Ela chegou em casa e jogou a bolsa no sofá com força. O apartamento escuro parecia menor do que nunca. O silêncio gritou em seus ouvidos.
Helena passou as mãos nos cabelos, andou de um lado para o outro e tentou — em vão — racionalizar o que sentia. Mas era impossível.Ver Rafael assim foi como sentir o próprio peito aberto. Porque ela sabia, mais do que qualquer um, o que havia por trás daquele comportamento. Era fuga. Autopunição. Uma forma de enterrar a dor antes que ela o engolisse por completo.Mas ela não era babá. Nem terapeuta.E, naquele momento, não sabia se estava mais decepcionada com ele... ou consigo mesma por ter acreditado que ele podia ser diferente.A única certeza era que, depois daquela noite, algo dentro dela também havia mudado.E talvez não tivesse mais volta.O dia seguinte amanheceu cinzento e abafado, como se o próprio céu soubesse que algo não estava certo. O hospital seguia seu ritmo habitualA porta da sala de descanso ainda estava se fechando quando Rafael sentiu o silêncio se tornar ensurdecedor.A frase final de Helena ecoava em sua mente como um bisturi mal direcionado: “Estou tentando esquecer que também te admirava como homem.”Ele ficou parado por longos minutos, olhando para o vazio, com os punhos cerrados e a mandíbula rígida. Queria dizer que ela estava errada. Queria convencer a si mesmo de que não precisava daquilo — dela. Mas a verdade era que, pela primeira vez em anos, alguém o tinha visto. E agora o olhava com decepção.E Rafael odiava decepcionar. Odiava mais ainda sentir.Jogou-se na cadeira como se os joelhos finalmente cedessem. Passou as mãos pelo rosto, tentando apagar o gosto metálico da raiva e o amargor do arrependimento. Ainda podia sentir o cheiro do perfume barato da mulher da noite anterior em sua roupa, mesmo depois de trocar o jaleco. Uma lembrança sórdida de sua fraqueza.Ele não tinha planejad
Helena atravessou os corredores do hospital com os ombros tensos e o coração apertado. Tentava focar na rotina, nos pacientes, nas tarefas. Tentava fingir que o dia anterior — e tudo que veio antes dele — não havia deixado um rastro dentro dela. Mas era impossível ignorar a cena que ainda queimava sob suas pálpebras: Rafael, saindo do bar, cambaleante, com uma mulher pendurada no braço.Ela não se sentia traída. Eles não tinham nada — nenhuma promessa, nenhum compromisso. Mas, ainda assim, ver aquilo a atingiu com força. Não por ciúmes. Era decepção. Decepcionada por ter acreditado que havia algo mais sob a frieza dele. Algo que ela podia alcançar.Eu fui ingênua, pensou, enquanto anotava o prontuário de um paciente recém-operado. Suas mãos tremiam levemente, mas o rosto permanecia impassível. Ela tinha prática nisso. Ser forte. Ser racional. Ser quem aguenta tudo.Ao cruzar com Rafael no corredor pela manhã, o ar pareceu sumir por um instante. Ele desviou
A cirurgia começou pontualmente. O paciente era um homem de meia-idade, vítima de um acidente doméstico grave. A fratura era complexa e exigia sincronia absoluta entre a equipe.Rafael deu os primeiros comandos.— Precisamos estabilizar o quadril antes de avançar. Ferreira, o afastador.Helena entregou o instrumento sem dizer uma palavra. O contato entre suas mãos foi mínimo. Quase um toque fantasma.Ele esperava uma resposta, um comentário, até mesmo uma provocação. Mas ela permaneceu em silêncio.— Fixadores externos — pediu ele, após um tempo.— Estão prontos, doutor — respondeu, profissional, fria.A cirurgia seguiu como um balé impessoal. Cada passo técnico era executado com perfeição, mas faltava algo — aquela conexão quase telepática que eles tinham nas salas anteriores. A sintonia silenciosa agora estava quebrada.Duas horas depois, ao fim do procedimento, Rafael tirou as luvas e olhou para ela. Helena e
O hospital parecia respirar um ritmo próprio, abafado e pesado, como se cada parede carregasse fragmentos do que havia acontecido entre eles. Helena passou o dia mergulhada no trabalho, os olhos fixos em prontuários, os passos rápidos pelos corredores, a mente focada em tarefas que a impediam de pensar demais.Rafael, por outro lado, parecia uma sombra em seu campo de visão. Ele estava ali — nas reuniões rápidas, nas salas de cirurgia, nos corredores estreitos —, mas sempre à distância, sem ousar se aproximar. Era como se o espaço entre eles tivesse se tornado um território proibido, repleto de silêncios que diziam muito mais do que qualquer palavra.No fim da manhã, foram escalados para trabalhar juntos novamente: um paciente jovem, vítima de um acidente esportivo, precisava de uma cirurgia ortopédica delicada.Quando Helena entrou na sala de cirurgia, já paramentada, encontrou Rafael ajeitando os instrumentos na bancada. O olhar dele cruzou o dela por uma fração de segundo — rápid
