Entrei em casa com o coração leve, os pés quase flutuando. Havia algo de mágico naquela noite — talvez o vinho, talvez o toque de Lorenzo, talvez o simples fato de me sentir desejada, viva. Fechei a porta com cuidado, tentando não fazer barulho. A casa estava em silêncio, e por um segundo pensei que Ana Luiza ainda estivesse dormindo. Mas bastou eu dar alguns passos até a cozinha para perceber que não.Ela estava ali, sentada à mesa, o olhar perdido em algum ponto além da janela. O vapor da chaleira preenchia o ambiente com um aroma suave de camomila, e, ainda assim, ela não parecia perceber. Estava alheia a tudo, mergulhada em pensamentos tão pesados que nem notou minha presença de imediato.— Ana? — chamei suavemente.Ela ergueu os olhos, e um pequeno sorriso cansado surgiu em seu rosto.— Oi, mãe. Já chegou?— Cheguei sim, minha filha — caminhei até ela e toquei seu ombro com carinho. — Está tudo bem?— Tá sim… — ela forçou outro sorriso. — E você, como foi a noite? Pelo jeito, foi
Enzo Albuquerque A luz do fim da tarde atravessava as persianas do meu escritório, criando listras douradas sobre a mesa de mogno. O som do relógio marcava cada segundo com precisão irritante, e meu foco se perdia em meio a contratos, relatórios e uma pilha de decisões que pareciam não ter fim. A verdade é que, por mais que o trabalho me mantivesse ocupado, minha mente andava longe. Desde que reencontrei Ana Luiza, tudo mudou. Eu estava dividido entre o passado e o presente, entre o que perdi e o que ainda poderia reconquistar.O interfone tocou, tirando-me do transe.— Senhor Albuquerque? — a voz da minha secretária soou calma. — O senhor tem uma visita.— Visita? Quem? Tem horário marcado?Antes que ela pudesse responder, a porta se abriu com um estalo e uma voz conhecida preencheu o ambiente.— Desde quando eu preciso marcar horário pra ver meu próprio filho?Sorri instantaneamente ao vê-lo. Meu pai estava vestido com seu blazer de linho claro, um lenço dobrado com perfeição no bo
Assim que ficamos apenas minha mãe e eu, ela me encarou como quem tentasse me ler. — O que ele quis dizer com isso de “seguir seu coração”? — a voz da minha mãe cortou o ar como uma navalha afiada, recheada de uma curiosidade disfarçada de desdém. Suspirei, ainda tentando manter a leveza que meu pai havia deixado no ambiente minutos antes. Não queria discutir. Não naquele momento. — Não é nada demais, mãe — respondi, voltando a me sentar e ajeitando os papéis sobre a mesa como se realmente precisasse de alguma organização. — Apenas uma conversa entre pai e filho. Nostalgia, sabe? Ela arqueou uma sobrancelha perfeitamente desenhada, aquela expressão clássica que sempre usava quando achava que eu estava escondendo algo. E ela quase sempre achava. — Nostalgia? Desde quando você é nostálgico, Enzo? Dei de ombros, tentando não rir da insistência. — Desde que tenho me dado conta de certas coisas. Mas, sério, não tem nada demais. Só conversa de homens... Ele filosofando sobre a vida,
Ana Luiza MartinelliEstava indo para a sala do Murilo quando a vi. Num blazer vinho, ela parecia dizer "sou poderosa e insuportável" ao mesmo tempo. A peça estava perfeitamente alinhada ao corpo magro e tenso. Seus saltos ecoavam pelo piso de mármore com a arrogância de quem acredita que cada passo molda o mundo.Ela me viu.Claro que viu. Heloíse nunca deixava de notar a presença de alguém principalmente se esse alguém era alguém que ela desprezava. E, por mais que fingisse estar acima disso, o desprezo dela por mim era tão presente quanto o perfume caro que usava.— Ana Luiza — disse, com um sorriso que não alcançava os olhos, mas transbordava sarcasmo —, que bom te ver... por aqui.Revirei os olhos automaticamente. Não respondi. Nem um "bom dia". Nem um "vai à merda". Porque, sinceramente, ela não merecia meu tempo nem minha energia. Segui em frente, mas não sem antes ouvir seu riso baixo, como quem vencia alguma guerra silenciosa.Bati à porta da sala do Murilo com mais força do
