Mundo de ficçãoIniciar sessão
LÉLIA
Eu nunca imaginei que o fim do meu casamento se revelaria assim: de forma pública, silenciosa e absolutamente humilhante. Não houve briga, não houve confissão, não houve sequer um olhar. A verdade simplesmente se impôs diante de mim quando eu liguei a televisão naquela tarde e vi o que o mundo inteiro já sabia — menos eu. A reportagem mostrava a inauguração grandiosa do novo condomínio de luxo construído pela empresa que meu marido erguera depois que a fortuna inesperada o transformou em uma celebridade instantânea. Havia flashes, aplausos, jornalistas animados, políticos, investidores, socialites… e ele. Peter Millis Stuart. O homem com quem eu dividira os últimos cinco anos da minha vida. O homem que eu acreditava conhecer melhor do que conhecia a mim mesma. Mas quem estava ao lado dele não era a esposa que o acompanhou quando ele não tinha nada. Era uma mulher alta, magra, impecável, com um vestido que gritava exclusividade e um sorriso claramente ensaiado. A repórter anunciava com entusiasmo: “— E aqui está o novo rico mais comentado do ano, Peter Millis, acompanhado de sua noiva! O casamento será celebrado em breve.” Eu fiquei imóvel, segurando a borda da mesa para não cair. A imagem congelou dentro de mim com uma precisão cruel. A sociedade inteira comemorava o noivado dele — e eu era um fantasma na narrativa. A esposa dele. A mulher que ninguém sabia que existia. Meu nome nunca foi mencionado em reportagens, eventos ou discursos. Ele nunca me levou a inaugurações, nunca me citou, nunca me apresentou. E naquele instante, tudo fez sentido. Eu não era parte da vida que ele exibia para o mundo. Eu era apenas o silêncio atrás da porta, a sombra que ocupava o espaço enquanto era conveniente. Quando deixou de ser, fui apagada. Não senti raiva. Raiva precisa de energia, e naquele momento eu só tinha um vazio profundo, pesado, sufocante. Sentei na beirada da cama enquanto o noticiário seguia exibindo mais imagens, mais flashes, mais sorrisos — e percebi que eu precisava aceitar a verdade que estava diante dos meus olhos. Ele já havia seguido em frente. A minha existência ao lado dele havia sido completamente substituída. Levantei, fui até a gaveta onde os papéis do divórcio estavam guardados — documentos que ele preparou meses antes com a frieza de quem escreve uma lista de compras. Ele nunca insistiu para que eu assinasse, mas também nunca perguntou por que eu não assinava. Porque não fazia diferença para ele. Porque o casamento já havia acabado para ele antes mesmo de eu perceber. Peguei uma caneta, li cada linha como se estivesse lendo a história de outra pessoa, e assinei. Sem tremor. Sem hesitação. Era como se meu corpo soubesse antes de mim que aquele momento era inevitável. Em seguida, tirei a aliança do dedo. Ela deslizou como se nunca tivesse pertencido à minha mão. Coloquei-a sobre os papéis e respirei fundo, uma respiração cansada, que parecia carregar todos os anos de solidão que eu tinha me recusado a enxergar. Peguei um pedaço de papel, escrevi poucas palavras — as únicas que eu conseguia: “Você está livre para viver a sua nova vida.” Dobrei o bilhete e deixei sobre a mesa da sala, em cima dos documentos. Tomei então minha mala, aquela mesma que usei quando me mudei para a cobertura dele no começo do casamento, quando ainda acreditava em nós. Não havia muita coisa para levar. Nada ali realmente me pertencia. Caminhei pelo apartamento como quem atravessa um mausoléu. Cada cômodo era um eco do que eu suportei em silêncio. As ausências, as desculpas, as noites em que ele não voltou, as viagens sem explicação, o distanciamento gradual, quase cirúrgico. Tudo estava ali, estampado entre paredes perfeitas demais para esconder imperfeições tão profundas. Fechei a porta devagar. Não olhei para trás. Voltei para o pequeno apartamento que herdei dos meus pais — um lugar que eu nunca tive coragem de vender. Talvez porque, no fundo, eu sabia que um dia precisaria voltar para lá. Era simples, antigo, com cheiro de madeira velha e lembranças boas. Mas, pela primeira vez em anos, eu senti que estava em um espaço onde minha existência fazia sentido. Deixei a mala no canto da sala e me sentei no chão. Não chorei de imediato. Meu corpo parecia preso. A realidade precisava me alcançar antes de me desmontar. E quando alcançou, veio como uma enxurrada. Chorei por tudo e por nada. Pelos anos desperdiçados, pela mulher que eu deixei de ser, pela ingenuidade que me custou tão caro, pela vida que eu projetei e que não existia. Chorei até não ter mais forças. Nos dias seguintes, quando o choque deu lugar ao silêncio, eu percebi que precisava agir. Não havia mais cobertura, luxo ou vida confortável. Não havia marido, ajuda, companhia. Só havia eu — e minha necessidade urgente de sobreviver. Então abri meu