O segundo dia de Clara no hospital começou com a mesma energia vibrante dela — e um cuidado especial em observar tudo ao seu redor. Helena, fiel a si mesma, tentava manter a distância de Rafael, focando apenas no trabalho, mas Clara, com seu olhar atento, já começava a juntar as peças.Durante a troca de plantão, Helena e Clara estavam revisando as fichas dos pacientes no balcão da emergência quando Rafael se aproximou. A tensão no ar era quase palpável.— Ferreira — chamou ele, num tom que tentava soar neutro. — Preciso que me acompanhe em uma avaliação no centro cirúrgico.Helena manteve os olhos na prancheta por mais um segundo, respirou fundo e, só então, ergueu o olhar.— Claro, doutor Moretti — respondeu, com uma formalidade cortante.Sem sequer um olhar para Clara, Rafael virou-se e começou a caminhar. Helena o seguiu, mantendo uma distância segura, como alguém que conhece o calor do fogo e sabe que se aproximar demais é um erro.Clara observou a cena, o cenho levemente fra
Os dias que se seguiram trouxeram uma mudança silenciosa no ambiente do hospital. Clara, com sua energia leve e seu profissionalismo afiado, começou a ganhar espaço entre a equipe. Médicos, enfermeiros, residentes — todos pareciam se aproximar dela com facilidade, atraídos pela combinação rara de competência e humanidade que ela carregava.Helena a observava com orgulho. Ver a amiga se adaptar tão bem era um alívio em meio ao caos que ainda dominava suas emoções.Durante uma manhã particularmente agitada, Rafael coordenava uma série de cirurgias enquanto Helena e Clara se revezavam no centro cirúrgico. Clara, mesmo nova, lidava com os casos complexos com uma calma invejável — e, mais importante, era um apoio constante para Helena.Em um momento entre procedimentos, Rafael passou pelo corredor e viu as duas juntas. Helena ria de algo que Clara havia dito, a mão repousando brevemente no ombro da amiga, como quem compartilha mais do que uma piada — compartilha confiança, acolhiment
A cirurgia daquela tarde era delicada: uma fratura exposta no fêmur, associada a múltiplas lesões vasculares. A sala estava cheia — dois anestesistas, instrumentadores, residentes, e os olhares atentos da comissão de avaliação interna do hospital, que observava os procedimentos em situações de alta complexidade.O ambiente era uma panela de pressão.Helena ajustava as pinças com precisão, mas seu coração batia rápido demais. Talvez fosse o cansaço acumulado. Talvez fosse o peso de tudo o que vinha carregando nos últimos dias — o afastamento de Rafael, a raiva contida, o reencontro com fantasmas antigos.Ela tentava se concentrar, mas havia uma tensão estranha em seus movimentos, uma hesitação mínima que não passou despercebida aos olhos atentos de Rafael.— Clamp vascular — pediu ele, com calma.Helena entregou, mas no instante seguinte, ao manipular o campo operatório, sua mão falhou — um deslize ínfimo, quase imperceptível, m
A sirene da emergência cortou o hospital como um trovão. Todos os profissionais do plantão se mobilizaram instantaneamente. Helena largou os papéis que preenchia na estação de enfermagem e correu para a sala de trauma.— Acidente grave na rodovia — informou um dos paramédicos. — Dois adultos, múltiplas fraturas e possível hemorragia interna.Helena nem teve tempo de respirar antes de ouvir a voz que ainda provocava arrepios em sua pele:— Ferreira, venha comigo — ordenou Rafael, já de luvas e máscara.Por instinto, ela obedeceu, os passos acelerados tentando acompanhar os dele. As luzes frias do hospital piscavam enquanto a tensão aumentava no ar como uma tempestade prestes a explodir.O paciente era um homem jovem, inconsciente, com ferimentos graves no tórax e na perna esquerda. O sangue escorria pela maca, tingindo os lençóis de vermelho escuro.— Preciso de acesso venoso agora! — Rafael gritou para a eq