Havia algo reconfortante em estar rodeada de gente que te conhece nos seus piores dias e ainda assim escolhe te amar. Murilo era um desses para mim. E agora, com o vinho fluindo e a pizza quase no fim, eu sentia meu humor finalmente começando a se levantar das cinzas como uma fênix meio torta e com ressaca.Nando já estava no terceiro sono, depois de ter enchido a barriga de doce e me feito prometer que assistiríamos desenho pela manhã. Murilo e eu estávamos jogados no tapete da sala, a luz do abajur tornando tudo mais suave, e a comédia romântica que passava na televisão era de um gosto duvidoso, mas cumpria seu papel: nos fazia rir.Entre uma risada e outra, o celular de Murilo vibrou.— Mensagem da Bia — disse ele, pegando o celular e franzindo o cenho. — Ela teve uma noite horrível com um cara. Parece que foi um desastre de encontro.— Tadinha. Manda ela vir pra cá! Quanto mais, melhor. A gente forma o clã dos desiludidos e joga esse sofrimento no vinho.Murilo já estava digitando
No dia seguinte, acordamos no chão, com uma baita dor de cabeça. Assim que nós três levantamos, minha mãe entregou para nós xícaras.— Tomem isso, está bem forte e vai curar a ressaca. — Minha mãe sorriu para nós. — O que eu faço com vocês, minhas crianças na sarjeta?— Só nos abraça, tia. — Bea disse, e minha mãe nos deu um abraço coletivo.Meu irmão surgiu na minha casa, viu aquela cena e ficou nos encarando.— O que houve com esses três?— Estão sofrendo por amor... ou falta dele.— Então vou me juntar a vocês, pois a menina que pensei em pedir em namoro e apresentar à família me trocou por um cara com mais dinheiro. Ela disse que meus óculos e meu estilo são cafonas e que está cansada de me ver como nerd.Senti pena do meu irmão. Ele contava com ressentimento na voz.— Será que meus dois filhos estão fadados a sofrer? — Minha mãe disse, chamando Gabriel para um abraço.— Gabby, quem perdeu foi ela. Você é lindo, estudioso, tem um ótimo trabalho e ainda vai crescer muito na vida. E
(Anos Atrás)Ana Luiza Martinelli A chuva castigava a cidade naquela noite, mas nada poderia se comparar à tempestade dentro de mim. O barulho das gotas contra o vidro da sala ecoava, abafando o som dos meus próprios pensamentos, mas não era o suficiente para silenciar a dor que se espalhava pelo meu peito.Meus dedos tremiam enquanto seguravam o celular, meus olhos fixos na tela, como se, a qualquer momento, aquela imagem fosse desaparecer. Como se, de alguma forma, eu pudesse acordar desse pesadelo.Mas a foto continuava ali. Ele continuava ali.Enzo.O homem que eu amava. O homem em quem confiei sem hesitar. O homem que, agora, estava estampado na tela do meu celular... com outra mulher.Ela sorria para a câmera, uma expressão de pura satisfação, e ele estava ao lado dela. Perto o suficiente para que qualquer desculpa fosse inútil. Seus braços envolviam sua cintura de um jeito íntimo demais para ser um mal-entendido.Meu coração batia forte, não por amor, mas por raiva, por incred
(Seis Anos Depois)Os corredores de vidro refletiam minha imagem conforme eu avançava, os saltos ecoando em um ritmo preciso, como um lembrete do caminho que trilhei até ali. O passado já não pesava mais sobre meus ombros, e a menina insegura, que uma vez trabalhou como auxiliar de serviços gerais para ajudar a família, agora não existia mais. No lugar dela, havia uma mulher confiante, determinada e, acima de tudo, implacável. Os funcionários desviavam o olhar quando eu passava, alguns cumprimentavam com um aceno respeitoso, outros cochichavam entre si, admirados ou intimidados. Eu sabia o que diziam,sabia o que pensavam. Ana Luíza Martinelli não era apenas a nova diretora-executiva, mas também a mulher que nunca aceitava um "não" como resposta. Meu nome já não estava vinculado à humildade do passado, mas à força que conquistei no presente. Ao entrar na sala de reunião, senti os olhares recaindo sobre mim. Alguns eram de respeito, outros, de inveja. Os diretores masculinos foram r