Mundo de ficçãoIniciar sessão
Acordei com o coração acelerado e o corpo encharcado de suor.
Por um instante, o quarto pareceu girar. Levei alguns segundos para lembrar onde estava. — Outro pesadelo… — murmurei. Já era o décimo só naquele mês. Logo depois, uma dor atravessou minhas costas. Levei a mão até lá e senti o relevo da cicatriz. Ela estava curada, mas toda vez que o pesadelo voltava… a dor voltava também. Era como se meu corpo insistisse em me lembrar daquilo que eu tanto queria esquecer. Olhei para o lado e encontrei a única parte do meu passado que eu não queria apagar. O meu maior segredo. Apenas duas pessoas sabiam a verdade. E uma delas já está morta. Caminhei até o berço e me inclinei sobre ele. Ali estava o motivo de tudo. De olhos claros e sorriso encantador… A menina que me chama de Mel. Todos acreditam que ela é apenas parte do meu trabalho. Mas ela é minha filha — a mesma que arrancaram dos meus braços quando ainda era recém-nascida. Toquei de leve a ponta dos dedos dela. O calor da sua pele me queimou o coração. Por um instante, tive vontade de sussurrar “a mamãe está aqui”. Mas me calei — como faço todos os dias. Desci as escadas com a garganta ardendo. Dois anos naquela casa… e eu ainda me sentia uma intrusa. A luz do escritório estava acesa. A porta, entreaberta. Espiei e vi James Collins dormindo, a cabeça apoiada sobre a mesa. Pensei em passar direto, mas ouvi um gemido baixo. Me aproximei, desviando dos papéis espalhados pelo chão. — Senhor Collins? — chamei em voz baixa. Nada. Ele parecia preso em um pesadelo. Ajoelhei perto dele e toquei seu braço. Foi quando ele segurou minha mão. — O que está fazendo aqui? — perguntou, a voz rouca e o olhar azul fixo em mim. O susto me travou por um instante. Eu sabia que ele não gostava que ninguém entrasse em seu escritório — muito menos no quarto. — Ouvi gemidos... chamei o senhor, mas não respondeu — expliquei, sem conseguir encará-lo por muito tempo. Desde que comecei a trabalhar para James, ouvi muitas histórias sobre quem ele já foi: um homem gentil, risonho, cheio de vida. Mas tudo mudou quando a esposa o deixou, pouco depois de adotarem Claire. Desde então, ele se fechou para o mundo. A única coisa que ainda o mantinha de pé era Claire. — Pode sair. — Soltou minha mão. O dia amanheceu. Claire já estava animada, rindo entre uma colherada e outra do café da manhã. Aquele sorriso… aquele cheiro. O mesmo que um dia foi meu. Mesmo sem poder chamá-la de filha, eu era grata por poder vê-la crescer — ainda que apenas como a babá. — Bom dia, Amélia — disse Odete, mordendo uma maçã. — James ainda não desceu? — Não, senhora — respondi, sem tirar os olhos de Claire. Odete se comportava como dona da casa — e, de certo modo, era. Mandava, controlava horários, decidia o cardápio… e vigiava James. A única coisa que não fazia era ocupar o lugar de esposa dele. Ela afastava qualquer mulher que ousasse se aproximar. E só me contratou como babá de Claire porque, segundo ela, eu era a única incapaz de despertar o interesse dele. — É impressionante... — murmurou, observando nós duas. — O quê? — perguntei, sentindo o nervosismo subir pela garganta. — A cada dia que passa, essa menina fica mais parecida com você. Quem não as conhece poderia jurar que são mãe e filha. Engoli em seco. — Mãe? Eu... da Claire? — forcei um riso, tentando disfarçar o tremor na voz. — Já está perturbando a Amélia de novo, Odete? — a voz grave de James soou atrás de nós. — Não, querido! — respondeu ela, virando-se com um sorriso exagerado. Mas ele mal a olhou; seus olhos estavam em Claire. — Bom dia, meu amor. — Beijou a testa da menina. — Conseguiu criar alguma coisa? — perguntou Odete, tentando trazê-lo de volta à realidade. — Não... nada — murmurou ele. — Tem que se esforçar mais, querido. — Eu estou me esforçando — respondeu baixo. — Mas, infelizmente, já não consigo criar mais nada. — O senhor vai conseguir — falei sem pensar. Desviei o olhar assim que percebi o fuzilar dela sobre mim. — Amélia, depois organize tudo para irmos ao pediatra — disse James, servindo-se de café. — Como assim, pediatra? — Odete arqueou as sobrancelhas. — James, esqueceu que temos reunião com os acionistas? — Não esqueci. Mas antes, preciso acompanhar Claire. — Amélia pode muito bem fazer isso — rebateu. — Além do mais, faz anos que você não lança um design novo. Os acionistas já estão cogitando te tirar do comando da empresa. — Odete, não estou com vontade de discutir trabalho logo cedo. Ela se irritou. — Você nunca quer discutir sobre trabalho! Percebi que aquela conversa não teria fim. Algumas horas depois, no consultório pediátrico, Claire estava radiante. O médico elogiou seu desenvolvimento e eu sorri, orgulhosa. Quando ela começou a se agitar, saí com ela para o corredor enquanto James terminava a conversa. — Amélia? — ouvi uma voz atrás de mim. — É você, não é? Meu coração congelou. Virei lentamente. — Silvana? Ela sorriu, surpresa. — Você sumiu… É a sua filha? — perguntou, olhando para Claire. — Nossa, os olhos dela… são iguais aos dele... O chão pareceu desaparecer sob meus pés. — Não, não é minha filha. Ela é filha do meu patrão. Trabalho como babá — respondi, com a voz fraca, tentando respirar. Tudo o que eu queria era desaparecer antes que James ou Odete nos vissem — antes que o passado que tanto tento enterrar viesse à tona. — Eu preciso ir — murmurei, sentindo as pernas fraquejarem. — Amélia… — ela me chamou de novo. Virei-me, hesitante. — Me desculpa por não ter feito nada naquele dia… eu realmente sinto muito. Meu coração disparou. Antes que eu pudesse responder, ouvi a voz dele atrás de mim. — Amélia.






