Infinda - A Bela Imperatriz e o Rei dos Contos de Fadas
Infinda - A Bela Imperatriz e o Rei dos Contos de Fadas
Por: Domi Milani
I

Imagine nascer em uma cabana rústica, o vento gélido dos Alpes entrando dia após dia pelo telhado tosco, a comida escasseando no inverno e a família crescendo a cada ano.

Imagine ainda, que seu corpo é coberto de pelos. Sedosas cerdas de mais de cinco centímetros em um tom caramelo escuro cobrem quase todo o seu corpo, exceto as palmas das mãos e a planta dos pés. Você é uma criança gorda e saudável, sobreviveu ao inverno mais rigoroso em três décadas, recuperou-se rápido de uma virose que levou-lhe um irmão mais velho e, sem dúvida, é a criança mais ativa da família.

Agora imagine que, depois de seis anos questionando-se porque Deus faria uma piada assim com pobres camponeses que nunca saíram do estreito e difícil caminho traçado por Seu filho, seus pais abrem a porta da cabana e encontram um homem bem vestido que lhes oferece uma quantia tentadora pela pequena aberração.

Foi assim que minha mãe entrou para o Incrível Espetáculo de Mistérios. Você sente pena dela?

Eu não.

Quando tinha meus cinco ou seis anos queria, inclusive, ser como ela.

Gerde Goldstein tornou-se a principal atração do espetáculo itinerante de Hans Hirsch. Ela era uma diva às avessas: as pessoas pagavam para apreciar sua estranheza, para sentirem-se aliviados de não ser como ela... Mas sua apresentação era sempre a mais esperada, ela invariavelmente recebia flores ou outros pequenos presentes em cada cidade que passavam, aprendeu a tocar cravo, a cantar e interpretar. Depois de uma certa idade e fama, conseguiu, sem muito custo, convencer o patrão a lhe dar uma parcela do lucro de suas apresentações.

A beleza sempre esteve entre as qualidades mais desejadas e todas as mulheres que conheci lutavam - algumas ferrenhamente, desafiando a morte - para encarnarem o espécime feminino, representando o padrão da época da melhor forma.

Mas a beleza não é o único caminho para a sensualidade. Existe um encanto poderoso no intocável, no misterioso, no raro... Minha mãe - e Hirsch, como seu representante - recebia frequentemente propostas para passar a noite com homens (e algumas mulheres, também) a troco de joias e dinheiro. Acredito que ela tenha aceitado algumas propostas, pois tinha um belo cofre laqueado em que guardava uma série de belos e preciosos adornos. Na época em que eu já tinha idade suficiente para compreender, porém, posso afirmar com alguma certeza que ela havia deixado de lado seus amantes ocasionais, pois tinha uma relação bastante sólida com o nosso apresentador e administrador do circo - que, a propósito, era meu pai.

Hirsch era mais de quinze anos mais velho que ela, mas eles se entendiam muito bem. Minha mãe pode ter nascido em meio à ignorância e à pobreza, mas tinha a mente aberta e uma sede de saber insaciável. De início, quando fora comprada de seus pais, ela era simplesmente exibida ao público sem roupas, como se fosse um animalzinho curioso. Tendo encontrado, porém, cuidados e atenção entre os trabalhadores do espetáculo, foi se acostumando ao novo ambiente e revelando sua personalidade agitada e irreverentemente simpática.

Em pouco tempo ela dançava para o público do espetáculo e, dos sete aos dez anos, causou comoção de Estrasburgo a Viena com seu vestidinho de cetim e rendas e sua bonequinha que a reproduzia em todos os detalhes; tocando numa pequena clavicórdia, cantando ou recitando graciosamente.

Eu sempre ria quando minha mãe, imitando uma voz infantil, me contava essas histórias... "Imagine, Lori, naquela época eu nem mesmo cortava os pelos que caíam sobre meus olhos... Eu parecia monte de feno com bracinhos!"

