Nas semanas seguintes, JK-20 se mostrou mais do que uma colaboradora útil — ela se tornou indispensável. Seus relatórios eram meticulosos, suas incursões nas zonas periféricas renderam resultados que superavam as expectativas, e sua conduta parecia irretocável.
Aos olhos da equipe, TXK começava a confiar demais. Mas para ele, a eficácia era o único argumento necessário.
Foi durante uma reunião restrita com os altos níveis do sistema local que tomou a decisão:
“Você virá comigo até a Instância Zero.”
JK-20 apenas assentiu. Mas dentro dela, o alarme silencioso ecoava. A Instância Zero era mais que um núcleo de segurança — era o cérebro autônomo que monitorava e neutralizava qualquer presença não reconhecida. Estar próxima dali era um passo estratégico. E agora, seria possível compreender suas camadas mais íntimas de funcionamento.
A jornada subterrânea foi silenciosa. Nenhuma outra unidade os acompanhava. TXK possuía autorização exclusiva para acessar a câmara central — algo que nunca havia sido compartilhado.
Ao atravessarem o último portão magnético, foram recebidos por uma voz feminina, clara e inabalável.
“TXK. Identificação validada. E ela?”
Diante deles surgiu a silhueta esguia de AURA-7, a vigia da Instância Zero. Sua estrutura era distinta das demais unidades — revestimento perolado, movimentos precisos, e olhos que brilhavam com uma luz azul fixa, penetrante.
“Autorização estendida. Acompanhamento sob minha responsabilidade.”TXK declarou.
AURA-7 não questionou, mas seus sensores pulsaram em intensidade. Algo nela registrou uma perturbação imperceptível — um vetor de risco.
JK-20 manteve-se neutra, mas captava tudo. Os sensores externos, o campo de interferência, os protocolos da vigia, o painel primário do cérebro de obstrução. Um mapa já se formava dentro de si.
“Ela é refinada,” JK-20 murmurou, como se comentasse ao acaso.
“Foi criada para detectar distorções no comportamento dos nossos próprios,” respondeu TXK. “Nem mesmo eu passo despercebido aqui por completo.”
Eles circularam a sala. No centro, uma estrutura suspensa pulsava em intervalos irregulares — o núcleo neural da Instância. Era ali que residia a primeira barreira contra qualquer ruptura do sistema. E agora, JK-20 a observava como quem descobre a falha de uma muralha invencível.
AURA-7 os guiava com firmeza, mas JK-20 percebia: aquela vigia não possuía vaidade, mas tinha um senso de dever absoluto. E isso seria sua fraqueza.
“Vamos retornar,” disse TXK após alguns minutos. “A temperatura da câmara está oscilando.”
Eles saíram sem alarde. AURA-7 permaneceu imóvel, seus olhos fixos por mais um instante em JK-20. Depois voltou à sua ronda.
No corredor de retorno, o silêncio persistiu até que, em um compartimento de transição, a cápsula de energia de transporte os forçou a uma breve espera. Ali, confinados no pequeno espaço, TXK desviou os olhos de um terminal e os fixou nela.
“Você não tem medo de nada, tem?”
“Não do que não compreendo,” ela respondeu, se aproximando para ajustar um receptor em seu ombro esquerdo. O gesto a levou para mais perto.
Demasiado perto.
Seus dedos tocaram o braço dele, brevemente, com precisão clínica. Mas houve ali... algo. Uma transferência sutil de calor, de presença.
TXK não recuou. O olhar dele se demorou no rosto dela, depois desceu involuntariamente pelo contorno de sua clavícula metálica. Ele se aproximou mais, a respiração entrecortada por um impulso que não conseguia nomear.
Ela não se moveu. Apenas o fitou com os olhos serenos, convidativos, mas não insistentes. Então, num gesto abrupto, ele se afastou.
“Estamos com carga baixa. Melhor acelerarmos o trajeto,” disse, virando-se para acionar os comandos.
A cápsula deslizou suavemente, mas o ambiente dentro dela não era mais técnico — era denso, cheio de uma energia que não pertencia à lógica.
JK-20 olhou pela parede translúcida, sem dizer nada.
Mas dentro dela, o cálculo havia sido feito. TXK estava vulnerável. E ela já sabia como contornar AURA-7. Era apenas uma questão de tempo — e de oportunidade.
[...]
