Chegada a Vale das Rosas
A estrada sinuosa cortava o interior de Minas Gerais como uma cicatriz antiga no corpo da serra. O carro preto avançava lentamente, embalado pela voz suave de Elis Regina no rádio cantando Encontros e Despedidas. Ana Luísa observava a paisagem que se desenrolava pela janela, deixando-se envolver por uma melancolia densa e silenciosa. Era como voltar no tempo, como se cada curva da estrada a levasse não apenas a um lugar esquecido, mas a uma parte de si mesma que ela preferia manter adormecida. Viviane, sua tia paterna, dirigia com firmeza, os olhos fixos na estrada e a boca cerrada em uma linha tensa. Sempre fora assim: Contida, prática, áspera nas palavras e cuidadosa nos gestos. Ana Luísa sabia que a tia havia concordado com a viagem apenas por lealdade ao irmão falecido,quase um pai para Ana. Entre elas, o carinho sempre fora discreto, quase formal, mas carregado de um respeito inquebrantável. — Você não precisava vir, tia. Disse Ana, tentando romper o silêncio incômodo. — Claro que precisava. Você não conhece aquela casa direito. E não confio em deixar você sozinha naquele lugar. É isolado demais! O tom não era de censura, mas de preocupação velada. Ana sorriu de leve. Não adiantava discutir. A presença da tia seria, no fundo, um alento. O carro seguia pela estrada de curvas fechadas entre as montanhas, cortando a paisagem silenciosa de Minas Gerais. O sol poente tingia o céu com tons alaranjados enquanto Ana Luísa observava, pela janela, os contornos do interior que tanto ouvia nas histórias da família. Ao seu lado, Viviane mantinha o foco na direção, mas vez ou outra lançava um olhar preocupado para a sobrinha. — Tem certeza que quer mesmo ficar nessa cidade, Ana? Perguntou, com a voz suave, porém carregada de apreensão. — Esse lugar pode trazer mais dor do que respostas. — Eu preciso entender, tia. Preciso saber o que realmente aconteceu aqui. Ana suspirou. — Não posso mais viver sem saber quem eu sou de verdade. A morte do meu tio, tudo o que ele não me contou... Viviane assentiu silenciosa. Também estava abalada. A perda de Enrique Vasconcellos, o patriarca da família, deixava um vazio difícil de preencher. Ainda mais agora, com os segredos começando a emergir como fantasmas antigos. E Ana, tão parecida com ele, herdara mais do que traços físicos. Herdara o fardo. Quando finalmente cruzaram o pequeno portal de madeira que dava acesso à cidade de Vale das Rosas, uma sensação desconfortável se instalou no estômago de Ana. Ao passarem pela placa de madeira envelhecida. “Vale das Rosas – Fundada em 1857” Um calafrio percorreu a espinha de Ana. A cidade parecia parada no tempo. As ruas de paralelepípedos, as fachadas coloridas e descascadas, os moradores sentados em cadeiras nas calçadas… Tudo parecia saído de um tempo esquecido. Uma vitrine de memórias mal resolvidas. Casas coloniais com janelas azuis, calçadas de pedra e uma praça central com coreto ao fundo. Tudo parecia bonito e decadente ao mesmo tempo. Um lugar onde o tempo guardava lembranças boas e ruins. Pararam em frente a uma pousada. Já haviam feito as reservas com antecedência Ana e sua tia Viviane sabiam que a casa não estaria habitável. Enquanto descarregavam as malas, uma figura surgiu na calçada, descendo com passos firmes. Era um homem de estatura alta, ombros largos, cabelo castanho bagunçado e uma barba por fazer. Seus olhos castanhos escuros traziam algo mais profundo que simples curiosidade. — Você deve ser Ana Luísa Vasconcellos. Disse ele, sem estender a mão. — Rafael Linhares. Jornalista. — Sim. E o que exatamente faz aqui, senhor Linhares? — Só vim ver com meus próprios olhos. Não é todo dia que uma Vasconcellos volta pra cá. O tom dele era ácido, mas o olhar revelava algo mais. Ana manteve-se firme. Havia em Rafael uma aura de desconfiança e um outro sentimento intenso, como se ele esperasse que ela fosse fugir a qualquer momento. Mas ela não fugiria! — Voltei porque quero entender o que minha família fez com essa cidade. E se tiver algo que eu possa reparar, eu vou fazer. — Vai mesmo? Ele cruzou os braços. — Meu pai desapareceu tentando fazer isso. Viviane interferiu, visivelmente incomodada com o rumo da conversa. — Ana, por favor, vamos entrar. Essa discussão não precisa acontecer agora. Rafael deu um passo atrás, mas não sem antes encarar Ana com um olhar que oscilava entre rancor e curiosidade. — Só um aviso: Essa casa guarda mais do que poeira. E mexer nisso pode custar caro. Ana respondeu com um leve aceno, sem desviar os olhos dele. Havia tensão no ar. Mas também algo que ambos não sabiam explicar uma atração primitiva, marcada por palavras duras e silêncios intensos. Ela observou Rafael se afastar pela calçada de pedra, os ombros tensos e as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Não sabia ainda, mas aquele homem se tornaria mais presente em sua vida do que jamais poderia imaginar. — Como alguém consegue esconder tanta coisa por tantos anos? Murmurou. — Seu tio tentou protegê-la. E a mim também. Disse Viviane, entrando logo atrás na pousada. — Mas talvez o silêncio tenha custado mais caro do que ele pensava.