Eu caminhava lentamente pelo corredor principal da mansão, o mármore frio sob meus pés, o brilho dos lustres e a riqueza silenciosa daquele lugar, me faziam sentir ainda mais deslocada, cada passo meu, era acompanhado pela sensação de estar sendo observada por algo invisível, talvez os fantasma de um passado que eu ainda não conhecia, suas paredes espessas e corredores enormes que pareciam respirar, era como se a casa, tivesse vida própria, eu não pertencia aquele mundo. O cheiro da madeira antiga misturado com o jasmim que vinha do jardim invadia meus sentidos, mas não trazia conforto, aquele lugar me desconcertava, muito bonito, rico, enorme mas frio demais.
- Anna, seu quarto é a direita, hóspedes não são permitidos andar pela ala leste, recomendo que não se esqueça – disse Elena apontando para o local
O tom de voz da Elena era claro, existiam regras nessa casa, que não deveriam ser quebradas.
Eu assenti com a cabeça, mas minha atenção estava no vulto que se movia à frente, Enzo. Seu olhar era cortante, como se pudesse enxergar além de minhas palavras, dentro de minha alma. Desde minha chegada, ele me olhava com olhar cheio de julgamentos e algo a mais que eu ainda não sabia identificar. Ficou parado com uma mão no bolso e olhar fixo em mim, como se me atravessasse inteira, sem mover um músculo se quer, como se de alguma forma ele arrancasse todas as camadas que eu lutava para manter intactas, como se soubesse o que eu escondia, até de mim mesma.
- Ele sempre parece que vai morder, mas cuidado, ele também sabe seduzir antes de atacar – comentou Elena ao notar o que eu encarava, deixando um aviso no ar
Naquela noite, durante o jantar, a sensação de ser observada voltou. Os Montanari tinham o costume de se reunir no salão principal, uma longa sala com janelas altas e tapeçarias de cenas bélicas italianas, os criados andavam em silêncio e a comida vinha em porcelana branca com filetes de ouro, mais parecia um ritual do que uma refeição. Percebi mais um detalhe, Enzo era respeitado, mas também temido. Seu pai falava pouco, mas era claro que o jovem tinha poder naquela casa, mais do que um herdeiro, ele parecia um general silencioso, postura impecável, terno escuro e uma taça de vinho entre os dedos, ele pouco falava, mas seus olhos não me deixavam em paz, era como se me estudasse, cada gesto mínimo estava sendo registrado.
Durante o jantar, nosso olhos se cruzaram novamente, era impossível desviar de seu olhar enigmático, ele não disse nada e muito menos sorriu, mas tinha uma tensão, um desejo e havia uma raiva contida em seus olhos também, que eu ainda não compreendia, um toque invisível percorreu minha espinha, fazendo-me arrepiar por inteira, e um calor subindo pelo corpo, não era medo, era algo denso e profundo que se alojava em mim fazendo a pulsação ficar descompassada e quase sem ar, uma energia densa, quase sexual se instalava entre nós, um magnetismo que me puxava sem meu consentimento.
- Está tudo bem Anna – perguntou Elena, notando minha respiração acelerada
Assenti mesmo que meu corpo gritasse o contrário.
Enzo desviou o olhar, mas apenas para mexer o vinho em sua taça, como se ainda me tivesse sob controle.
Durante todo o jantar falava pouco, mas quando Vittório dirigia-se a ele sobre negócios o tom da sala mudou.
- A questão de Milão ainda está em aberto, preciso que resolva até a próxima semana – disse o patriarca
- Já estou em contato com os russos, a resposta virá no tempo certo – respondeu Enzo sem tirar os olhos do prato
A autoridade em sua voz era diferente, não era forçada, era como a de alguém que nasceu para mandar, mesmo o próprio pai, patriarca da família, o escutava com silêncio respeitoso.
Enzo era mais que o filho respeitado, ele de fato era o general daquela casa, o homem a quem todos respondiam, e eu estava sentada á sua frente, sendo despida sem um único toque.
Mais tarde, sozinha em meu quarto, a casa parecia ainda mais silenciosa, deitei mas não dormi, o rosto de Enzo ficava passando em imagens cortadas pela minha cabeça, aqueles olhos verdes enigmáticos, a forma como seus dedos seguravam a taça, como se controlasse o mundo com uma única mão.
Fechei os olhos e respirei fundo, pensando por que ele me deixava assim, nunca acreditei em química instantânea, nunca cedi a olhares que me despiam, mas ele tinha algo que quebrava as barreiras da lógica, algo que me fazia desejar sem entender.
Sem conseguir pegar no sono, me levantei para buscar água, cruzei o corredor principal, envolta apenas em um robe leve que trouxe na mala e então o vi de novo. Enzo, na varanda lateral, camisa aberta, olhos fixos no céu, a brisa fazia o tecido balançar levemente, ele segurava um copo de uísque e não parecia surpreso com a minha presença, virou-se lentamente, o corpo delineado sob a luz pálida da lua.
- Perdeu o sono – perguntou em voz baixa
- Sim, a casa faz isso comigo - respondi, aproximando-me da moldura da porta
Ele deu um sorriso de canto, perigoso e indecifrável
- A casa faz isso com todos, a diferença, é que você sente mais fundo
- E você percebe isso
- Eu vejo o que os outros fingem ignorar.
A tensão entre nós era palpável, como se o ar se comprimisse entre uma frase e outra, não sabia se fugia ou se dava mais um passo.
- Você sempre olha assim – perguntei, com mais coragem do que imaginei
- Só quando algo me intriga, e você Anna, me intriga – respondeu dando um gole no uísque
Meu coração batia como se uma bateria tivesse tocando, o silêncio que seguiu, dizia mais do que qualquer frase.
Naquele momento, Enzo deu um passo em minha direção, mas não me tocou, apenas ficou ali, perto o suficiente para que eu sentisse seu calor, e o cheiro amadeirado de sua pele dourada.
- Cuidado, Anna, algumas portas dessa casa não se abrem e outras podem se fechar atrás de você pra sempre – disse em sussurro rouco em meu ouvido
E então, passou por mim, roçando seu braço no meu, causando um arrepio instantâneo, me virei devagar assistindo-o desaparecer no corredor.
Sem promessas, sem explicações, mas com a certeza de que nada na mansão Montanari seria simples, a começar por ele.