Narrado por Lorde
Sou o Líder do Comando, conhecido por todos como Lorde. Tenho 32 anos e assumi o comando depois que meu pai foi preso. Poucos conhecem meu nome, apenas os mais confiáveis. Sou Gabriel, o líder mais jovem que o comando já teve, mas não se engane: não alcancei essa posição por ser filho do antigo líder, e sim pelo que sou. Naquela época, em meio ao caos da invasão dos bota, eles levaram meu pai, e minha mãe foi morta por eles. Foi um golpe avassalador. Na reunião subsequente, fui designado como líder do comando e dono da Rocinha. Já era um homem frio e calculista, mas a perda da minha coroa intensificou essa faceta. Para o mundo, sou considerado o próprio satanás, mas dentro de casa, com minha irmã, ainda sou o Gabriel. Conheço o sofrimento que ela enfrentou com todas essas mudanças, e é por isso que nossa ligação é inquebrável. Protejo-a tanto quanto ela me protege, pois somos os únicos que realmente conhecem o peso desse fardo que carregamos. A responsabilidade pesa nos meus ombros, e cada decisão é uma jogada estratégica. O respeito não vem apenas do título, mas das ações e da lealdade conquistada. Nas vielas do comando, onde a vida é medida em cada passo, eu trilho meu caminho, enfrentando desafios que moldam a minha liderança e definem o futuro do morro. Sei muito bem em quem posso confiar, e comigo não há segunda chance para pilantragem. Aqui, vagabundo não tem vez. Dizem que sou frio e que deveria ser mais carismático, mas isso é parte da minha essência, algo que não mudaria por nada e nem ninguém. Não sou de me apaixonar, e nem me lembro quando foi a última vez que isso aconteceu. Comigo, é uma experiência única e nada mais; não gosto de repetir. Hoje vai rolar um churrasco maneiro no Complexo do Alemão, e o King me chamou. Dizem que a filha mais nova dele está voltando hoje. Quem é ela? Não faço ideia, não me lembro dela. A parte complicada de ir para o morro do Alemão é lidar com Larissa e Talita, não vou mentir. Já me envolvi com as duas, e agora elas quase se matam, achando que uma delas será minha fiel. Chego no morro trajado na beca, usando uma bermuda preta da Burberry, blusa branca da Balenciaga, uma corrente de ouro no pescoço e um relógio de destaque no pulso. Ao chegar, as meninas se entreolham e logo vêm me cumprimentar, passando as mãos pelo meu corpo. Distancio-me delas, indo em direção ao King para cumprimentá-lo. Pego um whiskey, acendo um fininho e mergulho na atmosfera do churrasco no Complexo do Alemão. O funk alto e as minas jogando a bunda no chão até que é uma visão boa de onde eu estou. Uma mina que eu nunca havia visto, morena e dona de uma bunda maravilhosa, vem até mim, já sentando em meu colo. A cara de cu e desgosto das filhas do King chega até a ser engraçada. Observando a agitação e ouvindo murmúrios sobre o gelo acabando, percebi minha oportunidade para sair por um tempo. — O gelo tá acabando? — Pergunto, como quem não se importa muito. — Sim, mas já vou acionar os crias para ir buscar. — Precisa não, deixa que eu vou. Tenho que comprar uns bagulhos pra mim também e já aproveito. — Digo. Dirijo-me até o carro, solto a marcha em direção ao bar do seu Zé, onde pego o que preciso. Ao sair, avisto uma mina loirinha, com ares de patricinha, subindo o morro. Dois soldados, Fumaça e G3, a acompanham. Já faz alguns anos que não via o Fumaça. A mina, por mais atraente que seja, parece não ter brilho nos olhos, como se não enxergasse o que está acontecendo à sua volta. É um fenômeno difícil de explicar. Seu Zé, como todos no morro, observa a cena, deixando-me mais confuso. — A vida não foi fácil para ela, e aqueles olhos são a prova disso. — Diz seu Zé, ficando ao meu lado. — Quem é ela? — Pergunto curioso. — É a filha mais nova do King. Não deve estar sendo fácil voltar para cá depois de tanto tempo. Minha menina tinha um sorriso tão lindo em seu rosto; seus olhos brilhavam como duas esferas. Ao olhar para o passado, é possível até ouvir sua risada gostosa pelo morro, mas agora eu não encontro mais aquela menina. — Ele diz, indo para dentro da cozinha para preparar algo. Eu permaneço ali, hipnotizado pela cena intrigante. Olho em direção ao seu Zé, que retorna com um milkshake de ovomaltine em suas mãos. — Maitê. — Ele grita de dentro do bar. — Venha, minha menina, tenho algo que vai gostar. A mina abre um pequeno sorriso, como se alguma memória aflorasse, e em passos pequenos, ela caminha em direção ao seu Zé. Abraça-o sem dizer uma palavra, sem olhar na minha direção. Ela se senta em uma das mesas e começa a saborear o milkshake. Vejo Fumaça falando algo que não consigo ouvir e, de repente, ele se dirige a mim. — E aí, Lorde, quanto tempo, parceiro? Como tu tá? — Ah, achei que não viria me cumprimentar. — Digo, dando uma risadinha. — Tô suave, e tu? — Em primeiro lugar, a segurança dela; depois, eu cumprimento os parceiros. — Ele diz, rindo. — Tudo firmeza também. — Quando olho para a menina, nossos olhos se encontram, trazendo uma sensação estranha no peito. Fumaça, sempre com seu jeito direto, traz uma descontração ao ambiente tenso. Enquanto mantemos a conversa, observo Maitê saboreando o milkshake, sua expressão distante revelando um misto de sentimentos. — Maitê, esse é o Lorde, nosso líder do comando. — Fumaça me apresenta. Ela levanta os olhos e fixa o olhar em mim por um momento, como se tentasse decifrar algo. Cumprimenta-me com um aceno de cabeça, mas suas palavras permanecem ausentes. — Lorde, essa é Maitê, a filha mais nova do King. Voltou hoje depois de um bom tempo fora. — Fumaça explica. — Bem-vinda de volta, Maitê. — Expresso de maneira cortês, mas sua presença evoca uma atmosfera peculiar. Ela apenas acena novamente, como se a pouco se importasse. Uma energia desconhecida paira entre nós, alimentando a curiosidade e a perplexidade diante da situação. O clima tenso persiste enquanto Maitê permanece mergulhada em seus próprios pensamentos, sem revelar muito sobre seu retorno ao morro. Fumaça, percebendo que ela ficou estranha, decide se afastar e retornar à sua posição de segurança. A indiferença de Maitê em relação à minha presença destaca-se de todas as interações que estou acostumado. Pela primeira vez, não percebo qualquer sinal de curiosidade ou atenção vinda dela. Essa atitude inusitada me incomoda mais do que eu poderia ter previsto, desafiando a dinâmica habitual das relações no morro. Fico ali, observando-a de longe, tentando entender o que se passa em sua mente. Por mais que tenha vivido no morro, não consigo identificar o que ela está escondendo. Algo está ali, por trás dos olhos dela, algo que desafia minha capacidade de ler as pessoas, e isso me deixa inquieto. Será que ela está farta do morro? Ou talvez tenha algo mais que eu ainda não consigo perceber? Uma coisa é certa: o retorno de Maitê não vai ser fácil, nem para ela, nem para ninguém. E eu, Lorde, tenho um papel maior do que imaginava nesse jogo que está prestes a se desenrolar.