Não, não dá para ter pena dela. Ainda hoje, depois de ter vivido na corte, visitado quase todas as capitais do mundo, experimentado a riqueza e a imortalidade, sei que minha mãe gozou uma vida livre e plena. Ela riu com gosto da cara do destino que tentou fazer dela uma figura patética, pobre e aberrante. E ela foi meu modelo, meu parâmetro e ideal, como toda mãe deveria ser.

"Imagine, Lori..."

Há quanto tempo eu não ouço aquela voz divertida ou mesmo esse nome? Lorelei, o nome que ela escolheu para mim... Agora, relembrando tudo isso, me magoa um pouco que ninguém mais me conheça assim... Ou que eu não tenha tido tempo de ir ver a velha Gerde depois que... Bem, você sabe... Depois que me transformei em vampira. Sei que ela teria entendido minha situação...

Enfim. Hirsch era um homem de visão e estava sempre criando novos roteiros para as atrações do circo. Além das apresentações solo, alguns dos artistas (sim, artistas: todos eram, no mínimo, bons atores) se apresentavam juntos em uma peça cômica. Minha mãe - que era conhecida como "Leona, A Mulher Leão" - contracenava com seu adorado "vovô", um anão já velho com uma barba mais comprida que seu próprio corpo, com o "Ciclope", um jovem que obviamente tinha um único olho, a "Vênus", uma exímia dançarina que não possuía os membros superiores e a "Sereia", uma senhora que conseguia quebrar taças com seu canto agudo.

Não era muito comum aparecerem novas atrações, mas Hirsch reinventava o que tinha: quando voltavam em alguma cidade depois de longo tempo, ele mudava o nome e a performance de alguns deles. Minha mãe, por exemplo, às vezes fazia o papel de uma mulher-fera, sem dizer uma palavra, apenas grunhindo alto e balançando ameaçadoramente as grades de uma jaula. O velho anão às vezes se passava por um chinês milenar... A curiosidade do show estava mais atrelada à história que o apresentador contava, ao suspense que suas palavras criavam, que às pessoas em si.

A estrutura do Incrível Espetáculo de Mistérios era bastante satisfatória para os padrões da época: quatro carroças tracionadas por oito bons cavalos carregavam a parafernália necessária para a montagem de uma grande tenda coberta, um palco pequeno para apresentações breves e um palco maior, para feiras. Elas também guardavam todo o material usado nas apresentações, como figurinos e peças de cenários, além disso, serviam de moradia para as nove pessoas que eram a alma da companhia. Quase tudo era muito bem conservado, apesar de o circo já contar com mais de cinquenta anos de estrada. Ele havia sido fundado pelo avô de Hans Hirsch, um ex-ator com um grande talento para o empreendedorismo. Ele começara quase exclusivamente com pequenas fraudes, coisas como dois animais empalhados juntos como se fossem uma espécie mítica, um anão com um rabo de macaco costurado nas calças e uma variedade de truques de mágica baratos. Mas ele sabia como entreter o povo e, segundo Hans, muitas vezes o público parecia vir apenas pelo prazer de escutá-lo narrando suas histórias macabras e bizarras.

Com o passar do tempo, o velho Hirsch foi encontrando mais atrações para o seu show: o anão idoso ele encontrou mendigando nas ruas de Dresden; a "Sereia", Madame Louise, que comprou de um cafetão em Paris - e eu não sei se consigo imaginar o que eles faziam quando ele descobriu seu talento vocal. Dizem que o meu bisavô era uma pessoa volúvel e exigia bastante de seus funcionários (se é que posso chamar assim), mas estava sempre aberto a ouvi-los.

Seus sucessores, meu avô e meu pai, também foram bem quistos pelos companheiros - apesar de ter ouvido muitos comentários sobre como o meu avô era um terrível beberrão e que sua esposa morrera de desgosto. Bem ou mal, fato é que, até meu último dia como atriz no Incrível Espetáculo, a companhia ia bem. As pessoas que trabalhavam comigo pareciam estar contentes com suas funções e apenas um ou outro tinha ambições maiores - naquele tempo não era fácil para um ator de vaudeville conseguir um bom emprego, ainda mais se ele contasse com uma deformidade bastante visível. E, de fato, nós ainda estávamos em uma posição mais vantajosa que muitos dos nossos espectadores, que eram agricultores, carvoeiros e pescadores sem qualquer tipo de instrução.

