Era quase uma da manhã de uma noite fria de inverno que só ficava mais gelada a medida que a chuva miudinha teimava em não parar de cair.
O habitual silencio, sagrado e característico, da noite que inundava as ruas do condomínio de luxo , algures nos arredores da capital, tinha sido profanado por gritos , choros, palavras de baixo calão proferidas por um jovem casal. Os vizinhos, escondidos dentro das paredes das suas casas, escutavam e comentavam o escândalo. Mas ninguém se atrevia a ir la parar a loucura. Afinal, "em briga de marido e mulher ninguém mete a colher".
A gritaria cessou com o som estrondoso de uma porta a ir contra a fechadura e logo a seguir o rugir do potente motor do BMW azul escuro normalmente usado pelo homem da casa.
E houve paz...
Ou assim pensaram os vizinhos.
Mas há alguns quilómetros dali e alguns minutos mais tarde, o mesmo carro que saiu do condomínio acelerando a fundo e quase desgovernado, foi traído pelo pavimento escorregadio e pela noite escura e terminou completamente destruído no embate contra uma barreira de betão que protegia as bermas da autoestrada. O seu condutor, ainda em vida por algum milagre, foi levado as pressas para o hospital mais próximo e deu entrada em estado crítico.
Em outra parte da cidade, um celular tocava, e outra mulher era informada do fatídico acidente. Sem demoras ela pulou da cama e para fora das cobertas que a aconchegavam naquela noite fria e escura e rumou até ao hospital.
- Boa noite. Ligaram-me a informar que o André Dias havia dado entrada neste hospital.- Ela falou , aflita e angustiada, logo que se aproximou do balcão da recepção.
- É a senhora Luana? - Perguntou a mulher de rosto enrugado e alguns fios grisalhos que se encontrava do outro lado do balcão.
- Sim, sou eu.- Respondeu ela, imediatamente.
- O meu colega irá acompanha-la.- Falou a senhora, apontando para um jovem que se aproximava delas.
Ela acenou com a cabeça e seguiu o jovem vestido com um conjunto de calças e uma bata verde escuro e uma máscara cirúrgica que cobria parte de seu rosto. Atravessaram duas portas que tinha uma placa escrita " Apenas pessoal autorizado".Um calafrio atravessou seu corpo e um mau pressentimento a invadiu. Ela envolveu seus braços em seu tronco, praticamente abraçando-se e respirou fundo enchendo-se de coragem. O jovem parou em frente a uma porta e virou-se para encara-la.
- Ele está consciente, mas bastante debilitado. Não o encoraje a falar pois isso pode cansa-lo mais. Sinto muito ter de dizer isto, mas as próximas horas serão decisivas para determinar se ele sobrevive.
Ela sentiu lágrimas formarem-se em seus olhos mas, respirou fundo para impedi-las de escorrerem pelo rosto. O jovem abriu a porta e ela o seguiu, entrando no pequeno quarto que so tinha espaço para uma cama , uma cadeira que estava encostada num canto e os vários aparelhos medicos dispostos pela parede e nas laterais da cama.
Nada a preparou para vê-lo, todo desfigurado, com vários tubos ligados em seus braços e o rosto pálido. Hesitante , ela aproximou-se e tocou em sua mão. Acariciou levemente e logo em seguido o viu abrir seus olhos, lentamente.
- Luana...- Ele sussurrou, sua voz quase inaudível e entre-cortada.
- Não fales, André.- Ela aproximou-se mais e tocou, carinhosamente, seu rosto- Estou aqui. Não te deixarei sozinho.
- Vou deixa-los a sós. Se precisar de assistência é só carregar no botão vermelho na parede a sua frente.- Informou o jovem antes de abandonar o quarto.
- Eu...- Ele tentou falar, mas sua voz é cortada por um ataque de tosse.
- Fique calmo. Não precisas dizer nada. Vai ficar tudo bem.
- Não, eu preciso...eu pre...- E novamente a tosse o impede de falar e ela percebe a dor nas feições do seu rosto cada vez que ele se esforça para falar ou tossir.
- André, precisas descansar. Eu estou aqui, descansa por favor.
- Diga a Sheila ... que e-eu ..sinto muito. - Ele tenta novamente.
- Tu vais dizer tudo quando ficares melhor. Mas agora tens que poupar suas forças.
Ele aperta a mão dela e a encara, quase em desespero.
- Eu não...- E tosse novamente- Eu não fui um bom marido, Luana. Diga-lhe... que , que si-sinto muito. Promete-me...
- André por favor, não fales.
- Eu..eu sempre te amei... tu, Lu...és a mulher que sempre amei.-
Tudo que se ouviu depois foi o som ininterrupto da máquina responsável por monitorar os batimentos cardíacos do paciente.
Aquele som que anunciava a partida de mais uma alma para o além. O quarto logo foi invadido por uma equipe médica e a pobre mulher, parecia uma pena que dançava no ar, empurrada para todos os lados sob o comando do vento.
As lágrimas que ela estava conter desde que entrou naquele hospital agora caíam livremente, como os teimosos pingos de chuva que continuavam a cair no exterior. Com muito esforço atravessou a porta e se viu perdida no corredor. Sem forças para continuar, ela deixou-se cair e sentou-se no chão frio encostada a parede. Levou as mãos ao rosto e chorou.
Ela foi invadida por um misto de sentimentos , a perda do seu melhor amigo, do único homem que amou verdadeiramente. Mas chorava também pelo amor que não viveu, o amor que sempre acreditou impossível, o amor que lhe foi declarado no leito de morte, quando nada podia fazer para mantê-lo do seu lado.
Ela sentia seu coração encolher, como se seu corpo o sufocasse. O ar parecia abandonar seus pulmões e uma dor atravessar-lhe como um punhal afiado e rasgar-lhe as entranhas.
- Não...não pode ser...- Ela murmurava entre soluços.
Mas a dor só aumentava. A amizade dos dois vem de anos, cresceram juntos, vivendo praticamente lado a lado e sempre que ela precisou de um ombro amigo, de alguém que a consolasse, que a protegesse era com ele que contava. . E agora, quem a consolaria?? Quem a iria abraçar e fazer com que toda dor desaparecesse?
- Senhora, venha comigo.- Uma enfermeira aproximou-se e ajudou-a a erguer-se do chão.
- Eu não quero deixa-lo sozinho.
- Venha, os médicos estão com ele. Precisa acalmar-se. Não conseguirá fazer nada nesse estado.- Insistiu a enfermeira.
Ela não tinha forças para protestar. Limitou-se a segui-la.
Mas no fundo ela sabia que a enfermeira tinha razão, ela não conseguiria fazer o que era necessário naquele estado. E André contava com ela para que fizesse tudo. Ele a confiou seu testamento e era seu dever cuidar de tudo para que as últimas vontades dele fossem cumpridas.
O que a esperava era tão difícil quanto ver seu amor partir. Lidar com os que ficam era um desafio que ela não se sentia preparada para enfrentar. Quando André a confiou seu testamento nenhum deles pensou que ele partiria tão cedo.Ela só aceitou porque ele não se calava sobe o assunto .
- Maldito sejas , André. Maldito...- Ela praguejou dentro si e mais lágrimas escorreram em seu rosto.