laptop antigo, respirei fundo e comecei a enviar currículos, preciso trabalhar e me levantar, e existir novamente. MORGAN Eu sempre soube que meu casamento estava longe de ser perfeito, mas ainda havia naquela rotina gelada um fio mínimo de lealdade que eu acreditava existir entre nós. Acreditava — até o dia em que cheguei em casa e encontrei Delila sentada no sofá da sala, impecável como sempre, segurando os papéis do divórcio com a mesma elegância com que segurava uma taça de champanhe. Larguei a pasta de trabalho sobre a mesa, estranhando a expressão dela. Delila não era de esperar por mim. Não era de conversar. Não era de nada que envolvesse permanência. — O que está acontecendo? — perguntei, embora meu peito já soubesse que não vinha coisa boa dali. Ela ergueu os papéis, os olhos frios, a voz absolutamente calma — calma até demais. — Estou indo embora, Morgan. Eu não aguento mais essa vida. Não nasci para ser mãe. Aquilo me atingiu com uma violência que eu não tinha como esconder. — E a nossa filha? — Minha voz saiu dura. — Nós temos uma filha de cinco anos. Você vai jogar sete anos de casamento fora? Ela soltou uma risada curta. Um som sem alma. Um som que eu nunca vou esquecer. — Sete anos? Morgan, desses sete… apenas dois foram vida de verdade. A partir do momento em que engravidei, tudo se tornou um inferno. Eu não quero isso. Eu não quero ela. Eu não quero maternidade. Quero minha vida de volta. — Então você já estava me traindo — concluí, sentindo minha mandíbula travar. Ela nem piscou. — Não interessa. O que importa é que estou pedindo o divórcio. Assina logo. Eu já tenho casamento marcado. O silêncio que se instalou dentro de mim era quase palpável. Um vazio profundo, gelado, corrosivo. Mas eu não ia implorar. Não ia cair de joelhos. Não ia dar a ela o espetáculo que talvez quisesse. Respirei fundo. — Então você está abrindo mão da nossa filha. — Sim. Está tudo escrito aí. Pode conferir. Ela é sua. Não minha. Não houve tremor. Não houve hesitação. Ela falava como quem se desfaz de um objeto inconveniente. Peguei a caneta. Assinei. Não havia mais nada a ser dito entre nós. — Boa sorte com a sua nova vida — falei, entregando-lhe os papéis. Ela sorriu, satisfeita com a facilidade com que fechava aquela porta — a porta da própria maternidade. — Finalmente algo em que concordamos — respondeu, antes de pegar sua bolsa e desaparecer. A porta mal tinha batido quando ouvi os passos leves atrás de mim. — Papá? — A voz de Louise era pequena, trêmula. — A mamãe foi embora? Virei-me. Ela estava com os olhinhos azuis cheios de perguntas que eu nunca quis que ela precisasse fazer tão cedo. Ajoelhei na altura dela. — Sim, meu amor. Agora é só eu e você. Ela baixou a cabeça, mexendo nos dedos. — Ela era má comigo — murmurou. — Ela nunca gostou de mim, papá. Só você gosta de mim. Aquela frase esmagou alguma coisa dentro de mim. Porque era verdade. A mãe dela nunca escondeu o desdém, o incômodo, a distância. E Louise, sensível como era, sentia tudo. Nos dias seguintes, a casa pareceu afundar num silêncio diferente. Um silêncio doído, molhado de lágrimas contidas. Louise chorava ao menor ruído, ao menor toque. —Não aceitava ninguém perto. Nem comida. Nem brinquedos. Só ficava em meus braços — e mesmo assim, às vezes tremia. A babá, exausta, frustrada, incapaz de lidar com as crises que duravam horas, pediu demissão. Eu não podia culpá-la. Comecei então a levar minha filha comigo para o escritório improvisado que montei em casa. Ela se sentava no tapete, perto da minha mesa, respirando fundo como se o simples fato de eu estar ali fosse o único peso que a mantinha conectada à realidade. Conversei com a governanta e pedi que ela encontrasse alguém capacitado — não apenas mais uma babá. Precisávamos de uma profissional com formação na área, alguém que entendesse crianças sensíveis, seletivas, com características de espectro. Alguém que pudesse alcançar minha filha aonde eu já não conseguia mais sozinho. Ela fez entrevistas durante dois dias. Filtrou, analisou, avaliou. Naquela tarde, enquanto eu digitava relatórios no notebook, Louise estava sentada perto da minha mesa, brincando com seus brinquedos educativos e conversando com uma boneca. Não era realmente brincar — era uma tentativa dela de manter o mundo ordenado, previsível. Cada toque, cada movimento revelava uma fragilidade que eu não sabia como proteger. Ouvi a governanta bater à porta. — Sr. Alpert… a candidata chegou. — Pode mandar entrar — respondi, sem tirar os olhos da tela. A porta se abriu devagar. Louise percebeu antes de mim. Interrompeu a fala sussurrada com a boneca, levantou o rosto e fixou os olhos na figura feminina que acabara de entrar. E então, pela primeira vez em semanas, minha filha sorriu. Um sorriso pequeno, tímido, mas real. — Oi — ela disse, baixinho.