Quando minha mãe ficou grávida e seu ventre tornou-se visivelmente protuberante, os espectadores vinham aos montes para vê-la. Durante os últimos cinco meses de gestação, ela foi a estrela de maior destaque. Grande parte do público já conhecia "A Mulher Leão" de várias outras apresentações, mas a curiosidade de vê-la grávida era inabalável. O público não estava acostumado a pensar nos trabalhadores do espetáculo como pessoas comuns que tinham algum problema: não, eram mistérios da natureza, criaturas únicas! E, claro, eles próprios não faziam questão alguma de se livrarem dessa aura de sobrenaturalidade. Era ela, mais que suas peculiaridades físicas, que garantia seu sustento. Segundo minha mãe, Hans Hirsch não teve dúvidas sobre sua iminente paternidade e, sendo esse seu primeiro filho - pelo menos o primeiro de que ele havia sido informado - não pode deixar de sentir um imenso orgulho e empolgação. Ele, então, já não era mais nenhum jovenzinho: contava aproximadamente trinta e quatro anos e, naquela época, ele já havia passado muito da idade de ter seu primogênito.

Claro que, como todo homem, ele esperava que minha mãe carregasse um varão, mas não ficou decepcionado ao pegar nos braços esta que vos fala, que então contava com surpreendentes três quilos e meio, pele rosada, grandes olhos azuis e cabelos louros, angelicalmente cacheados e restritos ao topo da cabeça. Felizmente ou não, eu não seria incluída no rol das curiosidades do Incrível Espetáculo de Mistérios.

Ela me contou essa história inúmeras vezes:

"Nós estávamos em Teschen, na Silésia... Havíamos chegado há três dias e o clima estava muito bom. Havia uma chuva delicada durante a noite e logo pela manhã, mas o sol brilhava forte durante todo o dia, que ficava com uma claridade alegre... Todos pareciam até mais cheios de energia naqueles dias brilhantes. Naquela parte do ano as árvores já tinham recuperado todas as folhas perdidas no inverno e a grama estava alta e cheia de flores viçosas. Você não dava sinais de querer nascer e eu calculava que viria só na próxima semana, mas, naquela manhã, enquanto nos preparávamos para as apresentações da tarde, senti uma forte pontada bem aqui..." - e ela apontava a parte inferior do ventre - "e senti água escorrendo por minhas pernas... Eu levei um susto! Sabia que isso poderia acontecer, mas fiquei lá, parada sem saber o que fazer. Sorte minha que todos estavam indo e vindo com as peças do cenário e Madame Louise me viu naquele estado. Minha barriga agora doía mais e mais. Ela me ajudou a andar e me deitou num monte de feno macio, me examinou e viu que você já estava nascendo! Todos pararam o que estavam fazendo e vieram ajudar... Foi... Eu me senti tão feliz! Eu não poderia ter uma família melhor! Naquela tarde nós fizemos uma apresentação especial e as pessoas de Teschen nos trouxeram muitos presentes. Acho que foi um dos melhores dias da minha vida!"

E então ela me abraçava com força e puxava minhas bochechas dando muita risada. Ela era engraçada, parecia que nunca passara dos quinze anos...

