O funeral de André foi o ápice da montanha-russa de sentimentos que acompanhava Luana desde o dia em que recebeu a ligação do hospital informando que André havia dado entrada em estado grave. Ela se manteve firme durante toda a cerimônia, até o momento em que precisou cumprimentar Sheila. Sabia que precisava fazê-lo, mesmo ciente de que Sheila nunca simpatizou com sua proximidade com André. Após a confissão dele no leito de morte, Luana começou a se perguntar se Sheila já desconfiava dos sentimentos de André por ela, e se por isso era tão hostil.
Ao sair do cemitério e entrar em seu carro, Luana precisou de alguns minutos para se recompor depois de tanta emoção. Estava perdida em seus pensamentos quando ouviu uma batida no vidro e se virou, sobressaltada
A mulher do outro lado acenava, esboçando um meio sorriso. Logo a reconheceu e abriu o vidro.
- Me desculpe incomoda-la, mas és a única pessoa que achei que poderia falar sem receio.- Ela fala logo que a barreira de vidro desaparece.
- Ola. Entre por favor.- Luana fala e destranca a porta do lado do passageiro.
A mulher da a volta e abre a porta. Ela senta, e sacode o guarda-chuva do lado de fora, tentando diminuir a agua para coloca-lo no interior da viatura sem molhar tudo ao redor.
- Não se preocupe, não tem como não molhar o carro. Feche a porta e coloque-o no tapete.
A mulher sorriu e obedeceu. Depois seguiu-se um silencio constrangedor e nenhuma das duas parecia ter vontade de quebra-lo.
- Eu sou a Jéssica. Me desculpe aborda-la desta forma...eu... precisava falar com alguém depois...tu sabes...o funeral...- A mulher falou por fim, bastante hesitante.
- Eu sei quem és.- Luana falou, sem se importar se ela já havia terminado de falar.
Jéssica olhou para Luana , seus olhos arregalados de espanto.
- Como...pensei que...- E Jéssica ficou sem palavras novamente.
- Vi-te algumas vezes com o André e o questionei a respeito e ele falou-me de si...- Luana esclareceu.
- Bem...então não preciso de ir aos detalhes. Mas eu queria saber o que aconteceu. Eu só vi o anúncio do funeral no jornal e não tinha a quem perguntar. Vim na esperança que pudesse ter respostas, para ter um desfecho...custa-me acreditar que ele tenha realmente...- Ela levou a mão a boca como se isso fosse impedir a palavra de sair e tornar tudo mais real.
- Foi um acidente. Infelizmente ele não sobreviveu as lesões contraídas com o embate.- Luana falou e tentou o máximo não demonstrar o quanto a afectava falar sobre o assunto.
Fez o possível para manter seu tom de voz firme e audível e sua expressão no rosto completamente serena. Mas por dentro seu coração sangrava ao lembrar daquela noite, do momento em que viu André debilitado sobre a cama do hospital.
- Obrigada .- A voz de Jéssica a fez voltar ao presente e ela respondeu apenas com um aceno de cabeça, temendo não conseguir manter a postura fria e distante se abrisse a boca.
Ela conseguia ver os olhos de Jéssica brilhando com as lágrimas que se formavam e lentamente começavam a escorrer pelo seu rosto.
- Nós éramos bons amigos, coloridos claro. Eu não queria um compromisso e nem ele. Talvez por isso nos entendíamos tão bem.
- Eu sempre me perguntei o que uma mocinha como tu fazia com um homem casado quando podia ter um rapaz da sua idade só para ela.- Luana comentou quase num sussurro.
- Não sou tão nova assim. tenho boa genética e já tive a minha quota de mocinhos da minha idade que nada mais faziam senão mentir que era só a mim que queriam. Apenas cansei de me iludir e resolvi aceitar a verdade como ela é. Ninguém é de ninguém, pessoas não são objectos que alguém possa reclamar direito de posse.
Luana olhou para Jéssica, e agora ela é que estava espantada. Não esperava ouvir aquele discurso. Esperava ouvir uma mulher apaixonada, com esperanças vãs que o amante fosse deixar a família por ela. Isso era o mais comum.
- Não precisa olhar-me desse jeito. Como disse, não sou tão nova assim...- Jéssica fala e esboça um meio sorriso que contrasta com a marca das lágrimas em seu rosto.
- Me desculpe, é que...bem...confesso que não esperava ouvir o que acabaste de dizer. Então, deixa ver se percebi, tu não queres um relacionamento, é isso?
- Mais ou menos. Eu sei que não encontrarei esse homem perfeito que será fiel.Então só não quero que me mintam. Eu gosto da minha liberdade e sou feliz assim. Mas claro que quero alguém, um amigo, um amante... mas sem amarras, sem promessas, sem compromisso.
- Uau! E isso funciona? Como gerir os sentimentos??- Luana estava curiosa.
- Para mim tem funcionado. O melhor é não se apegar demasiado.
- Eu prefiro não dar espaço de todo. Mais vale só que mal acompanhada.- Luana desabafa.
- Como assim sozinha? Tu não...- Jéssica inicia a pergunta mas logo se apercebe que está a entrar em território proibido.
E a expressão no rosto de Luana só confirmou suas suspeitas.
- Bem, a chuva parou e eu já devia estar a caminho do trabalho. Obrigada por tudo.-Jéssica tenta desconversar.
- De nada. Tenho certeza que não será a última vez que nos cruzamos.- Luana fala enquanto destranca as portas do carro.
- Sim, a cidade é pequena. Até a próxima Luana.
Jéssica abre a porta do carro e sai em seguida, levando consigo seu guarda-chuvas já seco.
A porta fecha e Luana se viu novamente sozinha em seu carro. Ela já estava tão habituada a solidão que se sentia bem melhor em sua própria companhia. Girou a chave na ignição e o som suave do motor do Hyundai Santa-Fé invadiu o espaço. Em seguida o aparelho de som do carro ganha vida e uma suave melodia se sobrepõe ao som do motor.
Luana respirou fundo antes de engatar a marcha no "D" e sair lentamente do estacionamento em frente ao cemitério. O silêncio dentro do carro era quase reconfortante, contrastando com o turbilhão de emoções que ainda pulsava em seu peito.
Um sorriso irônico escapou ao lembrar da cena das quatro mulheres frente a frente no túmulo de André. Era impossível não imaginar o próprio André se divertindo com a situação, rindo daquele jeito exagerado e com o humor negro que sempre o acompanhou.
— Se tivesses planeado a tua morte, não conseguirias que fosse tão perfeitamente doloroso. Espero que estejas te divertindo assistindo tudo daí de cima.
Luana murmurou as palavras como uma prece, uma conversa íntima com o amigo que partiu, sentindo-se por um instante acompanhada na solidão do carro. Em seguida, abanou a cabeça e soltou uma gargalhada breve, uma risada que misturava alívio e incredulidade, enquanto dirigia em direção à sua casa. Pela primeira vez em dias, sentia que talvez conseguisse, enfim, ter uma noite tranquila de descanso após tanto desgaste e tensão