Ponto de vista de Kelly
O sábado chegou rápido demais. Cedo, já estava na escola para o ensaio geral do show de talentos. As crianças iam se revezando no palco, nervosas e animadas, e eu tentava coordenar cenário, figurinos e cronograma. Seria a última a sair dali antes do espetáculo, o que me deixava com pouquíssimo tempo para atravessar a cidade, me arrumar e voltar. Felizmente, Jully ofereceu sua casa ali perto para eu me trocar, o que salvava o meu cronograma.
Antes de mergulhar no caos, passei na cafeteria em frente. O café da manhã ali era o meu ritual… embora já não fosse tão agradável desde que o meu barista preferido resolvera se interessar pela Jully. Ultimamente eu só entrava, pegava o café e saía. Ele percebeu — claro que percebeu. E, desta vez, quando o movimento estava tranquilo, me chamou antes que eu escapasse.
— Oi, o que está acontecendo? — perguntou com aquele sotaque latino e olhos que faziam minhas pernas tremerem.
— Nada. Estou com pressa… — respondi seca. Mas, já que o assunto veio, arrisquei: — Como foi com a Jully?
Ele riu, balançando a cabeça.
Engoli o riso.
Conversamos mais um pouco, ele insistiu para eu experimentar um donut recém-saído do forno, e eu aceitei. Ele tinha esse jeito irresistível, quase infantil… e aqueles lábios carnudos que só pioravam a situação. Conversamos sobre o show de talentos e, no fim, acabei convidando-o. Ele topou.
Mais tarde, já na escola, Jully veio comentar sobre o homem do visto. Tive que contar a ela que o sujeito tinha se insinuado em troca de favores. Ridículo. Ela se sentiu culpada por ter me indicado, mas eu a tranquilizei. Nós duas sabíamos como tinha sido difícil conseguir trabalhar ali, e não seria por atalhos que desistiríamos dos nossos sonhos.
Quando a noite caiu, o teatro estava lotado. Eu estava ansiosa — mas não pelo Scott, claro. Era pelo brilho nos olhos da Hope. A música “Shut up and dance” começou, e as meninas surgiram com suas saias colegiais, dançando com energia contagiante.
A plateia vibrava… até que as cortinas se abriram.
Scott surgiu ao teclado. O público foi à loucura.
Eu corri para ajeitar o microfone em Hope, mas, antes que pudesse sair, as meninas me puxaram para a coreografia. Ri, meio constrangida, mas acabei ficando. Hope cantava com uma voz linda. E Scott… bem, Scott era Scott. Magnético. Aquele homem nasceu para os palcos.
No final, Hope deu um jeito de me deixar ao lado dele. E foi aí que tudo desandou.
Scott me puxou num movimento ensaiado — ou talvez totalmente improvisado — e me deitou nos braços, como num desfecho perfeito de filme. A plateia explodiu em aplausos e gritos.
Eu, porém, congelei.
Nossos olhos se encontraram, e algo passou entre nós. Não era só química. Não era só raiva. Era algo que queimava, como um choque elétrico percorrendo cada fibra do meu corpo. Demorou alguns segundos até voltarmos à realidade.
Ele me ergueu devagar, com uma voz baixa que só eu podia ouvir:
— Por nada, Scott — respondi, sem conseguir desviar os olhos dos dele.
Saí do palco cambaleando, repetindo para mim mesma que não cairia nessa. Ele era perigoso. Ele era tudo o que eu jurara evitar.
Na plateia, encontrei o barista pronto para ir embora.
Ele me olhou sério.
— O quê? Não, aquilo foi só coreografia. Eu nem sabia que ele ia…
— Se você quer se enganar, tudo bem. Mas eu vi as faíscas quando se olharam. Não vou competir com ele.
Ele se afastou, mas eu fui atrás. O alcancei num corredor vazio.
— Pare aí mesmo — ordenei.
Ele virou, intrigado. Eu caminhei até ele, agarrei sua camiseta e o puxei para um beijo que vinha reprimindo há meses. Um beijo intenso, urgente, cheio de raiva e desejo.
— Uau — ele murmurou, surpreso.
— Não tem nada errado com o nosso timing — declarei, encarando-o firme.
Ele sorriu, jogando as chaves para o alto antes de pegá-las de novo com destreza.
Piscou e saiu, deixando-me sem ar.
Voltei ao teatro, cercada por pais que me parabenizavam. Foi bom para disfarçar o turbilhão dentro de mim. Mais tarde soube que Scott tinha ido embora de helicóptero com a Hope, evitando tumulto.
Mas eu ainda sentia, no corpo inteiro, o eco do olhar dele.