Isso me faz pensar em como a situação é realmente irônica. Há algum tempo - há bastante tempo, na verdade - soube que a velha Gerde faleceu com sessenta e quatro anos (ela fazia questão de contar exatamente seus aniversários) e, segundo a pessoa que me informou, ela continuava com aquela risada quase infantil, que saía com força do peito, como se não pudesse contê-la... Disseram que estava com os pelos quase totalmente embranquecidos, mas ainda fazia suas apresentações regularmente. Eu não rio assim desde que tinha... Sei lá... Quinze anos? Dezessete, talvez, que é quando fui abraçada? Não que eu não tenha tido bons momentos, mas essa graça inexplicável, esse assomo de riso pueril e quase tolo, esse... Eu perdi. Meus cabelos ainda são perfeitamente acastanhados, minha pele é lisa e meu corpo flexível, mas meus olhos não mentirão minha idade. Ou melhor: não mentirão minha morte.

E, sim, você me verá lamentar bastante durante este relato, caro leitor. Isso eu não consigo conter - reclamar, lamentar e gemer é um direito dos mortos.

Se em minha infância nunca tive um endereço fixo e perdi a conta de por quantas cidades passamos, nunca tive dúvidas de que a minha casa era o melhor lugar do mundo e que a minha família era a melhor possível. Minha mãe nunca me pareceu estranha e nunca pensei nela como fruto de um desvio da natureza. Nem ela, nem qualquer dos meus "tios", como os chamava. Minha criação foi quase tribal: todos eram responsáveis por mim, me reprimiam quando agia mal, me consolavam quando estava triste, me alimentavam quando tinha fome e me davam amor sempre. Com minha mãe, aprendi teoria musical e a tocar o cravo, com Madame Louise, aprendi a cantar e a falar o francês, meu pai me ensinou a ler e a lidar com os números e Annamarie - a "Vênus" - me ensinou os segredos da arte dramática.

Eu tinha uma grande afeição por todos eles, mesmo por Bernard, o "Ciclope", que me dava muitas broncas e sempre me denunciava quando via-me fazendo algumas de minhas não raras traquinagens. Meu preferido, no entanto, era Anton, o velho anão. Desde cedo ele sempre me tratou como a sua "neta" favorita, enchendo-me de pequenos presentes, histórias e maus costumes de criança mimada.

Ainda me lembro de como meu coração se apertou dolorosamente no dia em que ele se foi. Havia vários meses, talvez mais de um ano, que ele vinha queixando-se de dores nas juntas, tinha cada vez mais dificuldades em mover seu corpo miúdo e demorava muito a pegar no sono nos dias mais frios. Nos meus reles cinco anos, eu oferecia-lhe o ombro para ajudá-lo a caminhar e me divertia ajudando-o a comer como se fosse uma brincadeira de bonecas. "Meu vovozinho", eu o chamava. "Meu chinezinho", às vezes. Ele ria-se e fazia uma imitação do modo de falar oriental que me divertia horas a fio.

Naquele dia havia uma grossa camada de neve na estrada para Colônia. Estávamos bastante perto da entrada da cidade, mas uma forte tempestade nos pegou na calada da noite e tivemos que parar no meio do caminho. Aquela deve ter sido a noite mais fria de que posso me lembrar e poucos de nós haviam conseguido conciliar o sono. Lembro-me que, aconchegada ao corpo quente de minha mãe, me deixei ficar de olhos cerrados ouvindo-a conversar animadamente com Annamarie. Foi quando o velho Anton, que acreditávamos estar dormindo, soltou um gemido doloroso e mexeu-se violentamente por um breve momento.

Annamarie leventou-se de súbito para ver o que havia acontecido e mamãe seguiu-a. Elas falaram qualquer coisa baixinho, mas eu pude notar que havia dor em suas vozes. Uma dor conformada e sem qualquer surpresa. Eu quis me levantar e ir ver meu vovô, mas algo me prendia ao leito. Eu sabia o que havia acontecido. Eu sabia que não o veria mais. As lágrimas brotaram quentes e abundantes e o dia que se seguiu passou como se uma bruma envolvesse tudo. Ainda hoje, quando me recordo do singelo enterro do nosso pequeno companheiro, tudo me vem enevoado e distante...

