Não existe uma forma menos dolorosa de anunciar a morte. Seja ela por uma doença prolongada ou causada por um acidente que leva o nosso ente querido sem aviso, sem nos prepararmos. A dor da perda é indescritível.
Mas para Sheila a dor foi duas vezes maior. Perder o seu amor tão repentinamente, depois de uma discussão que ela preferia não ter tido e receber a notícia da boca da última pessoa que o viu em vida e que ela sabia que era na verdade a mulher que o seu finado marido amou desde sempre. Até no seu último momento André tinha que traí-la.
Era ela quem devia ter estado lá, do seu lado, nos últimos minutos. Queria ter tido tempo para pedir-lhe perdão por todas as palavras ditas no calor da briga. Queria ter tido mais tempo para concertar, para tentar uma vez mais. Suas filhas mereciam que ela fizesse esse sacrifício.
Com lágrimas nos olhos , ela torturava-se com possibilidades, o que poderia ter feito para evitar a tragédia. Seu coração , cheio de dor, batia sem força e Sheila não conseguia livrar-se da culpa. Culpa pela morte do pai das suas filhas.
Há vinte e quatro horas que não pregava o olho. Sua casa estava cheia de familiares que foram chegando a medida que tinham conhecimento da morte de seu esposo. E apesar de estar rodeada de tanta gente, ela sentia-se mais sozinha. Ela queria silencio, poder chorar sua dor como lhe apetecesse, abraçar suas filhas , consola-las. Mas ela teria que esperar para fazer seu luto como seu coração manda depois que todo o circo estivesse desmontado. Agora teria que seguir as regras da sociedade e cumprir todas as recomendações que lhe eram dadas pelos mais velhos sem questionar, sem reclamar.
Suas roupas coloridas deram lugar ao preto. E não era um preto comum, um preto carregado de energias negativas, um preto que pesava em seu corpo, que perecia arrastar-lhe para o abismo, para uma angústia que não conseguia explicar.Talvez fosse esse o objectivo, manter a pessoa com aquele semblante mórbido, cansado e pálido.
- Devias dormir um pouco.- Aconselhou , Denise, sua amiga mais fiel.
- Estou bem.- Sussurrou Sheila , mas suas palavras nem a ela convenciam.
- Não estás. Precisas estar forte para o funeral amanhã. Ou pretendes deixar tuas filhas órfãs de mãe também? - Ralhou-lhe Denise.
Sheila a olhou chocada com suas palavras duras. Sua amiga nunca foi de subtilezas, falava o que lhe ia a cabeça sem se preocupar se feria sensibilidades ou escandalizava as pessoas ao seu redor. Era das qualidades que Sheila mais gostava nela, sua sinceridade.
- Nem adianta olhar para mim. Vamos, é melhor ficares no quarto das miúdas. Elas saíram com tua mãe, precisavam ficar fora deste ambiente por algumas horas então está vago para ti por algumas horas.
Sheila olhou em redor, pensando como sairia dali. Seu quarto estava transfigurado. Cortinas fechadas, a cama levantada e encostada em uma das paredes e um mar de colchoes espalhados por todo o quarto onde várias mulheres estavam sentadas ou deitadas. Ela e Denise partilhavam o mesmo colchão e sua amiga fazia questão de não larga-la nem por um minuto. Sheila estava-lhe grata por isso.
Denise ergueu-se do chão e ajustou suas roupas e olhou para ela, esperando que fizesse o mesmo. Agora todos os olhos estavam atentos nas duas, e Sheila congelou no lugar.
- Vamos.- Sussurrou sua amiga fazendo um sinal com a cabeça.
- Para onde vão?- Perguntou uma das tias de seu falecido marido e Sheila encolheu-se ao som da voz grave daquela mulher que parecia um verdadeiro general.
- Vamos a casa de banho.- Denise mentiu por ela e estendeu a mão para ajuda-la a levantar.
- Volte logo, em poucos minutos chegam as senhoras lá da minha igreja para fazer orações. Tens que estar presente.- Lembrou-lhe a tia Madalena.
- Sim tia.- Denise respondeu sem perder tempo.
Parecia que um peso havia sido retirado de suas costas quando atravessou a porta do quarto e se viu no corredor. Subiram as escadas, olhando de um lado para o outro para ter certeza que ninguém as via desviarem-se do caminho.
- Já te disse que aquela senhora mete-me medo?- Desabafou Denise depois que as duas entraram no quarto das filhas de Sheila.
- A mim também. Nem sei como consegui ter forças para sair dali.- Sheila falou e as duas amigas riram-se.
- Estavas a precisar de relaxar. Vês até conseguiste rir um pouco. Aquele quarto parece estar a consumir toda alegria dentro de mim. Todas aquelas caras franzidas e fechadas parece que sugam a vida para fora do meu corpo. - Denise fala , gesticulando dramaticamente.
Sheila riu-se novamente e depois colocou a mão na boca, tentando abafar o som da sua voz. Se alguém a ouvisse rir um dia após a morte de seu marido podiam começar a criar intrigas.
- Não me faças rir. Sabes como a família do André é difícil. Não quero dramas, quero que tudo isto termine e todos voltem as suas vidas.
- Gosto do teu optimismo. De que tudo termine sem incidentes. Isto já começou com dramas, meu amor. Só da outra "zinha" ter ligado para informar-te da morte do teu marido já é conteúdo suficiente para um drama mexicano. O que fazia ela com ele? Não sei de que matéria és feita para aguentar aquela mulher em tua vida.
- Ela era amiga do André desde a infância. O que querias que fizesse? Que o obrigasse a cortar a amizade?- Sheila respondeu .
Mas ela , melhor que ninguém , sabia que o buraco era mais em baixo. Não tinha coragem para contar a verdade nem a sua melhor amiga sobre aquela noite maldita. Do motivo da briga que terminou em tragédia.
- Não preciso lembrar-te porquê nós duas não gostamos dela. Mas hoje não é dia para isso. Espero que ela tenha a decência de não dar as caras por aqui.
- Tens razão, não é dia para isso. Viemos aqui para que eu pudesse descansar antes que nos procurem para mais orações.
- O mais engraçado é que André não punha os pés em uma igreja desde que vocês casaram. E hoje é um entra e sai de beatas a virem orar pela alma dele.- Denise fala em jeito de deboche.
- Para Denise! Orar pela alma dele é o mínimo que posso fazer. Se eu não tivesse iniciado aquela briga, se eu... - Lágrimas se formam nos olhos de Sheila ao lembrar dos últimos momentos que teve com André.- Não o devia ter deixado sair naquele estado...
- Hey!! Nada disto é culpa tua. Para de se martirizar. Foi um acidente, Sheila.
- Mas porquê sinto o peso da culpa??- Sheila desabafa, finalmente, e deita-se na cama, encolhendo-se .
Denise deitou na outra cama e permaneceu em silencio. As lágrimas que escorriam pelo rosto de Sheila desaguavam na almofada encharcando-a. Ela chorou em silêncio e adormeceu um par de minutos depois, completamente exausta.