Havia algo na maneira como ele me olhava quando achava que eu não estava vendo. Algo que me aquecia mais do que o calor que ainda nos envolvia. Era como se Lord estivesse redescobrindo o que significava cuidar — não só proteger de ameaças externas, mas sustentar o silêncio de alguém, a fragilidade escondida debaixo da pele.Ele me puxou mais para perto, os dedos desenhando círculos preguiçosos na minha cintura, e eu encostei a cabeça em seu peito. O ritmo do coração dele estava estável, firme — como o próprio Lord. Tinha algo de ancestral naquele homem. Algo que vinha antes das palavras, antes dos pactos. Algo que me atraía como o mar atrai a lua.— Você pensa muito — ele murmurou, os lábios tocando minha testa como se soubessem decifrar os pensamentos que ainda dançavam atrás dos meus olhos.— Você escuta meus pensamentos agora? — sorri.— Não. Só escuto o silêncio entre eles.Me peguei rindo, de verdade, do tipo de riso que faz os ombros relaxarem. Havia séculos, talvez, que eu não
A brisa da manhã ainda pairava no ar quando deixei o quarto. Zoe dormia profundamente, os cabelos espalhados no travesseiro como uma coroa selvagem. Saí em silêncio, sem querer acordá-la — o mundo lá fora esperava, e eu precisava falar com Gabi antes que o dia nos engolisse de novo.Caminhei pelas trilhas úmidas do acampamento até encontrar o som de vidro e madeira vindo da cabana dela. O cheiro de ervas era quase reconfortante — quase, porque nada me confortava mais quando Zoe estava em risco.— Alex — Gabi levantou os olhos de um punhado de raízes que separava com a ponta da faca. — Dormiu?— Um pouco. Zoe apagou assim que deitamos. Acho que o FISP drenou até as últimas energias dela.— Foi um bom dia — ela disse, com um pequeno sorriso. — Mas não vai durar se a gente não der um jeito nessa adaga.Assenti e me sentei na cadeira à frente dela, que rangeu como se protestasse. Ficamos um instante em silêncio, e eu sabia que Gabi estava esperando que eu falasse. Não como um lobo esperan
Gabi assentiu.— Por isso a gente tem que ajudá-la. Descobrir como remover o que ele colocou na adaga. E reconstruir o elo. Só assim tudo se alinha de novo.— E se a gente não conseguir?Ela não respondeu. Em vez disso, estendeu a mão e segurou a minha.— Então a gente tenta de novo. E de novo. Até dar certo. Porque não tem alternativa.Ficamos assim por um tempo. Duas almas cansadas, tentando desenhar um futuro que ainda parecia névoa.Mas eu sabia de uma coisa.Enquanto Zoe respirasse, enquanto o vínculo entre nós existisse, eu não desistiria.Não enquanto houvesse algo que eu pudesse fazer.— Isso aqui é uma das minhas tentativas — ela disse, girando o frasco entre os dedos. — Um concentrado de ervas ligadas à purificação de vínculos. É instável. Muito instável. Mas talvez sirva como ponto de partida.— E se usássemos isso direto na adaga?— Pode funcionar… ou pode reagir mal. A adaga não é um objeto comum, Alex. Ela tem consciência. Tem vontade. A gente não sabe como ela vai respo
A biblioteca estava silenciosa — não o silêncio desconfortável que costuma preceder algo ruim, mas aquele que me fazia sentir como se o mundo lá fora estivesse pausado, só por um instante. As paredes forradas de livros antigos me cercavam com um cheiro familiar de páginas gastas, couro e tempo. Era quase reconfortante. Quase.Eu caminhava devagar entre as prateleiras, sem pressa. Cada passo ecoava baixo sobre o chão de pedra. A luz suave das lamparinas mantinha o lugar em uma penumbra acolhedora, e por um momento, me senti fora do tempo. Como se estivesse andando entre memórias que não eram minhas — mas que, de algum modo, também eram.Encontrei o volume onde sempre esteve: na terceira fileira à esquerda, perto do vitral azul. Era um livro grosso, de capa escura e textura áspera, quase como pele ressecada. Não tinha título na lombada. Só uma runa gravada em baixo relevo que reconheci de imediato. A mesma que vi esculpida na base do altar, no dia em que tudo começou a mudar.Sentei na