Até aquela época eu fazia o papel de boneca de ventríloquo, apresentando algumas atrações com o grande showman Hans Hirsch. Devo dizer que sempre tive um talento especial para interpretar e decorava minhas falas muito bem. Eles me vestiam com um vestido exageradamente bufante e rendado, pintavam minhas bochechas com rouge e faziam grandes cílios e as marcas no queixo com kajal. Eu era conhecida em inúmeras cidades da Prússia e da Áustria como "Pupperina" e até hoje guardo comigo um pequeno retrato que um pintor fez de mim com essa caracterização. Minha memória desse período é bastante restrita, lembro-me de algumas raras passagens marcantes e uns poucos flashes de meu cotidiano, mas minha mãe, anos depois, se divertiria em contar-me como eu gostava de fazer minhas apresentações, pois apenas nelas eu podia falar "palavras feias", que vez ou outra faziam parte do script.

Depois que tomei um certo tamanho, fazia pequenos números cômicos sozinha e peças cantadas com os outros. Vestir-me como um personagem sempre foi minha maior paixão. Adorava a maquiagem exagerada, as roupas coloridas, as perucas e todo o tipo de adereço; mesmo alguns que me eram incômodos eu os vestia com gosto para subir ao palco.

Lembro-me que, certa feita, uma senhora rica do local em que nos apresentávamos resolveu que queria me adotar. Meus pais e companheiros demoraram alguns minutos para perceber que ela levava a sério tal ideia, mas a senhora insistia e dizia que eu teria uma vida decente ou qualquer coisa do gênero, ameaçando, inclusive, chamar reforços. Eu devia ter meus oito anos, mas fui articulada o suficiente para tirar-lhe lágrimas dos olhos contando como eu amava e era amada pela minha família, narrando cenas piegas que eu inventava conforme saíam de minha boca.

Não sou a melhor atriz que conheço, mas posso dizer que meu talento é inegável. Sei o suficiente de música para saber que - definitivamente - não é o meu ponto forte, assim como o desenho, a pintura e a poesia. Tenho uma imensa admiração por todas as formas de arte, mas o teatro é o meu dom e, mesmo tendo passado a maior parte de minha existência fora dos palcos, sinto que tenho atuado bastante e que minha arte já mudou o rumo de minha vida várias vezes.

Depois de atuar e ser o centro das atenções, meu outro passatempo favorito era brincar com os nossos cachorros. Tínhamos quatro cães que faziam as vezes de sentinelas para nós e nossos pertences, mas que, conosco, eram mansos como ovelhas. Sempre que não estava trabalhando ou aprendendo minhas lições, passava muito tempo passeando e brincando com eles nos campos próximos a onde quer que estivéssemos instalados.

E, sobre estarmos instalados, meus locais favoritos eram as grandes cidades: a efervescência das pessoas indo e vindo nos mais diferentes trajes, carros de passeio, feiras e as grandes e belas construções que eu não me cansava nunca de admirar... Eu passava horas imaginando o que se passaria dentro daquelas suntuosas paredes, os habitantes em seus belos trajes, os deliciosos manjares...

Eu já havia estado em alguns palácios e palacetes - não era incomum sermos convidados a fazer apresentações particulares para a nobreza e pessoas de posses - e sempre me encantava com aquela vida diferente, que parecia uma espécie de teatro eterno, com direito a um cenário muito enfeitado e fantasias coloridas e brilhantes. E os doces? Ah, eu amava os doces! Sempre ficava muito empolgada em fazer apresentações particulares porque, invariavelmente, aquelas pessoas estranhas me davam muitos doces! É realmente uma pena que, quando eu tive à minha disposição tudo o que a alta pâtisserie podia produzir de melhor, eu já não sentiria satisfação alguma em provar...

Minha infância passou muito rápido e, mesmo tendo experimentado o que eu considero liberdade plena - tempo e meios para ir e vir aonde bem entendesse - ainda assim, quando penso naquela época, a sensação de que, então, era mais livre e incomensuravelmente mais feliz, é inevitável.

