Ele ouviu sirenes se aproximando e abriu os olhos novamente. Não sabia quanto tempo havia passado lamentando sua situação sem tentar fazer nada a respeito, mas tinha sido tempo suficiente para que alguém chamasse o resgate.
Os paramédicos abriram o carro e, depois de avaliá-lo, o retiraram. Dante observou enquanto tiravam Luz e a levavam em uma maca.
— Vou com minha filha — disse ele, afastando a mão do paramédico que tentava limpar seu rosto.
— Senhor, precisamos retirar os cacos de vidro do seu rosto e desinfetar os cortes.
— Que se dane o vidro e o corte — gritou, furioso. — Eu disse que vou com a minha filha, e é isso que vou fazer.
O paramédico revirou os olhos discretamente e deu de ombros. Dante caminhou com dificuldade até a ambulância, fez sinal antes que fechassem a porta traseira e o deixaram subir.
Lá dentro estava Luz. Seu pequeno corpinho jazia sobre a maca; ela usava um colar cervical e, ao lado, um paramédico colocava uma linha intravenosa.
O espaço era apertado, e o homem que atendia Luz esbarrou um pouco em suas pernas. Dante se apertou no banco estreito e se posicionou o mais longe possível dela, num canto perto da porta, para não atrapalhar o trabalho do paramédico. Notou no chão o caderno daquela garota com quem havia encontrado Luz no supermercado. Pegou-o sem perceber que o paramédico o observava.
— Acho que esse caderno salvou a vida da sua filha — disse o jovem de macacão azul-marinho e colete verde fluorescente.
— Como isso é possível? — perguntou Dante, incrédulo, sem tirar os olhos dele.
— A cadeirinha da criança estava desabotoada — fez uma pausa. — A menina não conseguiria soltar o fecho sozinha — disse com voz tímida.
— Está insinuando que eu sou negligente? — mesmo naquela situação, Dante Marroquín se comportava como um arrogante.
— Não, senhor, claro que não. Mas encontramos sua filha abraçando esse caderno. Se ela estivesse na cadeirinha no momento do impacto, talvez tivesse sido arremessada contra o para-brisa, e isso teria sido fatal. Mas não aconteceu. Imagino que ela saiu do assento pouco antes, e acredito que foi atrás do caderno.
— O senhor tem uma imaginação enorme — respondeu Dante. O jovem abaixou o olhar. — Que tal, em vez de imaginar coisas, focar no trabalho? Deveria manter os olhos na minha filha e não dizer essas bobagens.
Dante sabia que o que o rapaz dizia fazia sentido, mas admitir aquilo significava aceitar que tinha deixado as correias da cadeirinha soltas — e isso o tornava o pior pai do mundo. Ele sabia que não era um bom pai, mas aquilo superava até seu próprio recorde. Abriu o caderno em uma página aleatória e semicerrou os olhos para focar nas letras.
“Minha alma deixou meu corpo no dia em que a sua deixou a terra.
No dia em que você ascendeu como um anjo ao céu,
no momento em que soube que jamais sentiria em minha pele um carinho seu,
meu sangue congelou nas veias,
minha bússola quebrou e perdi o norte.
Não tenho rumo, não há vontade em meus pensamentos além da autoflagelação.
Meus atos autodestrutivos são o castigo por não ter sido eu em seu lugar.
Minha alma deixou meu corpo e não tenho intenção alguma de recuperá-la.
Sou um casco vazio que nada nem ninguém poderá preencher.”
Ele secou uma lágrima antes que caísse. Olhou de lado para o paramédico para garantir que ele não tivesse visto. Fechou o caderno e o colocou debaixo do braço. Achou que quem havia escrito aquilo, mesmo sem técnica ou estética, descrevia exatamente como se sentira nos últimos três anos.
Dante estava sentado na sala de espera, com os cotovelos apoiados nas pernas e a cabeça entre as mãos entrelaçadas como em oração — embora não orasse. Havia parado de rezar, de orar, de acreditar. Acreditava em Deus, mas estava zangado com Ele. Havia implorado de joelhos para que levasse sua vida em vez da de Mirella; prometera doar todas as suas riquezas aos pobres se Ele devolvesse a vida de sua esposa; chegou até a assinar um cheque para um convento que ajudava pessoas sem lar. Jurou a um Deus a quem nunca havia dirigido uma palavra que, se Mirella vivesse, entregaria o cheque sem reclamar. Mas aquele Deus egocêntrico se recusou a ouvi-lo. Por que ouviria seus pedidos por Luz? Não perderia tempo com um Deus insensível ao seu sofrimento.