Levantei devagar, levando o pergaminho comigo. Me aproximei do vitral, deixando a luz colorida tocar minha pele. O vidro formava o desenho de uma loba envolta por círculos — círculos de proteção, de ciclos, de eternidade.Pensei no que estava escrito no mapa. “O altar nunca foi só altar. O elo começou ali.”O altar.A primeira vez que pisei ali depois de tantos anos, eu senti. Não era só energia — era como um reconhecimento. Como se o chão soubesse quem eu era antes de mim. Como se cada pedra tivesse memorizado minha presença, mesmo quando eu ainda era pequena demais para entender qualquer coisa.Agora fazia mais sentido.Se o elo começou ali, se foi naquele espaço sagrado que a adaga foi usada para corromper, talvez fosse ali também que tudo pudesse ser refeito. Mas para isso… para isso eu teria que voltar. E encarar.Ele.Meu pai.Não gosto de chamá-lo assim. Pai não é só sangue. Pai é quem permanece. Quem protege. Quem ensina a amar sem medo. E ele… ele foi ausência. E, quando pres
O cheiro de madeira queimada foi o primeiro a me alcançar. Depois, o som dos passos firmes no cascalho da trilha, acompanhados por um assovio curto — o tipo de som que parecia uma saudação e um aviso ao mesmo tempo.Eu já estava na entrada do saguão principal, ao lado de Alex e Gabi, quando ele surgiu entre as árvores, com um sorriso fácil no rosto e um casaco surrado que parecia ter histórias demais guardadas nas costuras.— Se eu soubesse que vocês estavam fazendo tanta bagunça, tinha vindo antes — ele disse, a voz grave, mas calorosa.Gabi deu um passo à frente, o olhar entre incrédulo e emocionado.— Achei que só viria antes do festival — ela disse, e foi impossível ignorar o tremor pequeno na voz dela.O homem — alto, ombros largos, barba curta com fios prateados — abriu os braços como quem não precisava dizer mais nada.— Não dá pra deixar a filha favorita se meter em guerra sem supervisão, né?Gabi riu e correu até ele. Não um riso qualquer, mas aquele que vinha de um lugar pro
Desde que me entendo por gente, há tinta preta espalhada pelo meu corpo. Os anciãos dizem que estou destinada ao mais poderoso dos alfas, pois jamais viram marcas tão extensas quanto as minhas.Quando uma fêmea nasce destinada a um alfa, ela carrega uma marca — quase como uma tatuagem. Quanto maior a marca, mais forte o lobo que a reivindicará. As minhas se espalham por toda parte, cobrindo minha pele como um mapa do destino. Apenas meu rosto ficou imaculado, mas o resto... cada centímetro carrega o sinal da minha sina.Eles podem nos sentir assim que completamos vinte anos. Seguem nosso rastro, atravessam matas e montanhas para nos levar para sua alcateia. Hoje é minha vigésima volta ao sol. O dia em que encontrarei meu lobo.O dia em que finalmente aprenderei a me transmutar.O dia em que verei minha outra forma pela primeira vez.Mal posso esperar pela lua. Sinto a impaciência pulsar em meu peito. Quero que ela suba depressa no céu, que banhe a terra com seu brilho prateado e traga
O cheiro dela.Forte. Viciante.Está me deixando louco. Transtornado.Na forma humana, ainda consigo conter meus instintos. Agora? É impossível. Meu lobo ruge dentro de mim, exigindo que eu me aproxime, que tome o que é meu. Mas não posso. Preciso lembrar por que não podemos tê-la, por que devemos protegê-la até de nós mesmos. Mas de nada adianta. Minha fera já decidiu. Ela nos pertence. E vamos tomá-la.O aroma dela se espalha pela floresta densa e escura, infiltrando-se em cada fibra do meu ser. O ar da noite está carregado, pesado, e a lua cheia brilha entre as copas das árvores, testemunha silenciosa do que está prestes a acontecer. Meu corpo se tenciona.Rosno. Ciúmes. Ódio.Não sou o único alfa aqui. Não sou o único que sente esse perfume intoxicante. Outros o percebem. Outros o desejam. Mas ela é minha. Sempre foi. Sempre será.O instinto me guia. Meus pés se movem antes mesmo que eu perceba. Avanço sem hesitar, rompendo galhos e folhas secas pelo caminho, até encontrá-la.Ela