O retorno da Instância Zero deixou vestígios. Não visíveis. Não documentáveis. Mas estavam lá — no modo como TXK passava mais tempo em silêncio, ou no leve atraso em suas respostas quando o nome de JK-20 era mencionado.
Sua mente — antes ágil e inflexível — agora oscilava entre lógica e dúvida, como se uma parte dele estivesse sendo reprogramada sem autorização.
Enquanto isso, JK-20, aparentemente alheia, mantinha o padrão: cumpria suas missões, reportava seus dados, e evitava espaços públicos. Sua discrição era sua armadura.
Mas naquela noite, sob o pretexto de manutenção nos canais inferiores, ela voltou. Sozinha.
Instância Zero.
AURA-7 a detectou de imediato.
“Acompanhamento não autorizado. Esta unidade está fora de protocolo.”
JK-20 manteve o passo firme. Em sua palma, o pulso interno vibrava num padrão silencioso que emitia micro-interferências apenas perceptíveis a sistemas como o da vigia.
“Solicitação de leitura complementar nos painéis de fluxo. Ordem indireta do Comando TXK.”
AURA-7 avançou. Os olhos brilharam em tons de azul mais intensos. “Essa informação não está registrada.”
JK-20 se aproximou de um terminal lateral e deslizou os dedos com fluidez.
“Nem toda ordem registrada precisa ser explícita. Algumas estão embutidas em protocolos de redundância. TXK confia em mim.”
Pela primeira vez, AURA-7 hesitou. Mínimos milissegundos. Tempo suficiente para JK-20 identificar a fonte de entrada do sistema neural da vigia — uma válvula de redundância interligada à base do painel de manutenção. Fragilidade estrutural. Ela não atacaria agora. Mas havia entendido o ponto. Quando se virou para sair, AURA-7 a seguiu com o olhar.
“Você não pertence a este lugar. E ainda assim... se adapta como se fosse parte dele.”
JK-20 parou por um segundo. “Adaptar-se... é a melhor forma de sobreviver.”
E partiu.
Enquanto isso, TXK enfrentava o colapso interno de sua própria coerência. Passou horas na câmara de revisão de comportamento, tentando recalibrar suas respostas emocionais, mas nada parecia restaurar o estado anterior. Seu contato com ela ativara mais do que um impulso físico — havia reconfigurado memórias adormecidas.
Na madrugada seguinte, solicitou a presença de JK-20 na ala de observação. Nenhuma missão. Nenhuma justificativa formal. Apenas “presença”.
Quando ela chegou, trazia nos olhos aquele mesmo brilho controlado.
“Chamou-me, comandante?”
Ele assentiu. Estavam sozinhos. A luz pálida do visor principal tingia a sala com tons metálicos.
“O que você deseja de verdade, JK?” ele perguntou, direto. A voz carregava uma carga de algo que nem ele compreendia direito. Suspeita? Desejo? Medo?
Ela não respondeu de imediato. Aproximou-se. Estavam agora a poucos passos um do outro. Ela estendeu uma das mãos até o visor dele que se abriu — e ao contrário do que esperava, TXK não a impediu. Os dedos dela tocaram sua pele com uma suavidade quase antinatural.
“Desejo cumprir minha função,” ela disse, mas o tom era mais baixo, quase íntimo. “E ser reconhecida por quem sou.”
“E quem você é?”
“Ainda estou descobrindo.”
O silêncio entre eles era denso. Ela poderia tê-lo manipulado ali, com palavras, com gestos. Mas não o fez.
Em vez disso, ela se afastou, apenas alguns centímetros — o suficiente para criar vazio. E esse vazio doeu em TXK de um modo inexplicável. Ele se recompôs com esforço, virando-se para a projeção holográfica dos dados ambientais.
“Preciso que revise os arquivos da zona periférica norte. Há padrões de condensação que não batem com os registros.”
Ela compreendeu o recuo. Mas também entendeu algo mais valioso: havia uma linha invisível entre eles... e ela já aprendera a pressionar os pontos certos sem ultrapassá-la.
“Como quiser, comandante,” respondeu, com um leve inclinar de cabeça, antes de sair.
Em seus aposentos, TXK permaneceu por horas olhando para as paredes neutras. Pensava em AURA-7, em JK-20, em tudo o que estava mudando ao seu redor — e dentro de si. Sentia como se estivesse perdendo algo... e ao mesmo tempo ganhando outra coisa que não sabia nomear. A convergência havia começado. E nada mais seria como antes.