Adeus ao Tio Henrique
A garoa fina caía sobre o cemitério da Consolação, em São Paulo, como se o céu compartilhasse da dor de Ana Luísa. O murmúrio das orações parecia ecoar dentro do peito de Ana Luísa, como se cada palavra recitada pela voz embargada do padre tocasse uma corda tensa e sensível em seu coração. O caixão, de madeira escura e acabamento clássico, repousava no centro da capela da Ordem de São Jerônimo, envolto por coroas de flores com laços dourados e homenagens que pareciam frias diante do calor das memórias que ela guardava daquele homem. Sentada no primeiro banco, Ana Luísa mantinha as mãos unidas sobre o colo. Seus dedos estavam úmidos de suor, e os olhos, fixos, sem piscar, pareciam presos em um passado que agora se tornava definitivo. A brisa da manhã entrava pelas janelas abertas, mas nada aliviava o peso abafado no ar. Ele não merecia partir assim… tão sozinho. Murmurou, mais para si mesma do que para os que a cercavam. — Ele partiu como viveu, Ana, cercado de silêncio. Respondeu Dona Isaura, antiga governanta da família Vasconcellos, que havia cuidado de Enrique nos últimos anos. Seus olhos estavam marejados, mas sua voz carregava aquela firmeza serena de quem vira muita coisa no correr dos anos. Ana assentiu, lutando para conter a dor que a rasgava por dentro. Não era apenas luto. Era culpa. Culpa por não ter ido vê-lo mais vezes nos últimos meses. Culpa por ter deixado que a vida corrida em São Paulo engolisse os laços que um dia a mantiveram próxima daquele homem que, para ela, havia sido muito mais que um parente distante. Foi ele quem lhe ensinara a ler, quem lhe contava histórias nas tardes chuvosas da infância e que, com um simples levantar de sobrancelhas, fazia calar qualquer injustiça. Enrique Vasconcellos era uma figura imponente, mas tinha no coração uma ternura escondida que apenas os que olhassem com atenção conseguiriam enxergar. No canto oposto da capela, os demais membros da família pareciam mais interessados em cochichos discretos do que na cerimônia. O primo Eduardo, vestido impecavelmente num terno sob medida, mexia impacientemente no relógio de pulso. Seu olhar se cruzou com o de Ana por um instante, mas o que deveria ser empatia ou acolhimento, foi apenas indiferença. — Acha que ele deixou algo além de lembranças? Sussurrou Eduardo à esposa, que tentava disfarçar o tédio. — Duvido que haja herança relevante. Aquele casarão velho em Vale das Rosas é mais um fardo do que qualquer coisa. Ana ouviu, mas permaneceu em silêncio. Não era o momento para confrontos, embora já sentisse a tensão pairando como um vulto sobre todos eles. Quando o padre finalmente deu por encerrada a cerimônia, Ana se aproximou do caixão. Suas mãos, trêmulas, repousaram sobre a tampa envernizada. Vestida de preto, ela permanecia imóvel diante do jazigo aberto, os olhos fixos no caixão de madeira escura que abrigava o corpo de seu tio-avô, Henrique Vasconcellos. O som abafado da terra sendo lançada sobre o caixão misturava-se ao murmúrio das orações, criando uma sinfonia melancólica que ecoava em seu coração. Henrique não era apenas um parente distante; era seu confidente, mentor e, em muitos momentos, a figura paterna que lhe faltara. As lembranças das tardes passadas na biblioteca da antiga casa dos Vasconcellos, onde ele lhe contava histórias sobre política, ética e justiça, invadiam sua mente. A dor da perda era profunda, um vazio que palavras não podiam preencher. Ao seu redor, os membros da família exibiam expressões contidas, mais preocupados com as aparências do que com a perda em si. Murilo Vasconcellos, seu primo e atual CEO do império familiar, mantinha uma postura rígida, como demostração de poder, os olhos ocultos por óculos escuros, como se quisesse esconder qualquer traço de emoção. Outros parentes trocavam sussurros discretos, já especulando sobre o testamento e a divisão dos bens. Após a cerimônia, Ana Luísa caminhou lentamente até a saída do cemitério, sentindo-se sufocada pela atmosfera de hipocrisia. O som de passos apressados atrás dela a fez virar-se. — Ana, espere! Chamou Murilo, alcançando-a. — O que foi? Respondeu, sem esconder o cansaço na voz. — A leitura do testamento será amanhã, às dez, no escritório do doutor Álvaro. Espero que compareça. — Estarei lá. Murilo assentiu e afastou-se, deixando Ana Luísa sozinha com seus pensamentos. Na tarde seguinte… A tarde caiu sob um céu turvo quando os herdeiros se reuniram no antigo escritório da família em São Paulo para a leitura do testamento. O advogado da família, Dr. Maurílio, organizava os papéis sobre a mesa de mogno como se manipulasse peças de xadrez. — Como vocês sabem, o senhor Gregório Vasconcellos deixou este documento registrado há seis meses, em total sanidade mental, diante de testemunhas anunciou ele, encarando a sala lotada com sobriedade. — Suas vontades foram claras, e caberá a mim apenas lê-las com exatidão. Todos se remexeram em seus lugares. Ana Luísa, vestida ainda de preto, cruzou as pernas, mantendo a postura ereta. Eduardo, sempre com ar de superioridade, recostou-se como quem já esperava por pouco. — Aos meus sobrinhos e sobrinhas, deixo cotas de participação nas empresas da família. —Ao meu sobrinho Eduardo Vasconcellos, deixo o acervo de obras raras e minha coleção pessoal de vinhos — disse o advogado, arrancando sorrisos contidos do primo. Maurílio então pigarreou antes de continuar. — E à minha sobrinha-neta Ana Luísa Vasconcellos, deixo o imóvel localizado em Minas Gerais na cidade de Vale das Rosas, onde vivi parte da juventude. Um silêncio cortante caiu sobre a sala. — O quê? Eduardo se levantou de súbito. — Você só pode estar brincando, doutor. Dar aquela ruína para a Ana? Ela sequer tem tempo para isso! Tem uma carreira. Uma vida em São Paulo! — Está tudo aqui, redigido de próprio punho. Respondeu o advogado, imperturbável. — Trata-se de um desejo pessoal, e irrevogável. Ana não disse nada. Apenas fechou os olhos por um segundo, tentando processar o que acabara de ouvir. Algo dentro de si acendeu. Uma faísca. Não era pelo valor da propriedade. Era o tom das palavras. Era o mistério. O chamado. E de certa forma era como se Gregório ainda estivesse lhe dizendo algo. Mais tarde, sozinha em seu apartamento, Ana Luísa encarava a chave dourada em sua mão. Havia um pequeno brasão gravado, antigo e desgastado. Seus olhos estavam pesados, mas a mente desperta, girando entre memórias e perguntas. Seu celular vibrou. Era uma mensagem do ex-noivo. Apenas uma linha: “Podemos conversar?” Ela apagou a mensagem sem responder. O luto, a traição, a revelação tudo agora se misturava num só caminho. E ele começava em Vale das Rosas. — Eu vou descobrir tudo que você quer me contar, meu velho, Eu prometo! Sussurrou, antes de se afastar com os olhos marejados. Ela presentia que aquele seria apenas o início de uma jornada que a levaria a confrontar verdades há muito enterradas.