— Senhor Marroquín? — a voz grave fez com que ele se levantasse de um salto, como se tivesse levado um choque. — Sua filha está bem. Está fora de perigo.
Os pulmões de Dante se abriram e ele conseguiu respirar fundo.
— Já posso levá-la para casa? — perguntou, sabendo que o médico surgiria com algum trâmite. Dante sempre pulava a burocracia que os simples mortais suportavam calados.
— Não, ainda não…
— Esqueça. Isso não compete ao senhor. É trâmite administrativo. Vou ligar para o gerente da clínica agora mesmo — procurou o telefone no bolso interno do terno.
— Senhor Marroquín, o senhor não está entendendo.
— Claro que estou, doutor. Tenho que assinar formulários, esperar o horário de alta dos pacientes… — continuava procurando nos bolsos.
— Precisamos fazer exames — disse o médico. Dante se recusava a ouvi-lo enquanto buscava o telefone, cada vez mais irritado. — As lesões na coluna foram mínimas, mas podem ter afetado a capacidade motora de certas áreas do corpo.
— O quê!? — ele tinha ouvido perfeitamente, mas precisava escutar de novo. Suas mãos continuavam se mexendo, como um tique.
— É possível que Luz não consiga andar, senhor Marroquín.
As lágrimas vieram imediatamente. Desde que ouviu “coluna” e “capacidade motora”, sentiu vontade de chorar. Levou as duas mãos à cabeça, respirou fundo e tentou controlar a raiva e a impotência. Secou as lágrimas e perguntou:
— O dano será permanente?
— É muito cedo para dizer — explicou o médico. — Nem sabemos ainda se haverá incapacidade. Saberemos após os exames; levará alguns dias. Recomendo que vá para casa, tome um banho, descanse um pouco e volte amanhã. Luz está sedada e não vai acordar.
Pela primeira vez em muito tempo, Dante aceitou uma recomendação que não queria aceitar. E o fez sem discutir. Pegou o caderno que trazia desde que saiu da ambulância e caminhou até a saída. Antes de atravessar as portas automáticas, viu um rosto conhecido.
— Rafael! — disse com alívio. O homem se aproximou e o abraçou.
— Vi as notícias. Imaginei que estariam na melhor clínica da cidade. Como está minha sobrinha?
— É possível que ela não volte a andar — disse Dante com frieza. Já havia chorado o suficiente. O rosto de Rafael escureceu; seus traços eram muito parecidos com os de Dante, mas suas bochechas eram mais cheias e ele tinha uma barba densa e bem aparada.
— Por favor, me leva para casa. Preciso de uma bebida.
Caminharam para fora, e Dante viu o carro de Rafael estacionado na vaga para deficientes.
— Ah, não. Claro que não, Dante. Você não vai beber — repreendeu-o.
— E o que você vai fazer? Me colocar numa cela junto com os bandidos que você prende? — desafiou enquanto caminhava para o carro.
— Eu poderia. Lembre-se de que sou seu irmão mais velho. Tenho o dever de cuidar de você — disse Rafael. Ele era quinze anos mais velho que Dante, a única figura paterna que já tivera e, muitas vezes, uma figura materna melhor que sua própria mãe, viciada e alcoólatra.
Entraram no carro.
— Ninguém consegue cuidar de ninguém, Raf — disse Dante enquanto se ajeitavam. — As coisas acontecem. Acontecem com quem você ama, mesmo que você cuide. Acontecem de qualquer jeito com quem você ama. Por isso é melhor não amar.
Rafael apenas baixou o olhar. Dante notou a barriga grande do irmão, inconcebível para um policial.
— Você precisa vir comigo para a academia, Raf. Essa barriga não está boa — disse para suavizar o que havia dito antes. Rafael sorriu e ligou o carro.
— Ei, irmão, preciso de um favor — disse Dante, abrindo o caderno de Alana na primeira página. — Preciso que encontre uma pessoa.
— Quem?
— O nome dela é
Alana Monteiro — leu na primeira página, onde começava com “meu nome é Alana Monteiro”.
— Uma garota? — perguntou Rafael. — Não me diga que uma garota conquistou o inatingível Dante Marroquín?
— Ah, não! Claro que não. Ela é escritora. Encontrei um manuscrito por acidente e não sei como entrar em contato com ela. É uma freira; você deve encontrá-la em algum convento, mas eu não tenho tempo para isso.
— Uau, irmão, você precisa largar o trabalho por um segundo — reclamou Rafael.
— Claro, vou largar, mas antes me empresta seu celular. Perdi o meu no acidente e preciso pedir para a Samara arrumar alguém para cuidar da Luz quando ela voltar para casa.