A primeira vez que senti que minha infância estava acabando foi quando tinha doze anos. Claro, foi de uma forma intuitiva, apenas uma sensação de que o tempo se ia, de que eu perdia algo e que, de alguma forma, as responsabilidades seriam gradativa e inevitavelmente depositadas sobre meus ombros... Aconteceu quando estávamos saindo da Cracóvia... Meu pai tinha apenas puxado as rédeas dando o sinal para os cavalos partirem quando um grande estrondo os assustou.

Numa casa próxima algo parecia ter explodido e um incêndio começara de imediato. Houve alguma confusão na rua, algumas pessoas corriam para longe, algumas ficavam observando embasbacadas e outras procuravam, um tanto desnorteadas, um meio de ajudarem. Saímos das carroças a tempo de ver uma cena peculiar: dois dos três homens que acabavam de sair da casa, deram meia volta e entraram novamente. Logo eles saíram, carregando o que pareciam ser duas crianças pequenas embrulhadas em alguma coisa... Um homem tentou interpelá-los, perguntando se havia mais alguém, mas eles pareciam apressados e o empurraram. Ambos sumiram para a rua de trás e, provavelmente tinham algum meio de transporte, pois o homem agredido tentou segui-los, mas logo voltou.

Poucos minutos depois a polícia local chegou para ajudar a apagar o incêndio que em pouco tempo estava extinto. Alguns homens adentraram o que então restara da casa para averiguar o que houvera - ou, talvez, por mera curiosidade - e encontraram mais do que os seus antigos habitantes haviam carregado consigo: três crianças pequenas presas em peculiares vasos de cerâmica sem fundo que restringiam seus movimentos, deixando-as curvadas em uma desconfortável posição. Todas mortas. Os oficiais levaram os corpos e as pessoas se foram aos poucos, as cabeças baixas, com a curiosidade um pouco mais satisfeita do que gostariam.

Já estávamos quase nos portões da cidade quando encontramos Ivan. Caído semiconsciente, usando apenas uma calça curta que parecia ser muito velha, seu corpo - terrivelmente deformado - todo coberto de fuligem. Mais uma vez interrompemos nossa mal iniciada viagem e meu pai o trouxe. Eu já não era mais a filha única.

"Comprachicos." Ele parecia perplexo. "Já ouvi falar deles... Claro, nesse negócio, já era de se esperar que eu já tivesse até mesmo cruzado com algum deles. Mas não esperava que fosse dessa forma. E acho que não esperava que fosse sentir tanta vontade de arrebentar a cara deles. Olha isso!"

Ele apontava o rosto do garoto. Ele não tinha o nariz, apenas uma grande cicatriz no lugar. Lembrava muito o focinho de um lagarto, com as narinas em forma de dois traços finos inclinados... Sua coluna formava uma espécie de "S" e ele era magro... Isso foi o que mais me chocou. Eu estava acostumada a pessoas deformadas, mas mesmo em minha ingenuidade infantil pude perceber que aquelas juntas protuberantes, aquelas costelas aparentes e aquele rosto encovado mostrava um sofrimento além do que eu poderia imaginar.

Depois de dormir muitas horas e comer como um condenado, o garoto se sentiu à vontade para falar. Não que isso tivesse esclarecido qualquer coisa, pois ele não se lembrava de nada, nem mesmo de seu nome. Disse que, até onde podia dizer, vivia com aqueles homens e os outros garotos e que também estava usando um vaso, mas que, tentando fugir do fogo, acabou caindo da escadaria e o quebrou. Disse que esperava que os outros tivessem conseguido sair e achamos que ele seria mais feliz sem saber a verdade, portanto, guardamo-la conosco.

