O cheiro do sangue, a tensão no ar, a vida em minhas mãos… tudo se misturava em um quadro que eu não poderia falhar. Tinha total clareza de que aquela criança precisava de mim agora, e minha única prioridade era salvá-la.
Mas, em algum lugar nas sombras da minha mente, eu sabia que essa mulher, essa enfermeira novata, tinha o poder de me desestabilizar de uma forma que nenhuma outra mulher foi capaz em meus mais de cem anos.
A tensão no ar era palpável, a atmosfera carregada pela gravidade da situação. A menina estava piorando rapidamente, e cada segundo que passava parecia uma eternidade.
Eu ainda podia ouvir o som de sua respiração irregular e a visão da enfermeira, nervosa, mas determinada. Eu precisava de mais informações, e havia somente uma pessoa que poderia me dar respostas rápidas.
— Você tem mais informações sobre a criança? — Perguntei diretamente, meu tom sem rodeios. — Qual é a idade dela? Tipo sanguíneo? Onde estão os pais?
Ela me olhou e, pela primeira vez, vi uma fissura em sua fachada imperturbável, como se tivesse, por um segundo, abandonado a linha de frente para me olhar com uma expressão que misturava preocupação e medo.
— Ela tem seis anos. — Respondeu, já pegando os registros da menina. — O tipo sanguíneo é A positivo. Os pais… não sabemos ainda. Ela estava sozinha quando a trouxeram.
A informação sobre os pais me deu um nó na garganta. Uma criança tão pequena, tão vulnerável, sozinha em meio àquela tragédia. Eu sabia que a situação estava mais difícil do que imaginávamos, mas não era hora de hesitar.
— Ela precisa de uma craniectomia descompressiva, e precisa dela agora. — Disse, minha voz firme, mas carregada de urgência. — Se não for feita imediatamente, o risco de danos cerebrais irreversíveis será grande. E, sem a cirurgia, ela tem pouquíssimas chances de sobreviver.
Aquela enfermeira assentiu, seu rosto agora tomado pela seriedade da situação. Ela já sabia o que eu estava pedindo, mas, como eu, também sabia das limitações naquele momento. O hospital estava à beira do colapso, e a sala de cirurgia…
— Não temos uma sala disponível no momento. — Ela disse, com uma gravidade que cortou o ar. — Devido à quantidade de acidentados pela colisão dos metrôs, todas as salas estão ocupadas. Estamos fazendo o que podemos, mas, por favor, não me permita perder essa garotinha…
A resposta dela me atingiu como um soco no estômago. Eu sabia que ela estava dizendo a verdade. O hospital estava inundado de vítimas, e a pressão sobre todos era quase insuportável. Mas o olhar que ela me lançou, como se também estivesse à beira de um colapso, me fez perceber que não poderia decepcioná-la naquele momento.
— Vamos improvisar… — Disse, sem hesitar. — Eu preciso de um espaço. Um qualquer. Faça o possível para liberar uma sala agora. Vou operar onde for necessário.
Ela, sem perder tempo, começou a organizar tudo. Eu podia ver o peso da decisão em seu rosto, mas ela não hesitou. Não podíamos perder mais tempo. A vida daquela criança dependia de uma ação imediata. E, naquele momento, tudo o que restava era lutar contra o tempo e contra as limitações do hospital.
— Vou tentar liberar a sala de emergência. — Ela disse, já se afastando para coordenar o que fosse possível. — Vou ver o que posso fazer, mas o senhor não pode operá-la aqui. A sala de emergência não está equipada para uma craniectomia descompressiva. Você sabe disso. Precisamos somente estabilizá-la. Pelo menos até que a sala cirúrgica seja liberada.
Eu sabia que ela estava fazendo o melhor possível. Eu precisava salvar aquela criança. E a cada segundo, o tempo se tornava o nosso inimigo, mas eu já estive em um momento parecido com uma situação ainda mais precária. Agora, aqui, isso parecia um luxo.
A tensão entre nós era palpável, como se o ar ao nosso redor tivesse ficado mais denso, pesado com a gravidade da decisão. O tempo estava se esgotando, e cada segundo perdido poderia ser a diferença entre a vida e a morte daquela criança. Ela primeiro pediu para que eu não a deixasse perder aquela menininha e agora estava impondo limitações?
Ela olhou para mim, como se esperasse que eu retrocedesse na decisão, mas o olhar em seus olhos também dizia o contrário. Ela estava com medo. Medo de que, talvez, eu estivesse agindo de forma precipitada.
— Eu sei muito bem o que estou fazendo. — Respondi com um tom que beirava a impaciência. — Mas o que você não entende, enfermeira, é que essa criança não vai sobreviver até chegar à sala de cirurgia. A pressão intracraniana dela está aumentando a cada segundo. Se não liberarmos essa pressão agora, ela vai morrer.
Ela olhou para a criança, depois para mim, e pude ver a luta interna em seu rosto. Sua hesitação estava se tornando cada vez mais óbvia, mas a responsabilidade estava em minhas mãos. O olhar dela se fixou no monitor da menina, que ainda estava lutando pela vida.
— Mas…
Ela hesitou, quando chegamos à sala de emergência, os olhos vagando pela sala cheia de equipamentos que não estavam preparados para o tipo de cirurgia que eu estava sugerindo.
— Nós não temos os recursos, doutor. Nem a equipe necessária. Não podemos fazer isso aqui. Ela precisa de uma sala de cirurgia.
Eu podia sentir minha paciência se esvaindo, mas sabia que não tinha tempo para discussões sem fim. A vida da criança estava em risco e eu não permitiria que aquela mulher carregasse essa culpa pelo resto da sua vida.
— Eu não vou esperar por uma sala de cirurgia. O que eu sei é que, se eu não começar a aliviar essa pressão intracraniana agora, ela vai morrer. E você vai me ajudar a fazer isso, ou vou ter que fazer isso sozinho. — Eu podia ouvir a intensidade da minha própria voz, cada sílaba carregada de uma urgência imensa.
Ela olhou para mim, claramente paralisada pela situação. O dilema estava estampado em seu rosto. Ela sabia que eu estava certo, mas, ao mesmo tempo, ela temia as consequências de tomar uma decisão tão arriscada. A hesitação era quase palpável.
Finalmente, depois de um longo e angustiante silêncio, ela baixou os olhos, visivelmente derrotada.
— Eu… eu não posso parar você, doutor. — Ela murmurou, a voz embargada. — Mas você tem certeza de que isso é a única opção? — Eu a encarei por um momento, sabendo que, naquelas circunstâncias, a única opção era agir rapidamente.
— Sim, e você sabe disso também.
Sem mais palavras, ela se afastou rapidamente, pegando os instrumentos necessários. Eu me virei para a criança, minhas mãos já se movendo com a precisão e o controle adquiridos ao longo de décadas. Aquela mulher ficou ali por um momento, observando, antes de se aproximar hesitante, sabendo que a decisão havia sido tomada e que não havia mais volta.
A operação começou. Ela preparou o campo cirúrgico, um pouco tensa, mas entendendo agora que, naquele momento, nós éramos a única chance daquela menina. Eu não pensei mais em nada. Só no que precisava ser feito. O resto parecia irrelevante.