Dois dias haviam se passado desde o trágico acidente que ceifou a vida de André, e o peso da perda ainda pairava pesado no ar. Após longas e tensas reuniões familiares, onde cada membro influente tentava impor sua vontade sobre os detalhes da cerimônia, enfim o funeral seria realizado. Naquela manhã, a chuva caía em torrentes, como se o próprio céu vestisse luto, tingindo o mundo de um negro profundo que refletia a dor dilacerante dos que ficaram.
A chuva não apenas acompanhava o pranto dos enlutados, mas também agia como um filtro cruel, afastando aqueles que só buscavam aumentar o número de presentes ou alimentar a próxima fofoca. Dizem que a morte desnuda as verdadeiras faces das pessoas, revelando segredos ocultos e, muitas vezes, desencadeando escândalos. Contudo, naquela manhã sombria, a tempestade impiedosa limitou a cerimônia a poucos, tornando-a um momento de recolhimento e silêncio forçado, onde a dor falava mais alto que qualquer murmúrio maldoso.
O preto do luto parecia quase camuflado sob o mar de guarda-chuvas coloridos que se abriam contra a chuva incessante, formando uma tapeçaria vibrante e trêmula ao redor da última morada de André. O cemitério, um campo amplo e silencioso, era marcado por árvores altas e sombrias cujas folhas pareciam absorver a tristeza do dia, enquanto o solo úmido exalava o cheiro pesado da terra recém-remexida. O túmulo, uma abertura escura e silenciosa na terra, aguardava o descanso final do homem que partia.
Sheila, imóvel e sem forças para derramar mais lágrimas, observava o caixão descer lentamente, como se cada centímetro fosse um golpe em seu peito. Suas pernas fraquejaram, e ela quase perdeu o equilíbrio, prestes a seguir a urna naquele caminho final. Foi Denise quem a segurou a tempo, impedindo que Sheila se entregasse à dor de forma tão absoluta, evitando que ela fosse sepultada junto com seu esposo, mesmo que seu coração já estivesse enterrado ali.
Do lado oposto, Luana permanecia ereta, mesmo sob o peso da dor que a consumia por dentro. Vestida com um elegante tailleur preto, impecavelmente alinhado, ela mantinha a postura firme e segura de uma advogada de sucesso, transmitindo uma força silenciosa que contrastava com o turbilhão de emoções que tentava esconder. Seus cabelos escuros estavam presos com discrição, e os óculos escuros ocultavam seus olhos vermelhos, protegendo-a dos olhares curiosos e das perguntas não ditas.
Ela sabia que não era bem-vinda ali, que sua presença causava desconforto, mas nada disso a impediria de se despedir do único homem que amou verdadeiramente. Enquanto o caixão descia lentamente, levava consigo o coração de Luana — um coração que sempre pertenceu a André, mesmo quando tudo ao redor conspirou para nunca ficarem juntos.
Os três filhos do finado estavam rodeados e protegidos pelos familiares de André. Apesar de ser o único rapaz, Júnior chorava mais que suas duas irmãs mais novas. Ele tinha uma ligação muito forte com seu pai, apesar de não morar com ele. As meninas se pareciam com a mãe, esgotadas e sem mais lágrimas para derramar, depois de mais de 24 horas submersas em tanta dor.
Érica segurava-se para não ir arrancar seu filho e abraça-lo. Sabia como a família de André era difícil, dois anos casada com ele foi suficiente para aprender a não desafia-los. Teve que fazer das tripas coração e ver seu filho ser consolado por outros.
Os cânticos lentos e próprios para a ocasião eram entoados um atrás do outro enquanto os coveiros faziam seu trabalho. E alguns minutos depois a sepultura estava totalmente coberta de arreia, o caixão escondido há sete palmos.
O Pastor faz sinal para que todos se calem e faz uma oração , encaminhando a alma do defunto para junto do Criador. Em seguida corroas de flores são cuidadosamente colocadas sobre a sepultura. Sheila não consegue mais manter-se em pé e desta vez Denise não a consegue segurar a tempo. Ela ajoelha-se e coloca a rosa branca que trazia consigo e sussurra baixinho.
- Me perdoa André. Se eu pudesse... me perdoa.
Lágrimas inesperadas escorriam pelo rosto dela, como se viessem de um lugar profundo e desconhecido. Num gesto desesperado, ela se lançou sobre a sepultura, chorando copiosamente, entregando-se à dor que a consumia. Denise tentou puxá-la para longe, mas quase perdeu o equilíbrio junto com a amiga. Ao redor, algumas mulheres abanavam a cabeça em desaprovação, cochichando entre si, enquanto do outro lado a mãe de André desmaiava, sendo amparada por duas tias aflitas.
A tensão pairava pesada no ar, e só depois de um tempo a calma começou a retornar ao ambiente. O Pastor, ciente do risco de um novo colapso, fez a última oração com voz firme, encerrando a cerimônia antes que o sofrimento explodisse novamente.
As pessoas começaram a se dispersar — os menos próximos, colegas de trabalho, amigos e conhecidos — enquanto a chuva insistia em cair sem trégua, tornando inúteis até os guarda-chuvas encharcados. Ao redor da sepultura, no entanto, permaneciam cinco mulheres, cujos olhares se cruzavam intensos, carregados de emoções contraditórias. Elas se encaravam como em um duelo silencioso, a tensão entre elas tão palpável quanto a cena de um filme de faroeste, onde cada uma guardava segredos, dores e verdades não ditas, prestes a explodir naquele instante decisivo.
- Eu não acredito que ela teve coragem de aparecer.- Denise resmunga, olhando para Luana.
Luana aproxima-se da sepultura e agacha, depositando a rosa amarela que trazia na mão. Levanta-se e olha para Sheila, ignorando o olhar matador que Denise lhe dirige.
- Meus sentimentos , Sheila.- Ela fala em seguida, com firmeza que constrastava com o turbilhão de emoções dentro dela.
- Obrigada.- Sheila responde, para surpresa de Denise que vira para amiga com os olhos arregalados.
Luana afasta-se então, e segue a multidão que já estava há alguma distancia.
Érica aproxima-se em seguida e olha para Denise por um segundo e depois volta sua atenção para Sheila.
- Meus pêsames.
- Obrigada.- Sheila responde e estende a mão para Érica que aceita. Mas decide aproximar-se mais e abraça-la. Ficam assim por alguns segundos e depois afastam-se. Despedem-se com olhar e Érica segue seu caminho.
A última mulher então aproxima-se.
- Quem é essa mulher?- Denise questiona num sussurro.
Sheila apenas solta um longo suspiro, sentido-se vencida pelo cansaço e tensão daquele dia.
- Meus sentimentos.- Diz a mulher logo que chega perto delas.
- Obrigada.- Sheila responde mas não lhe estende a mão.
A mulher fica ali por alguns segundos, meio perdida. Ela sente que devia dizer algo mais, mas nada lhe ocorre. Hesitante, ela vira-se e repete o mesmo discurso para Denise que a olha de cima para baixo. Depois de algum tempo Denise acena com a cabeça e a mulher vira-se e caminha apressada para longe dali.
- Vamos tirar-te daqui. Ja prestaste a tua ultima homenagem e esta chuva só t trará um resfriado. Precisas estar forte para as tuas meninas.
Sheila não discute. Com passos curtos, ela começa a fazer o seu caminho para a saída. Mas vira-se uma última vez, e uma lágrima rola, enquanto ela se despede em silêncio do seu amor.