Segundo meu pai, os comprachicos eram pessoas que pegavam crianças e as deixavam daquele jeito para depois vendê-las como atrações para circos ou mesmo para pessoas que teriam o estranho gosto de possuir criados deformados. Por todo o resto da minha vida, até hoje, nunca mais vi nada assim - exceto, é claro, no romance de Victor Hugo - mas sei que existiram leis na Espanha e na Inglaterra que tratavam sobre as atividades dos tais "comprachicos". Acredito que devia ter sido algo relativamente comum um ou dois séculos antes, quando os reis tinham seus bobos-da-corte e esse tipo de coisa. Não vi muitos circos como o nosso, também. Com o tempo, foram surgindo leis que impedem as pessoas de abusarem dos que tem algum problema físico ou mental. Acho bastante justo, vi vários casos de atrações que não tinham a menor noção do que estavam fazendo e mesmo de pessoas que eram escravizadas... Mas aqueles tempos eram outros e a gente não pensava muito nisso.

Ivan, como o chamamos, tornou-se minha principal companhia. Ele não aparentava, mas acreditávamos que ele tinha por volta de oito anos e parecia não se importar com suas deformidades. Meu pai dizia que aqueles homens teriam dado à ele alguma planta para que ele perdesse a memória e pensasse que sempre fora daquele jeito, mas, de qualquer forma, ele estava no meio de pessoas tão diversas que sua aparência parecia normal e corriqueira. Ele tinha alguma dificuldade em aprender as coisas, mas tocava gaita muito bem e logo começou a se apresentar como "Garoto Lagarto".

De início, ele se incomodava um pouco com as pessoas o olhando tão curiosamente e as mulheres passavam horas cuidando dele, consolando-o. Eu ficava com muito ciúme e tentava chamar a atenção para mim novamente, mas no fundo sabia que ele precisava mais do que eu. Com tempo também acabei adotando um papel mais materno em relação a ele, ensinando-lhe o que podia e ajudando os adultos a cuidarem dele.

Tempos depois, comecei a me sentir solitária. Minha mãe parecia não entender muito bem o que se passava e eu não sabia bem como expressar que me faltava um amigo. Mas não qualquer amigo: eu queria alguém com quem pudesse me abrir totalmente, alguém que não pudesse ser atingido caso eu fizesse uma crítica mais aguda sobre minha família... Eu não o sabia na época, mas o que eu queria era uma "melhor amiga", alguém da minha idade, que tivesse anseios, dúvidas e problemas semelhantes aos meus, que pudesse ouvir-me e compreender-me. Minha família era ótima, mas, ainda assim, não era capaz de suprir a necessidade social que eu tinha de me relacionar com outras pessoas.

Às vezes eu me deixava estar horas a fio observando as pessoas nas ruas e, mais do que nunca, imaginando como seria a vida delas e, no fundo, ansiando por experimentá-las. As brincadeiras com Ivan me pareciam cada vez menos interessantes e o pobre garoto notava, vindo frequentemente me cobrar uma corrida até o rio ou que lhe contasse mais histórias assustadoras. Às vezes me trazia flores, tentando, sem sucesso, tirar-me da melancolia. Eu estava crescendo e não havia como evitar.

Aos quinze anos eu já era uma jovem mulher, meu corpo tomara boas proporções e eu passava longos momentos cuidando de minha aparência, escolhendo vestidos que estreitassem minha cintura e cores fortes que contrastassem com meu colo muito branco. Meu cabelo, porém, era meu grande orgulho: caindo em ondas de um castanho escuro até o quadril, eu o escovava todos os dias e gostava imensamente quando minha mãe ou Madame Louise me faziam penteados diferentes e rebuscados.

Eu ouvia muitas histórias... Nasci e me criei em meio ao teatro, as histórias eram uma parte muito sólida do meu mundo. E agora, finalmente, aquelas que falavam de romances, de paixões e amores começavam a tocar mais fundo minha jovem alma. Eu nunca sentira nada semelhante. De certa forma, meu ambiente não me dava essa chance. Às vezes tentava imaginar como seria casar-me com Ivan quando fôssemos mais velhos - naquela idade, nossos quatro anos de diferença ainda eram um abismo. Mas essa ideia não me atraía. Ele era um garoto meigo e amoroso, mas eu queria alguém que me acompanhasse, ou ainda mais: que me desafiasse. Queria alguém com quem pudesse discutir minhas impressões sobre o mundo, que me apresentasse novos pontos de vista, com quem eu pudesse aprender e crescer. O meu pequeno amigo era bom, mas eu sabia que nunca seria feliz ao lado dele.

