LÉLIA
Eu havia passado tanto tempo engolindo palavras que a ideia de mais uma me causava náusea.
—Cada silenciamento, cada insegurança, acumulava-se no fundo do meu estômago, criando um peso insuportável.
— Eu não queria mais viver daquela forma, nas semanas anteriores, vinha amadurecendo essa ideia, praticando diante do espelho e construindo coragem gradualmente, como se cada ato de auto afirmação fosse um pequeno tijolo erguendo uma muralha contra a opressão.
— Então, naquela manhã, enquanto arrumava a cozinha sozinha — como sempre, lamentando por não ter ninguém com quem compartilhar aquele espaço — decidi que era hora de falar.
— Eu precisava existir, quando Peter entrou pela porta da cobertura com aquele perfume caro que há muito não sentia em mim, tentei manter a voz firme, apesar do aperto no peito, como se uma corda invisível me restringir a respirar confortavelmente.
— Peter… eu preciso conversar — comecei, segurando minhas mãos em um gesto quase desesperado, tentando ancorar minha determinação para que ele não percebesse meu crescente nervosismo.
— Eu me inscrevi em algumas agências de emprego.
— Estou esperando retorno para começar a trabalhar.
Ele parou no meio da sala, como se eu tivesse proferido um absurdo, e meu coração despencou ao ver a expressão de espanto em seu rosto.
— Depois, soltou uma risada curta e debochada, passando a mão pelo cabelo como se tentasse limpar qualquer vestígio de paciência.
— Trabalhar? — repetiu, com o tom de quem já havia decidido me ridicularizar.
— Lélia, quando nos casamos, combinamos que você não trabalharia.
— Você ia estudar para me ajudar e, depois, terminaria seus estudos.
Eu sempre cumpri minha parte. — E eu também cumpri a minha — respondi, engolindo o incômodo que subia pela minha garganta como um nó.
— Eu estudei, fiz minha faculdade, terminei as especialização, e agora eu quero trabalhar.
Preciso usar o que aprendi, ter minha independência… ele ergueu a mão, interrompendo minhas palavras como uma faca cega, e a atmosfera na sala tornou-se cada vez mais densa, despedaçando qualquer esperança que eu tivéssemos um diálogo construtivo.
— Independência, para quê, Lélia? Você tem uma casa maravilhosa, comida, conforto, tem tudo o que precisa, eu trabalho e você fica em casa, cuidando de tudo. Esse foi nosso acordo quando casamos.
—Respirei fundo, cansada de ser tratada como um objeto, uma empregada, esgotada pelas promessas que se tornaram grilhões.
— Você sabe que não é verdade, Peter, faço tudo sozinha aqui, você nunca contratou empregada, eu cozinho, limpo, lavo sua roupa e passo arrumo.
— E quando você chega, ainda espera que tudo esteja impecável, se você pode pagar uma equipe inteira…
— Não vou contratar ninguém — interrompeu, impaciente. — Mulher minha cuida da casa, é assim que tem que ser.
— Mulher sua? — questionei, sentindo minha voz fraquejar pela primeira vez em muito tempo, como se estivesse perdendo as rédeas daquela conversa que se tornou um campo de batalha.
— Peter… quando você vai me levar às recepções? Quando vai me apresentar aos seus sócios, porque até hoje eu acredito que ninguém sabe que você é casado?
— Você sempre vai com a sua assistente, ela sempre está presente, eu nunca fui a nem um lugar com você, nem na sua empresa, eu fui.
— Lise tem presença — respondeu, sem hesitar, como se estivesse agarrado a uma verdade manipulada.
— Ela sabe se portar diante de investidores e acionistas, a Lise é preparada e sabe como se vestir e portar.
—Você, Lélia, olha bem o teu corpo?
Senti o golpe como um soco no estômago, ele me avaliava de cima a baixo, e a crueldade em seu olhar cravava em mim como um estigma que eu não conseguia apagar.
— Quando nos casamos, você tinha um corpo lindo… um corpo de violoncelo — disse ele, como se relembrasse de uma peça antiga que se quebrou.
— Hoje você parece… sinceramente, eu nem sei definir.
Talvez um tanque de guerra, não posso te levar a eventos assim, você se transformou nisso.
— Minha garganta fechou, e minhas mãos tremiam como folhas secas ao vento.
— Eu estou pesando sessenta e sete quilos, sussurrei, em um esforço para entender em que momento o amor e a reciprocidade se transformaram em questões de números na balança, como se fossem trocas superficiais que ignoravam a totalidade do meu ser.
