O COMEÇO DE TUDO
A música sempre foi o idioma da minha alma. Desde menina, eu acreditava que as melodias eram orações disfarçadas — que, se eu tocasse com o coração, Deus me ouviria. Foi assim que Brent entrou na minha vida: entre uma canção e outra, no pequeno café ao lado da universidade. Eu tocava piano nas horas vagas, tentando juntar dinheiro para pagar o quarto onde morava — um lugar simples, alugado por uma viúva gentil, indicado pelas freiras do orfanato que me criara. Era a primeira vez que eu vivia sozinha, fora das paredes que me chamavam de “instituição”, e, pela primeira vez, a solidão parecia ter som. Ele entrou certo dia, com o sorriso mais bonito que eu já vi. Tinha livros de direito debaixo do braço e olhos que pareciam ler o mundo — e, ainda assim, me olhavam como se eu fosse o centro dele. Brent Bishop Dickson. Vinte e um anos, estudante de direito, sonhador, intenso. Um homem que falava de justiça como quem recita poesia. — Você toca com a alma — disse ele, depois de ouvir minha música. — E eu nunca soube que a alma tinha som. Eu ri, sem saber o que responder. Foi a primeira vez que alguém me olhou sem ver o rótulo de “órfã”. Ele me viu, simplesmente. Nos meses seguintes, a cafeteria virou nosso ponto de encontro. Eu levava partituras; ele trazia livros. Enquanto eu falava de Chopin e Debussy, ele explicava as leis que poderiam mudar o mundo. Nos apaixonamos devagar — e, quando percebi, já era tarde para voltar atrás. Brent me pediu em casamento no mesmo lugar onde nos conhecemos. Um anel simples, comprado com o primeiro salário de estágio. Eu tinha acabado de completar dezoito anos, ele estava terminando a faculdade. Nos casamos no civil, em uma cerimônia pequena. As freiras foram minhas testemunhas; ele levou apenas o pai e a mãe — embora a presença dela, confesso, tenha gelado a minha alegria. A senhora Margaret Dickson nunca me aceitou. Achava que o filho, agora advogado promissor, merecia mais do que uma garota sem sobrenome, criada por caridade. Nos olhares dela, eu sempre lia a mesma sentença: “você não é digna.” Mas Brent nunca se deixou influenciar. Ele dizia que amor não precisava de permissão. E, quando assinamos os papéis do casamento, ele me sussurrou ao ouvido: — Agora você tem um lar, Rachel, É um nome que ninguém vai te tirar. Dois anos depois , eu tinha uma surpresa para Brent. Vivíamos em um pequeno apartamento, com paredes pintadas de sonhos. O piano herdado do café ficava ao lado da janela, e o som dele era o coração da casa. Brent trabalhava em um grande escritório e começava a se destacar. Às vezes chegava tarde, exausto, mas bastava me ver tocando que o cansaço desaparecia. Foi na noite que completamos dois anos de casados que contei a novidade. — Brent, estou grávida, você vai ser pai amor. Ele me olhou por um instante, como se as palavras demorassem a fazer sentido. E, então, sorriu com uma alegria que encheu o quarto inteiro. — Você está brincando comigo não é amor? Balancei a cabeça, rindo e chorando ao mesmo tempo. Ele me abraçou com força, me levantou do chão e girou comigo. — Eu vou ser pai?!— repetia, como se precisasse se convencer. — Meu Deus, Rachel, eu vou ser pai! Naquele instante, tudo parecia perfeito. Ele começou a pintar o segundo quarto, comprou móveis, bichinhos de pelúcia, e um móbile com notas musicais que giravam ao som de uma caixinha de música. Dizia que nosso bebê— ele sempre acreditava nisso bebê seria uma menina , mas nós decidimos descobrir o sexo no nascimento. Mas nem tudo era música. A minha sogra continuava distante, fria, nunca me tratou bem. Nas raras visitas, fazia questão de lembrar que “bons casamentos não se fazem com piedade”. Eu ouvia em silêncio, tentando preservar a paz. Brent, por outro lado, se irritava. — Mamãe você que se acostume — dizia. — Rachel é minha família agora. Eu sorria, mas no fundo sabia que a senhora Dickson jamais me perdoaria por ter me casado com o filho dela. Naquela noite, a casa estava em silêncio. O relógio marcava onze horas, e a chuva começava a cair lá fora. Eu estava deitada, observando o teto, quando senti a primeira contração. Fraca, mas inconfundível. Meu coração disparou. — Brent amor, acorda!— chamei, tocando seu ombro. Ele se mexeu, sonolento. — O que foi, amor? — Acho que chegou a hora do bebê. Os olhos dele se abriram de imediato, tomados de uma mistura de susto e alegria. — O quê? Agora? Assenti, ofegante. — Está doendo. Ele saltou da cama, tropeçando nas cobertas, rindo e nervoso. — Meu Deus… tá bem, calma, calma. Eu vou pegar as malas. Olhei para ele, e um nó se formou na minha garganta. Era a mesma sensação de quando o vi pela primeira vez: a certeza de que eu estava segura. Eu nunca poderia imaginar que, dali a algumas horas, aquele seria o último sorriso que veria dele. A chuva aumentava lá fora. O som dos trovões se misturava ao meu coração acelerado. Peguei a mala do bebê, o casaco e o retrato de casamento sobre a cômoda. Brent segurou minha mão e beijou minha testa. — Vai dar tudo certo, amor, falou sorrindo. — nosso bebê vai nascer! Eu acreditei. Como sempre acreditei em tudo que ele dizia.