Estar constantemente viajando e conhecendo novos lugares e costumes era, então, a melhor parte de minha vida. Bernard, meu severo "tio" de um olho só, me ensinara sua língua materna, o húngaro, a meu pedido. Eu ansiava por entender o que as pessoas de outras regiões falavam e o que diziam os livros e panfletos que me caíam nas mãos. Gostava de colecionar pequenos souvenirs, sempre lembrando de anotar de onde provinham e, se fosse o caso, o que representavam ou significavam. Tinha um pequeno baú repleto deles. Vivendo em um espaço restrito como vivíamos, aquele baú era o meu maior luxo.

Cada vez com mais frequência eu me pegava imaginando como seria minha vida no futuro. Era provável que continuasse a trabalhar no circo até a morte de meu pai e, com isso, me tornasse a administradora do negócio. Minha mãe havia engravidado mais duas vezes depois que eu nasci, mas nenhuma das crianças passou do sexto mês. Não acredito que ela tivesse qualquer problema de fertilidade, provavelmente era apenas uma questão de sorte. Isso, claro, chateou-a por um período, mas ela superou bem. Na verdade, não fazia tanta questão de ter mais filhos, como a maioria das mulheres: ela tinha consciência de que não seria bom ter pessoas demais na caravana.

Madame Louise dizia que não queria filhos e, da sua profissão anterior, trazia o conhecimento de inúmeros métodos contraceptivos, dos quais Annamarie também fazia uso. A despeito de seus braços faltantes, "tia" Annamarie era uma mulher muito atraente, com a pele de um exótico tom oliva, longos cabelos muito negros, lábios carnudos, olhos penetrantes, pernas longas e cintura fina. Em suas apresentações ela usava o cabelo e os trajes ao estilo das dançarinas andaluzes, com cores brilhantes e muita renda. Conhecia, inclusive, uma série de palavras da língua espanhola, que usava em suas apresentações. Ela era frequentemente convidada a partilhar da companhia de muitos homens com algum dinheiro e fazia bom proveito disso.

Em alguns momentos da minha vida eu almejei que alguma das mulheres fosse abençoada com um filho. Aos dezessete, elas já me faziam alguma troça, dizendo que logo seria eu a decidir se queria ou não dar ao nosso grupo uma nova criança. E, de fato, acredito que isso realmente teria acontecido se não fosse por uma virada bastante brusca em meu destino.

Algumas vezes eu pensava que gostaria de tentar algo diferente da vida no circo. Como disse, eu almejava um companheiro inteligente, com muito conhecimento e a mente aberta, mas não tinha nenhuma meta para encontrar esse homem ideal. Eu pensava que talvez pudesse trabalhar em algum teatro fixo, com espetáculos maiores, mas não cheguei a levar essa ideia em frente, pois era muito ligada a minha família. Talvez o tivesse feito com mais alguns anos... Quem pode saber como teria sido?

Não sei se teria sido melhor. Talvez. Não sinto vontade de abandonar este mundo, mas acho que não teria me importado em morrer com... Não sei... Sessenta anos? Acho que teria vivido o suficiente. Provavelmente não teria tido algumas das minhas melhores experiências, coisas com as quais a maioria das pessoas apenas podem sonhar, mas... Acho que eu ainda sinto falta dos doces. É, eu sei, também ri. Mas saiba que há verdade nessa frase, os doces representam muito mais: deitar na grama e aquecer-se ao sol num dia de primavera, o sabor das coisas, o corpo docemente cansado e úmido de suor após uma noite de amor... Sim, eu trocaria, sem titubear, minha eternidade e meus anos na corte por um tempo limitado da mais pura humanidade. Mas, meu tempo de escolher já se foi...

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