— Isso não é obesidade, só ganhei um pouco de peso porque fico em casa o tempo inteiro, você não me deixa eu me exercitar…
— Exercitar pra quê? — zombou ele, desdenhoso, você não precisa, fecha a boca. Seu papel é cuidar do meu lar, e se você se atrever a trabalhar… nós vamos nos divorciar.
—O silêncio que se seguiu foi denso e cortante, a palavra “divórcio” pairou entre nós como uma sentença definitiva, e naquele momento, percebi que estava diante de uma encruzilhada, onde precisaria escolher entre a dor do passado e a incerteza do futuro.
— Hoje eu vou chegar tarde — continuou ele, checando o relógio, tratando o tempo como seu aliado, ignorando meu sofrimento.
— Tenho um evento importante — e vai levar a sua assistente novamente?
— Perguntei, tentando esconder a dor que transbordava da minha voz, ecoando distante e sem resposta.
— É claro, ela se comporta bem, diferente de você, portanto, provavelmente, eu chegarei de madrugada.
— Ele saiu, e eu fiquei diante do vazio daquela cobertura, que nunca foi verdadeiramente minha; era uma prisão dourada que oprime meu espírito.
— Jantei sozinha, como sempre, a comida me parecendo insípida, um mero combustível para um corpo que não se sentia amado.
— Lavei a louça, dobrei roupas, organizei gavetas, A rotina que me sufocava há cinco anos.
Porém, naquela noite, algo dentro de mim estava prestes a mudar, como um broto que finalmente fura a terra.
Peguei meu celular, abri no I*******m que ele não sabia que eu tinha — um perfil discreto, que eu mantinha apenas para me conectar com o mundo que ele me fez esquecer.
— E então a notificação apareceu: — Live ao vivo — Evento Millis Construtora, cliquei, e o meu mundo desabou, se despedaçando a fachada de normalidade que eu sempre carreguei. — Em um salão luxuoso, decorado com arranjos caros, Peter estava no palco, elegante, sorridente e orgulhoso; e ao lado dele, de vestido dourado e impecável, estava Lise, a assistente, mulher que ele achava “apresentável”. E segundos depois, diante da imprensa, dos flashes, das palmas… ele se ajoelhou, e pediu à assistente em casamento.
— Ali, ao vivo, diante de todos, meu coração bateu tão forte que pensei que fosse desmaiar. — Minhas mãos suavam, e minhas pernas tremiam, mas o que mais doía não era perder Peter — era perceber que ele nunca foi meu.
— Então é isso — murmurei para mim mesma, encarando a tela.
— Eu só fui a mulher que te ajudou a subir, e quando você chegou lá no topo… me jogou ao limbo. Desliguei o celular, minha respiração travou, a dor da traição é muito grande. Chorei depois de anos sendo anulada, mas estou decidida , me levantei, como uma fênix emergindo das cinzas de uma vida que nunca foi minha.
Ele não voltou para casa, fui dormir, com uma dor no peito, lancinante, mas com uma decisão tomada.
No dia seguinte, procurei um advogado e mostrei a filmagem, e pedi que providencie o meu divórcio.
— Já que ele vai casar com outra — disse ao funcionário, sentindo as palavras saírem com uma força e clareza que eu não sabia que possuía —, ele não pode ter duas esposas.
No cartório eles redigiram o documento, assinei, pedi uma cópia impressa da imagem em que ele se ajoelha, coloquei dentro de um envelope junto com minha aliança, símbolo de uma vida que eu já não reconhecia mais.
Quando voltei para a cobertura, ele ainda não tinha retornado, deixei tudo sobre a mesa, “Você está livre para viver sua nova vida.”
— Fechei a porta sem olhar para trás, retornei ao apartamento simples que herdei dos meus pais — o único lugar onde eu ainda me sentia real, onde as paredes conheciam minha dor e meu riso.
—A única casa que me abraçava, que eu havia aprendido a amar, apesar da tristeza.
—A pandemia em 2019, levou meus pais e desde então, aquele espaço era minha última raiz, o eco de vozes dos me amaram incondicionalmente. Ali, sentei diante do computador, abri meu currículo e comecei a enviá-lo para todas as agências de babás especializadas em crianças especiais.
— Cinco anos da minha juventude foram dedicados a um homem que nunca me amou. Agora, pela primeira vez, eu fiz algo por mim, uma escolha que ecoava no meu interior.
— E eu nem imaginava que, com aquele simples clique em “enviar”, minha vida inteira estava prestes a mudar, como a aurora que segue as noites mais escuras.