescia dentro de mim. Eduardo tentou falar, tentou me acalmar, mas nada fazia sentido. Cada segundo parecia uma eternidade. O medo tomava conta. A cada farol fechado, a cada carro lento à nossa frente, eu apertava mais as mãos no colo.
Assim que entramos no hospital, fui direto para a recepção.
— Eu… eu sou Valéria Araújo. Minha mãe, Laura Araújo, foi atropelada. Recebi uma ligação pedindo pra vir até aqui.
A atendente digitou algo no computador, depois levantou os olhos. Foi ali que eu entendi que o mundo ia desabar.
— Senhorita Valéria… sinto muito. Sua mãe sofreu um atropelamento grave. O condutor fugiu do local, e ela veio a óbito no impacto.
Ouvi, mas não compreendi. O chão pareceu sumir sob meus pés. Meu corpo ficou leve e pesado ao mesmo tempo. Comecei a balbuciar que não era verdade, que estavam enganados, que minha mãe estava viva.
— Não… não, não, não! Ela não pode estar morta!
Senti braços me segurando, vozes abafadas tentando me conter. Alguém chamou por um médico. Depois, uma picada no braço. E tudo escureceu.
Quando abri os olhos, o teto branco do hospital me encarava de volta. Um zumbido ocupava minha cabeça. Tentei levantar, mas meu corpo ainda estava fraco.
Eduardo estava sentado ao meu lado. Olhos vermelhos, mas firmes. Como se estivesse segurando o mundo por mim.
— Val… sinto muito.
Desabei.
Chorei até a alma doer. A dor era diferente de tudo que já senti. Era como se alguém tivesse arrancado uma parte de mim sem anestesia. Minha mãe era tudo. Minha base. Minha casa. Meu refúgio. E agora… nada.
Fui levada para ver o corpo. As mãos dela estavam frias, mas o rosto ainda tinha aquela paz que sempre carregava. Beijei sua testa, com lágrimas escorrendo no rosto, e sussurrei:
— Eu vou fazer tudo que a gente sonhou, mãe. Por você. Mesmo que doa, eu vou continuar.
No dia seguinte, acordei no quarto da minha mãe. Ou melhor, no que foi o quarto dela. As roupas ainda estavam no armário. O perfume dela ainda pairava no ar. A cama estava intacta, como se ela fosse voltar a qualquer momento. Mas eu sabia que não voltaria.
Passei o dia inteiro como um fantasma. Não conseguia comer, nem falar. Me sentia anestesiada.
Foi só à noite, quando sentei no sofá e encarei o envelope em cima da mesa, que entendi o que viria pela frente.
Dentro do envelope havia um documento de custódia. Um nome que eu não via há anos.
Otaviano Araújo.
Meu pai.
Aquele mesmo que abandonou minha mãe por uma executiva. Aquele que nunca ligou para saber se eu precisava de algo. O homem que agora, por ordem judicial, teria que me receber.
Era pra lá que eu iria.
A mala já estava pronta. Eduardo, mais uma vez, se ofereceu para me acompanhar.
A caminho do condomínio de luxo em Copacabana, onde meu pai vivia com a nova esposa e o filho dela, senti meu estômago embrulhar. Eu estava prestes a cruzar uma porta que me levaria direto ao desconhecido. Um lar que nunca foi meu. Uma família da qual nunca fiz parte.
— Pronta? — perguntou Eduardo, quando paramos em frente ao portão imenso.
— Não — respondi, com a voz firme. — Mas vou entrar mesmo assim.